Ilustração: Carvall
Bolsonaro na contramão da igualdade racial
Estratégias, ações e discursos do governo de extrema direita contrariam interesses da maioria da população brasileira
Durante o governo Bolsonaro não faltaram manifestações contrárias aos debates sobre o racismo e às políticas de enfrentamento das desigualdades e violências de cunho étnico-raciais. Além de palavras, também vimos neste governo ações deliberadas para impedir o avanço das medidas contra o racismo, além da desqualificação dos sujeitos de direitos de políticas de igualdade racial. Essa posição contraria a corrente e os rumos tomados pela sociedade e pelos últimos governos do período democrático.
A questão racial ganhou força desde o fim da ditadura militar e se tornou tema central na vida brasileira com a ascensão do debate sobre reserva de vagas para estudantes negros e indígenas no ensino superior. Desde então, o enfrentamento do racismo se tornou tema incontornável na esfera pública. Também não para de crescer a importância dessa temática para as políticas públicas brasileiras, já que as cotas se tornaram política de Estado e apresentam notáveis resultados especialmente para o ingresso de pretos e pardos e indígenas nas universidades brasileiras.
O estudo de Chantal Medaets, José Arruti e Flávia Longo mostra que, no Censo de 2000, os indígenas eram apenas 4.397 dos estudantes matriculados no ensino superior; duas décadas depois esse segmento conta com 72 mil estudantes, segundo o Censo da Educação Superior. Os dados mais recentes mostraram uma transformação significativa no perfil da população estudantil universitária, representada por mais brasileiros negros, mais mulheres, e mais estudantes das classes populares.
Na história recente, o país fez um percurso com altos e baixos, que deixaram rastros expressivos em direção à igualdade étnico-racial. Os últimos governos federais, da direita, do centro e da esquerda (PMDB, PSDB e PT, respectivamente), deixaram legados importantes para o enfrentamento do racismo, ainda que pese o fato de que algumas gestões avançaram mais do que outras.
Logo após a ditadura militar, durante o governo Sarney, por pressão dos movimentos sociais negros e no contexto do centenário da abolição, foi criada a Fundação Cultural Palmares (FCP), que se tornou com o passar dos anos um importante espaço liderado por especialistas e autoridades conhecidas e reconhecidas na promoção e valorização da cultura afro-brasileira. Seu papel foi tão destacado que, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, passou a ser ator relevante para o reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas, assegurada pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
Durante os governos de Lula, dentre as diversas ações para a institucionalização da igualdade e diversidade raciais, destacam-se grandes avanços na legislação que afetaram a vida dos afro-brasileiros, tais como a lei n.º 10.639/2003 e a lei n.º 11.645/08. As duas leis tratam da introdução do ensino das culturas e histórias afro-brasileiras e indígenas, respectivamente. Ambas foram fundamentais para garantir a revisão do material didático distribuído nas escolas, considerado inadequado dentro dos novos parâmetros que procuravam apresentar de forma positiva as contribuições das populações negra e indígena para a formação social brasileira. Além disso, as duas leis previam na formação de professores e outros profissionais da educação novas formas pedagógicas para combater o estereótipo, o preconceito e a discriminação racial no ambiente escolar.
Com Dilma, destaco a criação de duas leis fundamentais para a institucionalização das cotas no sistema educacional e no funcionalismo federal, que com seu desenvolvimento no país podem mudar de baixo para cima a composição demográfica das universidades brasileiras e dos quadros burocráticos e administrativos do Estado. São as leis 12.711/2012 e 12.990/2014. A primeira reserva vagas para estudantes egressos de escolas públicas, indígenas, pretos e pardos nas instituições de ensino federais.. A segunda reserva 20% das vagas de concursos do serviço público federal para candidatos autodeclarados negros.
Esse caminho em direção ao enfrentamento às desigualdades no país ganhou contornos diversos sob Bolsonaro. Já na sua campanha, durante as eleições presidenciais de 2018, a questão da raça apareceu no debate público, especialmente nas declarações depreciativas do candidato Jair Bolsonaro contra indígenas e quilombolas. E sua posição declarada de que em seu governo não haveria incentivo para titulação de terras quilombolas e indígenas.
No governo, Bolsonaro cumpriu a sua promessa de oposição aos direitos das populações quilombolas e indígenas. O governo também adotou a estratégia de manipulação simbólica da questão racial. Manteve perto de si figuras negras reacionárias, em especial Hélio Bolsonaro (Hélio Fernando Barbosa Lopes). O congressista Hélio Bolsonaro foi responsável, por exemplo, pela assinatura de um artigo na Folha de S.Paulo que se opunha abertamente à ação afirmativa no Brasil. Segundo ele, “cota racial, assim como várias ações puxadas pelo ‘movimento negro’, são meros programas partidários”. O deputado bolsonarista fingiu desconhecer que as ações afirmativas são políticas do Estado brasileiro.
A nomeação e sustentação de Sérgio Camargo para a presidência da Fundação Palmares foi outra estratégia de Bolsonaro para deslegitimar os espaços institucionalizados para dar conta das demandas relativas às populações negras rurais e urbanas. Em novembro de 2019, no mês da consciência negra, foi nomeado para o mais alto cargo dessa organização um político negro (até aquele momento completamente desconhecido no país) que defende abertamente a inexistência de racismo no Brasil e que se opõe explicitamente à própria existência de movimentos sociais negros e políticas de ação afirmativa. Ao contrário dos governos anteriores, o governo Bolsonaro nomeou uma pessoa que não estava tecnicamente preparada para o cargo. Além disso, não havia compatibilidade entre as suas ideias e a missão institucional da agência estatal. Faltava-lhe o apoio dos movimentos sociais negros e das organizações civis. Essa é uma ruptura com as estratégias democráticas e rotinas estabelecidas desde a redemocratização, quando os coletivos dos movimentos sociais foram consultados e formaram a sua própria representação dentro dos espaços estatais, com base nas demandas das populações de diferentes partes do país.
Na gestão de Camargo foi publicado o relatório Retrato do Acervo – A dominação marxista na Fundação Cultural Palmares 1988-2019, que chegou à conclusão de que 95% dos livros deveriam ser doados, porque desvirtuavam a missão da Fundação. Felizmente, a Justiça Federal concedeu em janeiro de 2022 sentença definitiva que proibiu a FCP de se desfazer dos livros. Reagindo à decisão judicial, o documento produzido por Sérgio Camargo seguiu divulgado nos canais da Fundação, dando publicidade à ideia de que seu acervo é “alheio à realidade do negro brasileiro”. A descaracterização da missão original da instituição deu mostras de que o governo pretendia corromper todos os princípios e histórias negras no interior do Estado brasileiro. Ao invés de Zumbi, Princesa Isabel. No lugar do protagonismo das lutas populares, as ações palacianas. No lugar do povo, as elites brancas.
De fato, no governo Bolsonaro há um claro retorno à ideologia propagada durante a ditadura militar. Por exemplo, no auge do debate internacional sobre o movimento Black Lives Matter, que levou o mundo a protestar e refletir sobre a violência racial, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, declarou que, ao contrário de outras partes do mundo, no Brasil não tinha racismo. Quando da morte brutal de Beto Freitas, assassinado pelo segurança do supermercado Carrefour, algo que impactou o mundo, o próprio Bolsonaro afirmou que os protestos em defesa de Beto não passariam de uma tentativa de importar conflitos externos (leia-se norte-americanos) que não faziam parte da sociedade brasileira.
Em seu levantamento sobre o combate ao coronavírus no Brasil, o epidemiologista Pedro Hallal identificou que a doença tinha sido mais agressiva entre os mais pobres e a população não branca do país. Essas informações, no entanto, foram censuradas pelo Palácio do Planalto, conforme a declaração do cientista na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia. O governo sonegou a informação, e coube à sociedade civil e a organizações científicas divulgar e analisar informações que mostrassem os impactos da pandemia entre as camadas mais pobres e negras..
O governo Bolsonaro andou na contramão nos caminhos das políticas de igualdade racial no país. Quando o país reconhecia a presença do racismo estrutural, Bolsonaro negava a existência de racismo no Brasil, alegava ser algo importado de fora. Quando o país clamava por reformas profundas nas políticas de segurança pública para a redução da mortalidade, encarceramento em massa e abordagens seletivas, o governo bancou o pacote Moro, que fortalecia a política genocida que atingiria especialmente jovens negros e periféricos. Quanto mais o Brasil era cobrado internacionalmente a apresentar medidas que assegurassem os direitos territoriais e coletivos das populações quilombolas e indígenas, mais o governo acelerava a sua política de destruição da Amazônia e fechava as portas do Planalto para as reivindicações dos povos originários e afrodescendentes, que viam seus territórios sendo saqueados.
Em seu governo, Bolsonaro tentou reimplantar a velha demagogia da ditadura militar (1964-85), segundo a qual não haveria discriminação nem preconceito racial e todas as pessoas seriam tratadas de forma igual no território nacional. Felizmente, a narrativa presidencial e governamental não colou. O Brasil segue sendo um país que quer trilhar os caminhos que levem à igualdade racial de fato e de direito. Contra a cartilha racista do governo Bolsonaro, o STF, por exemplo, reconheceu que o crime de injúria racial deve ser tratado como crime de racismo, isto é, julgado como crime inafiançável e imprescritível. Em descompasso com os discursos presidenciais e ações governamentais sobre a temática racial, o TSE aprovou medidas afirmativas que reduzem as desigualdades entre negros e brancos nas campanhas eleitorais, permitindo maior participação de candidaturas de pretos e pardos em melhores condições de competição, por meio da obrigatoriedade de distribuição proporcional de recursos financeiros de campanha e tempo de publicidade.
Diferentemente das posições do governo Bolsonaro, a maior parte da população brasileira reconhece a existência de racismo no Brasil, conforme atesta pesquisa do Datafolha. A metade da nação já é favorável às cotas tanto para estudantes de escolas públicas como para estudantes pretos, pardos e indígenas. Isto é, grande parte da população já entendeu que é preciso produzir leis e políticas nacionais antirracistas. O país descobriu a duras penas que não é negando o problema que o fará desaparecer. Essa lição, como várias outras, Bolsonaro não aprendeu em seu mandato. E ele será cobrado nas eleições de 2022 pela leitura errada que fez do povo brasileiro.
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