Ilustração: Carvall
Crise do cuidado exige mais que amor – exige política pública
Campanha eleitoral pouco fala desse mercado de trabalho precário, destino quase biológico para mulheres negras
Recentemente participei de uma oficina sobre gênero na qual perguntei às participantes: o que mudaria na sua vida se o machismo acabasse? As respostas foram tão conhecidas quanto significativas. Três delas chamaram a minha atenção. Diziam as participantes que teriam menos medo de andar na rua, teriam mais tempo e, a que mais me tocou, receberiam mais cuidado. Eu lembrei, então, da minha tia.
A minha tia adoeceu muito cedo. Alzheimer. Era dona de casa, cuidava de tudo e ficou doente. A sorte, se é que sorte tem alguma coisa a ver com isso, foi que a doença só apareceu depois que meu tio se aposentou. Ele conseguiu tempo para cuidar integralmente dela, que estava sempre perfumada e com unhas e cabelos pintados. Há algo de revolucionário em crescer observando um homem branco cuidando de uma mulher negra. Isso te impede de naturalizar certas coisas. Minha tia partiu recebendo cuidado, carinho, amor e tendo a dignidade que a doença cismava em lhe roubar.
Quantos de nós podemos esperar pelo mesmo fim? Pela devoção integral de alguém que nos ama? E quando sobrevivemos, por sorte ou azar, a nossa rede de apoio? O problema dessas perguntas não está na constatação da liquidez de nossas relações ou na crueldade da dependência na velhice, mas de seguir colocando o cuidado como algo decorrente unicamente do afeto e do amor.
É assim que o trabalho de cuidado ainda é visto: quem ama, cuida. E apesar de não ser mentira, a frase nos impõe uma exigência de amor quase inatingível. Um amor que exige sacrifício e anulação de quem se é, medidas que, muitas vezes, não dependem da vontade de quem quer cuidar. Muitas demandas de cuidado exigem coletividade ou rede para serem satisfeitas.
Por isso, outra leitura do cuidado se faz necessária. Cuidado como política, como construção coletiva de relações, como estrutura de relação de trabalho. Com essa guinada, podemos problematizar o cuidado a partir de diversos vieses.
Pensando em suas interseccionalidades, é impossível não perceber que, no mercado de trabalho, quem cuida é a mulher negra. É o nicho de trabalho ocupado majoritariamente por mulheres negras, que possuem vínculos precários, poucos direitos e salários baixos. São babás, cuidadoras, técnicas de enfermagem e terceirizadas da limpeza.
A desvalorização do cuidado como trabalho faz com que as aptidões que lhe são inerentes, como afeto, paciência, compaixão e resiliência, sejam igualmente menosprezadas. Tornam-se da essência feminina e não algo a ser cultivado por todos os indivíduos e, principalmente, retribuído economicamente.
Em termos de estrutura de mercado de trabalho, o desprestígio dessa função leva à depreciação de quem a presta. Se outrora eram as amas de leite que faziam o papel da matrona que se sacrifica e cuida, hoje são as mulheres negras que seguem desempenhando esse encargo. Em um espiral que torna causa e efeito indistinguíveis, as mulheres negras seguem nos trabalhos de cuidado mais precários e esses seguem como nicho de mulheres negras.
Vejam, o problema não está na mulher que presta o trabalho de cuidado ser negra, como eram as escravas. Quando se fala que o trabalho doméstico lembra o trabalho na casa grande, não é essa a referência que se faz. O problema é o trabalho de cuidado ou doméstico como destino único, quase biológico. É a falta de mobilidade, de perspectiva, de possibilidade e, porque não, de liberdade. É falta de direitos, de visibilidade social, de atenção.
Por outro lado, ainda pensando em estrutura de mercado de trabalho, é interessante observarmos como nosso modelo de trabalho comporta o trabalho de cuidado. Se o feminismo liberal der certo, e as mulheres se emanciparem pelo trabalho para o mercado, quem vai cuidar das pessoas? Mais uma vez a pergunta que deveria ser uma das tônicas dos debates: de que tipo de trabalho estamos falando?
Nas universidades, fala-se em conciliação da vida profissional com a vida pessoal e familiar. A ideia é trazer para o mercado de trabalho a adoção de parâmetros de dedicação que permitam à trabalhadora e ao trabalhador prestarem trabalhos de cuidado necessários em diversas etapas da vida, quer dos filhos, quer dos pais. Mais do que isso, no entanto, é preciso conciliar o trabalho com a própria vida.
Pensar o mercado de trabalho, pensar nessa estrutura construída pela política, pelo direito, pela economia e outros sistemas, implica refletir também sobre o cuidado, apesar de seu apagamento. Trazer o cuidado para o campo do trabalho regulável, enfrentar politicamente essa questão, seria dar o primeiro passo para a construção de relações laborais que permitam também ao trabalhador ser cuidador, quer por ter tempo para prestar pessoalmente o cuidado, quer por ter salário suficiente para pagar os cuidados que devem ser fornecidos pelo mercado. Os candidatos têm falado pouco disso até aqui.
Por fim, pensar o cuidado politicamente também é meditar sobre autocuidado. Pode parecer tolice falar em autocuidado, mas em um país com elevado uso de medicamentos para ansiedade e depressão, me soa estranho não tratarmos disso. Essa negligência do cuidado coloca o cuidado de si como um luxo, inacessível a muitas e muitos que não possuem tempo ou dinheiro para qualquer tipo de prática nesse sentido. O autocuidado não pode ser visto como um privilégio de classe, mas sim como algo acessível por meio de medidas simples e criativas.
A crise do cuidado está aí. São famílias equilibrando-se em soluções pontuais para problemas estruturais. São mulheres dedicando-se a um serviço desvalorizado, desprotegido e exigente. São indivíduos adoecendo por falta de autocuidado. Está na neurose por uma previdência minimamente segura, está na falta de creches, casa de repouso e médicos da família; está no abuso de álcool e remédios para dormir. A solução integrada desses problemas passa pela visão política do cuidado.