Crédito: Projeto Comprova
Como inventar uma pesquisa eleitoral
As estratégias de desinformação das redes bolsonaristas para desacreditar resultados que apontam vitória de Lula
No último dia 31 de agosto, uma quarta-feira, o empresário, youtuber e hoje candidato a deputado federal por Goiás Gustavo Gayer (PL) decidiu fazer uma revelação que ele chamou de “chocante”. “Pare o que você está fazendo agora, por favor, e assista esse vídeo até o final”, anunciou. Na peça de pouco mais de 4 minutos, Gayer criticou a confiabilidade da pesquisa de intenção de voto para presidente divulgada pelo Ipec no último dia 29 de agosto, que mostrava Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à frente do atual presidente Jair Bolsonaro (PL) no primeiro turno. Segundo o youtuber, o Ipec funcionava no mesmo endereço do Instituto Lula, ligado ao petista. Em seguida, Gayer — um ferrenho defensor das pautas bolsonaristas nas redes, e que em 2021 foi apontado por um relatório do Google como o segundo youtuber brasileiro que mais ganhou dinheiro da plataforma a partir da monetização de vídeos com conteúdo negacionista durante a pandemia de Covid — pede a seus seguidores que divulguem o vídeo para o maior número de pessoas possíveis.
A informação era falsa, demonstrou o Comprova, consórcio que reúne jornalistas de 43 veículos de comunicação brasileiros, incluindo a piauí, para checar informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições e a pandemia de Covid nas redes sociais ou nos aplicativos de mensagens. Na busca no Google Maps, Gayer mostrou o endereço correto do Instituto Lula, na Rua Pouso Alegre, no bairro Ipiranga em São Paulo, mas confundiu o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), que divulga pesquisas eleitorais, com outro órgão de mesma sigla. Até 2011, o Instituto Lula se chamava Instituto de Pesquisa e Estudos de Cidadania, cuja sigla também era Ipec e funcionava no mesmo lugar em que o órgão ligado ao ex-presidente funciona hoje.
Alguns minutos após publicar o vídeo falso, Gayer, que tem mais de 1 milhão de inscritos em seu canal no YouTube, excluiu o conteúdo de suas plataformas e, no dia seguinte, publicou uma retratação. Tarde demais. Outros perfis nas redes sociais já haviam compartilhado a peça ou feito o download do vídeo. A postagem de um perfil do Twitter com o mesmo conteúdo, e que motivou a verificação do Comprova, por exemplo, já havia sido assistida mais de 80 mil vezes em menos de 24 horas no ar. O efeito do vídeo de Gayer no eleitor pode ser constatado também no Google Trends, ferramenta que mostra os assuntos mais populares buscados no site. Nos últimos 12 meses, pesquisas no Brasil com os termos “Instituto Lula” e “Instituto de Pesquisas e Cidadania” tiveram o pico absoluto de buscas exatamente na semana de 28 de agosto a 3 de setembro, quando o vídeo foi publicado. Após uma denúncia da coligação “Brasil da Esperança”, da qual o PT faz parte, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ordenou, no dia 4 de setembro, que todas as postagens com esse conteúdo fossem excluídas das redes sociais.
Com os principais institutos de pesquisa de opinião do Brasil apontando vantagem de Lula sobre Bolsonaro na corrida presidencial, conteúdos falsos ou enganosos nas redes sociais que tentam descredibilizar as pesquisas de intenção de voto foram bastante compartilhados por apoiadores do atual presidente ao longo dos últimos meses. Só em 2022 o Comprova analisou 16 postagens sobre o tema, das quais 4 viralizaram da segunda metade de agosto para cá. Muitos posts repetem a expressão “Data Povo”, usada por Bolsonaro para destacar que a presença de apoiadores nas ruas seria capaz de desmentir as pesquisas.
Duas das 16 postagens sobre o tema analisadas pelo Comprova neste ano apostaram nessa estratégia. É o caso de um mesmo vídeo compartilhado por diversos apoiadores do presidente em março, e que somou mais de 1 milhão de visualizações. Trata-se do trecho de uma apresentação do humorista Sérgio Mallandro em um teatro em que ele perguntava ao seu público em quem eles iriam votar para presidente. A maioria da plateia responde efusivamente quando o nome “Jair Bolsonaro” é citado. “Quando a enquete é ao vivo, não tem como manipular! A verdadeira pesquisa… Data Povo não falha”, escreveu no Facebook o filho 01 do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (PL). Em outro vídeo, que também viralizou nas redes e foi checado pelo Comprova, a enquete aconteceu em um restaurante em Minas Gerais. O dono do estabelecimento pediu aos clientes que escrevessem em um papel o nome do candidato a presidente em quem iriam votar, e Bolsonaro ganhou de Lula por 212 a 57. “Dono de restaurante resolve fazer brincadeira e a verdade aparece”, escreveu um usuário que compartilhou o vídeo no YouTube.
Conforme explicou o Comprova, enquetes como as realizadas no restaurante ou em um show não podem ser consideradas pesquisas eleitorais porque não seguem qualquer tipo de método científico e, portanto, seus resultados são suscetíveis a distorções e vieses. Nas pesquisas eleitorais oficiais são levadas em consideração diversas variáveis para que o perfil (geográfico, étnico, econômico e de gênero) da população entrevistada seja condizente com o mundo real. “É como quando você está cozinhando uma sopa. Você não vai tomar a sopa inteira para ver se ela está salgada ou não. Basta misturar bem, deixá-la uniforme e provar apenas um pedacinho. Aquele pedaço que você prova é uma amostra, e aí você pode extrapolar para toda a panela de sopa”, explicou sobre o método das pesquisas eleitorais o professor Oswaldo Amaral, do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na checagem do Comprova sobre o vídeo do show de Sérgio Mallandro.
Outro conteúdo desmentido pelo Comprova foi um vídeo viral que editou trecho de uma edição do Jornal Nacional, da TV Globo, com o resultado da pesquisa Ipec do último dia 15 de agosto. No vídeo falso, a narração da jornalista Renata Vasconcellos e o gráfico com a intenção de votos atribuídos a cada candidato foram adulterados para inverter o resultado real: Lula com 44% e Bolsonaro com 32% das intenções de voto. A peça foi vista 2,5 milhões de vezes só no TikTok.
Já em um tweet de um perfil chamado Ariane Patriota, a fake news recorria a uma pesquisa eleitoral que jamais existiu. Na postagem, que somou 5,4 mil interações, a usuária afirmava que uma pesquisa do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) apontava que Bolsonaro teria 70% das intenções de voto. Nenhuma pesquisa com resultado semelhante estava registrada no TSE em nome do instituto, ou figurava entre as pesquisas já realizadas pelo órgão no site oficial do Ipespe. Em outro caso também checado pelo Comprova, um levantamento falsamente atribuído ao Paraná Pesquisas em janeiro deste ano mostrava Bolsonaro como líder das intenções de voto para presidente em todos os estados brasileiros, o que jamais aconteceu.
Já um vídeo compartilhado mais recentemente também no Twitter, em agosto, mostrava a gravação de uma suposta pesquisa de intenção de voto para presidente feita por telefone. Na peça de pouco mais de um minuto, uma voz de gravação automática anunciava que o entrevistado deveria digitar “1” para indicar voto em Bolsonaro em um eventual segundo turno e “2” para indicar voto em Lula. O entrevistado tentava teclar “1” várias vezes e, após alguns segundos, a mesma voz automática dizia que a opção “é inválida”. “Assim fica fácil manipular pesquisas”, escreveu o perfil que compartilhou o vídeo, visto mais de 142 mil vezes só no Twitter. O Comprova demonstrou que a gravação exibida no vídeo não pertencia a nenhuma pesquisa eleitoral oficial. Não havia no site do TSE qualquer registro de pesquisa com as características observadas no vídeo, isto é, que tenham sido feitas por telefone, com gravação automatizada e com a pergunta “e se houver um segundo turno entre Bolsonaro e Lula, hoje, em quem você votaria?”. O banco de dados com todas as pesquisas registradas no tribunal para este ano, e o formato que cada uma foi feita, pode ser consultado aqui. A legislação em anos eleitorais obriga que todas as pesquisas de intenção de voto sejam registradas no TSE e disponibilizadas no site da Corte.