minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Ilustração: Carvall

colunistas

Muito além do bronzeamento artificial

Presença de negros e indígenas entre os eleitos para o Legislativo aumentou; questão racial deixa marcas expressivas na eleição deste ano

Flavia Rios | 13 out 2022_12h45
A+ A- A

Apesar do Censo de 2022 ainda não ter sido concluído, pesquisas amostrais do IBGE durante a última década já dão conta de que a população negra brasileira (somatório de pretos e pardos) crescerá em relação ao Censo de 2010. Sendo o maior país com população afrodescendente do mundo fora da África, o Brasil não poderia passar incólume a controvérsias, polêmicas e até memes envolvendo a questão racial nestas eleições tão decisivas para o rumo do país.

De maior representação política à direita até o bronzeamento artificial de candidato socialmente branco na Bahia, sem sombra de dúvidas, o tema da raça marcou a política eleitoral de 2022. Desde as divulgações por parte do TSE do perfil dos candidatos aos cargos executivos e legislativos, as redes sociais não perdoaram as manipulações classificatórias dos políticos. A faísca acendeu quando o vice-presidente da República, Hamilton Mourão (Republicanos), nestas eleições se autoclassificou como branco, ao invés de indígena como fez em 2018. O branqueamento eleitoral de Mourão não passou despercebido pelo humor ácido das redes sociais e houve quem dissesse que o bolsonarismo teria matado até mesmo o único indígena que havia em seu governo. Mourão, intimado pelo público, reclassificou-se nos dados oficiais e elegeu-se senador indígena pela república gaúcha. 

Arremessado ao Senado pela onda bolsonarista que varreu quase por completo os estados sulistas, Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, será o senador indígena contra os direitos dos povos originários que habitam este país. Basta ver que, na formação do referido Conselho, o governo prescindiu da presença de representantes dos povos tradicionais e também dos órgãos oficiais como Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Funai (Fundação Nacional do Índio), levando apenas ministros. Conforme já mostrei no artigo Bolsonaro na contramão da igualdade racial, o futuro senador já expressou em diferentes momentos seu pensamento sobre a temática étnica e racial, qual seja, a reprodução do nacionalismo da ditadura militar, em que a democracia racial é narrativa para silenciar lutas por direitos constitucionais de grupos racializados no país. Como indígena bolsonarista, Mourão faz política de branco.

Do Sul para o Nordeste, a temática racial pegou fogo na Bahia. Do primeiro para o segundo turno o prefeito da cidade de Salvador, ACM Neto, passou boa parte da sua campanha explicando para o público sua autodeclaração de cor. Com população majoritariamente negra e forte ativismo cultural e político, os baianos se surpreenderam ao saber que o candidato ao governo do estado, herdeiro de uma das maiores oligarquias do Brasil, se declarava como pardo. Frente às polêmicas geradas por sua classificação racial, há mesmo quem atribua a queda de suas intenções de voto às vésperas do primeiro turno a inúmeras tentativas fracassadas do governador de se justificar como pardo na cidade mais africanizada do Brasil. Bronzeamento artificial e filtros de Instagram que lhe garantiam tonalidades mais amorenadas ganharam memes nas redes sociais. Espalharam-se como rastilho de pólvora imagens de ACM Neto com cabelos black power e com pele de frango assado em máquina giratória nas padarias de domingo. Piada nas redes sociais e nas ruas baianas também, o candidato oligarca, apesar de ser aliado do presidente da República, não poderá ganhar apoio explícito de Bolsonaro neste segundo turno, porque disputa votos no estado em que Lula tem larga vantagem. 

Se a questão racial ganhou destaque de Norte a Sul em declarações de candidatos e nas suas classificações nos formulários oficiais do TSE, resta mostrar com mais detalhes quais foram os resultados das eleições de 2022, que tem como ineditismo ser aquela que possui maioria de candidatos negros em relação aos autodeclarados brancos (que sempre dominaram a política parlamentar), além de possuir maior presença de indígenas seja como candidatos, seja como eleitos. Embora o crescimento de candidaturas negras já seja notado desde as últimas eleições de 2018, em contraste com as eleições de 2014, primeiro ano em que a pergunta sobre cor passou a comparecer nos formulários eleitorais, em 2022  o crescimento expressivo de candidaturas negras tanto em partidos de direita como em partidos de esquerda, ainda que pese o fato real de que pessoas socialmente brancas se declararam como negras nestas eleições, inflando os números. Analistas mostram que há inconsistência entre autodeclaração e heteroidentificação no caso dos eleitos em 2022. Em outras palavras, é o modo ACM Neto de se classificar espelhado no resultado do pleito para a Câmara federal.

 

Diferentemente das eleições passadas para cargos estaduais e federais, em 2022 tornou-se obrigatória a medida que determina que partidos invistam proporcionalmente em candidaturas negras em termos de recursos financeiros do fundo eleitoral público e tempo de tevê. A medida aprovada pelo TSE foi pensada e articulada por parlamentares negros de esquerda e movimentos sociais e, ainda que tal norma objetivasse reduzir a sub-representação negra no parlamento e, consequentemente, melhorar a qualidade das matérias legislativas que afetam diretamente a vida da maioria da população brasileira, os resultados das eleições mostram que candidaturas negras (e brancas) das novas e velhas direitas também se beneficiaram do investimento público ampliando expressivamente sua presença no legislativo, o que poderia explicar a  inconsistência entre pessoas autodeclaradas negras nestas eleições.

Mesmo que figuras negras de direita e de extrema direita, que surfaram a onda do neoconservadorismo e reacionarismo dos últimos anos e que protagonizaram várias ações polêmicas contra os movimentos sociais antirracistas, tenham sido derrotadas nas eleições de 2022, a presença numérica de eleitos negros conservadores e até reacionários merece atenção. No entanto não se pode negar que causou aos movimentos sociais negros e a outros setores progressistas um certo alívio ao ver o fracasso eleitoral de Fernando Holiday, Sérgio Camargo e Douglas Garcia.

Para o campo da direita, vão-se os anéis e ficam-se os dedos. O ganho numérico e simbólico da direita em termos da representação política negra (ainda que pesem os erros e até oportunismos classificatorios e financeiros) e também feminina deve servir para abrir os olhos do campo progressista que faz leitura equivocada das lutas dos movimentos sociais negros, LGBTQIA+, feministas e indígenas, lidos erroneamente pela lente do identitarismo. Com bases sociais fortes, candidatos negros de direita e de esquerda serão cada vez mais tendências relevantes na política eleitoral daqui para frente.

Fonte: TSE

 

Os números não nos deixam mentir. Aumentaram as candidaturas negras para os cargos legislativos proporcionais e também cresceu a presença negra nos assentos do Congresso Nacional. De modo geral, a maior presença negra no parlamento indica renovação política em termos do perfil sociodemográfico e econômico, por um lado, e paradoxalmente, indica maior conservadorismo ideológico por outro. Explico: apesar dos autodeclarados negros eleitos serem, em sua  maioria, dos partidos de direita, suas origens sociais e patrimônio se distanciam dos candidatos brancos, sejam dos partidos progressistas, sejam dos partidos conservadores. É preciso notar ainda que pretos e indígenas são os dois grupos que se aproximam em termos econômicos, segundo suas declarações ao TSE.

Entre perdas e ganhos, é preciso olhar com lupa para identificar a consolidação de mudanças no perfil eleito na esquerda brasileira. No Rio de Janeiro, onde o bolsonarismo deita e rola desde as eleições de 2018, sublinhe-se, em contraste, a vigorosa presença das herdeiras de Mariele. O efeito Marielle esteve presente nas duas eleições passadas (2018 e 2020) e se fez presente nas de 2022. Um fenômeno cuja marca mais visível é o avanço de mulheres negras do campo progressista nas câmaras legislativas municipais, estaduais e federais.

Projeção de Marielle Franco, assassinada no Rio em 2018, no Congresso: número de mulheres negras candidatas vem crescendo – Foto: Roque de Sá/Agência Senado

 

O crescimento das direitas no Brasil, mesmo entre os grupos historicamente discriminados no país, não pode ofuscar a melhora qualitativa da representação indígena, LGBTQIA+ e negra. De 2018 para cá,  o número de indígenas na Câmara Legislativa federal passou de um para cinco. Sônia Guajajara (Psol-SP) e Célia Xakriabá (Psol-MG) triunfaram nestas eleições por São Paulo e Minas Gerais, e devem se consolidar como defensoras da agenda indigenista e ambientalista no Congresso. Dos cinco indígenas eleitos deputados, quatro foram eleitos por partidos de esquerda (PT e Psol),  sendo duas mulheres. Do outro lado, uma das indígenas eleitas é militar e bolsonarista, Silvia Waiãpi (PL), do Amapá.

A estratégia das novas diretas, como já pôde ser identificada desde as eleições de 2018, é deslocar-se da imagem de que são racistas elegendo candidatos indígenas, negros e mulheres, sequestrando assim o debate sobre a representatividade dos tradicionais movimentos negros, feministas e indígenas no Brasil. Mais do que eleger bancadas negras e femininas de direita, o novo conservadorismo já entendeu que não poderá mais apresentar-se na política enfrentando os direitos constitucionais sem bases sociais representativas e sem espelhar a diversidade da sociedade. Quem ainda não entendeu completamente esse desafio para a democracia brasileira foram as elites decisórias das esquerdas políticas. Candidaturas de mulheres, negras, LGBTQIA+ e indígenas não são ônus eleitoral, ao contrário, cada vez mais terão peso na política brasileira não apenas como eleitorado, mas também como partícipes do processo decisório. Mostram que representação de ideias também precisa vir acompanhada de presença, vivências situadas e valores, requisitos para a qualidade da vida democrática. Paradoxalmente estamos lidando com esses anseios de igualdade, reconhecimento e diversidade em contexto de institucionalização da extrema direita no Brasil.