Ilustração: Carvall
Entre a tecnologia que discrimina e a caneta que não resolve
Polícias usam avanço tecnológico como desculpa para estratégias desastrosas na área de segurança
Enquanto você lê estas linhas, um policial está marcando em um mapa na parede os locais de ocorrências de crimes com um alfinete. Eu presenciei essa cena há uns anos em uma cidade grande e com recursos. Em certo sentido, aquela cena traduzia o ideário mofado e a gestão arcaica que vemos nas instituições policiais brasileiras. Apesar dessa cena, as polícias hoje têm aparecido no debate público pelo uso de novas tecnologias, claro, quando não estão envolvidas nos casos costumeiros de violência.
O tema do uso de tecnologias na segurança pública veio para ficar e está presente na campanha eleitoral. Durante sua entrevista ao Jornal Nacional, o candidato do PDT, Ciro Gomes, defendeu o uso de policiamento preditivo ou, nas palavras dele, “algoritmos que você pode antecipar manchas do crime e chegar antes, chegam a dizer sofisticadamente a hora e o local onde provavelmente acontecerão assaltos e homicídios”. Em seu plano de governo, o candidato propõe investir em “tecnologias avançadas de gestão do conhecimento, informação, comunicação e rastreamento” como formas de combater a criminalidade. Já o segundo candidato nas pesquisas, Jair Bolsonaro, propõe no seu plano a utilização de “amplo espectro de tecnologias disponíveis, como drones, inteligência artificial e perícia forense”. Entre os três primeiros colocados nas pesquisas de opinião, o que menos dá ênfase à tecnologia na segurança pública é Luiz Inácio Lula da Silva, tendo uma citação breve ao tema em seu plano de governo, sem mencionar quais tecnologias serão utilizadas e as áreas específicas.
Não é só no âmbito federal que o tema do uso de tecnologias na segurança pública tem sido presente na campanha eleitoral. As câmeras nas fardas dos policiais, por exemplo, têm animado a disputa pelo Palácio dos Bandeirantes: Rodrigo Garcia (PSDB) defende a tecnologia e promete expandir o número de equipamentos caso seja reeleito, e Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) vê a câmera na farda como um “voto de desconfiança para o agente de segurança pública”. Já em Goiás, o candidato à reeleição e líder nas pesquisas Ronaldo Caiado propõe o uso de “videomonitoramento com inteligẽncia artificial” especialmente no entorno de Brasília. No Ceará, o Capitão Wagner, líder nas pesquisas e famoso nacionalmente pela participação ativa nos motins policiais em 2020, prometeu investimento em tecnologias de reconhecimento facial, com foco em “combater o crime e não multar o cidadão”.
As diversas tecnologias têm papel importante na segurança pública e seus diferentes usos já fazem parte do trabalho dos policiais há anos. Mas é notável que a presença de tecnologias específicas na segurança pública tem marcado o debate público, principalmente a partir de 2018. O reconhecimento facial, as câmeras corporais e o policiamento preditivo são tecnologias que, cada uma à sua maneira, explicitam dilemas e pontos sensíveis do trabalho das polícias e sinalizam agendas relevantes para os próximos governantes que serão eleitos em outubro.
Já tratei em outro texto do uso de tecnologias de reconhecimento facial no Brasil e do quanto elas produzem discriminação racial. Muita coisa aconteceu desde a publicação do artigo, principalmente movimentos pelo banimento de tecnologias biométricas nos espaços públicos, como a campanha capitaneada pela Coalizão Direitos na Rede, as dezenas de Projetos de Lei protocolados em junho deste ano e a articulação que envolveu organizações do Recife. Essas ações incluíram o Brasil no movimento internacional de contestação do uso de tecnologias de reconhecimento facial em espaços públicos, pelo entendimento de que seu uso hoje significa discriminação de pessoas negras e um investimento no aumento do encarceramento no país que possui uma das maiores populações carcerárias do mundo. Apesar de todos os efeitos deletérios que o uso dessa tecnologia traz, sua presença está disseminada no território nacional. Virou um fato consumado.
As câmeras corporais (bodycams) têm sido alvo de controvérsia. Os que as defendem citam com frequência o caso de São Paulo como sinal inconteste do efeito dos dispositivos na redução da letalidade policial. Os que as criticam publicamente dizem que as câmeras inibem o trabalho do policial, como um freio que impede o pleno exercício do trabalho policial. Diferente do reconhecimento facial cujos prejuízos são conhecidos, bem documentados e discutidos, os efeitos produzidos pelas câmeras corporais são diversos.
Esses aparelhos têm sido usados em forças policiais em vários países no mundo, com resultados distintos, a depender do contexto e do objetivo a ser alcançado. Por exemplo, alguns modelos são acionados pelo policial que escolhe a hora que a gravação começa e quando ela termina, outros modelos são de gravação contínua ou híbrida (o dispositivo é acionado de forma aleatória em vários momentos do período de trabalho do policial). Outro aspecto que influencia nos resultados das câmeras é a presença ou não de instâncias de controle do seu uso, de acompanhamento do programa, avaliação das metas, responsabilização do mau uso, ou seja, sob qual estrutura de gestão esses mecanismos estão ligados. De nada importa um registro em vídeo de um mal feito se não há quem assista ao material e quem responsabilize o agente pelos seus atos.
Mais importante do que as câmeras corporais é a decisão e o comprometimento do comando da polícia e do governador com a redução da letalidade policial e com a melhora da relação dos cidadãos com os agentes. O exemplo de São Paulo demonstra que os dispositivos são uma ferramenta adicional a uma política pública de controle do uso da força e de aumento da responsabilização dos agentes. Se não houver esse compromisso, as câmeras só serão um péssimo investimento público em um contexto onde há escassez de recursos em áreas cruciais para melhoria da segurança pública.
Por fim, o policiamento preditivo tem despontado como um horizonte para onde candidatos e autoridades têm buscado caminhar. Em termos muito genéricos, os algoritmos de predição na segurança pública tem dois possíveis usos: prever quem cometerá crimes ou prever em qual local o crime ocorrerá. O primeiro uso, apesar de distópico, acontece na realidade. A Anistia Internacional pediu em 2020 para que a Holanda deixasse de usar algoritmos de policiamento preditivo que estavam discriminando cidadãos de países do Leste Europeu, classificando-os frequentemente como possíveis criminosos; segundo denúncias, o governo chinês tem usado os mesmos algoritmos para perseguir a minoria Uigur na região de Xinjiang; alguns desses softwares tem até mesmo utilizado informações de redes sociais, como o username do Instagram, como um indicativo de inclinação ao extremismo, principalmente quando o alvo são pessoas de origem árabe ou islâmicos.
Outro uso visto por muitos como menos prejudicial é o algoritmo de policiamento preditivo que auxilia na avaliação dos locais com maior probabilidade de ocorrência de crimes, o mesmo uso referido por Ciro Gomes em entrevista ao Jornal Nacional. Eles seriam como versões “melhoradas” das análises de manchas criminais (hotspots) já bem conhecidas das polícias. Ocorre que esses algoritmos têm se mostrado enviesados, e as respostas para contornar tal viés têm se mostrado desastrosas. O PredPol, talvez o algoritmo mais utilizado para policiamento preditivo, focaliza de maneira desproporcional bairros de maioria negra, latina e de baixa renda nos Estados Unidos. O CrimeRadar, criado no Brasil, indicava o bairro de Ipanema, um dos mais ricos da cidade, como mais predisposto à ocorrência de crimes do que a favela de Costa Barros.
Apesar deste texto crítico a algumas tecnologias, eu não sou “tecnofóbico” ou um ludista disfarçado. Sou entusiasta do uso de tecnologias na segurança pública. Minha pergunta é por que optar por tecnologias que já possuem histórico de efeitos nocivos para determinados cidadãos, além de serem caras, enquanto o controle de armas e munições usadas por policiais todos os dias é feito em papel e caneta nos batalhões de vários estados?