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    "Tudo piorou. Os que sobreviveram estão mais pobres, mais tristes, traumatizados e sequelados. Certamente não era necessário sofrer na pele para aprender." Marcelo Camargo/Agência Brasil

análise

O legado “positivo” do governo Bolsonaro

Gestão bolsonarista trouxe lições sobre o mercado financeiro e o lavajatismo, além de mostrar que governo indiferente ao sofrimento do povo é mazela pior do que a corrupção

Pedro Lange Netto Machado | 19 out 2022_14h16
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Passados quase quatro anos de pesadelo, a maior parte dos brasileiros tem vivas na memória as tragédias causadas pelo governo Bolsonaro. Crise econômica, crise social, crise sanitária, crise ambiental, crise na educação, crise institucional, crise nas relações internacionais… A lista é extensa, e fica ao (des)gosto do cidadão a área a se lamentar. Tudo piorou. Os que sobreviveram estão mais pobres, mais tristes, traumatizados e sequelados. Mas nem por isso devemos fechar os olhos às lições (potencialmente) positivas dessa experiência destrutiva. Vamos a elas.

A primeira diz respeito a um debate acadêmico de longa data, costumeiramente referenciado como o da “camisa de força” da globalização financeira. Segundo essa tese, governos que adotam uma política fiscal “irresponsável” tendem a ser punidos por agentes do sistema financeiro internacional. Isso pressionaria pela convergência da política econômica dos que se situam à esquerda e à direita do espectro ideológico em torno de preceitos da ortodoxia econômica, o que supostamente lhes garantiria a confiança do mercado, em benefício da economia nacional.

Mas o governo Bolsonaro nos mostrou que a camisa de força é, afinal, mais flexível do que parece. Em sua gestão, as regras fiscais do país foram destruídas, um orçamento secreto foi criado e a inflação voltou a galopar. A decretação de estado de emergência se tornou instrumental para objetivos eleitoreiros do governo, sendo imediatamente aprovado por parlamentares beneficiados pelo orçamento clandestino.

O cidadão razoavelmente informado poderia esperar que o mercado financeiro jamais apoiaria a reeleição de um governo que age dessa maneira. Mas alguns banqueiros e gestores de fundos de investimentos parecem avaliar que um novo mandato para Bolsonaro segue sendo interessante. Enquanto isso, agências de rating relativizam as medidas bolsonaristas, apontando que, passado o ciclo eleitoral, a agenda ultraliberal deverá ser retomada, ao passo que o candidato adversário tenderia a ser mais “intervencionista”.

Isso sugere que o mercado pode ser bastante paciente quando quer, inclusive quando variáveis macroeconômicas se deterioram descontroladamente. Fica aí a lição para futuros governos que pretendam fazer uso da expansão fiscal para fins mais nobres, como políticas sociais e investimentos públicos. Resta saber se investidores e suas instituições representativas só fecham os olhos quando a gastança é para comprar o Centrão e burlar a legislação eleitoral.

Um segundo legado positivo do governo Bolsonaro é o desmonte da Operação Lava Jato e, por tabela, o enfraquecimento do lavajatismo enquanto ideologia político-eleitoral. Os vícios da operação, politicamente contaminada e francamente antirrepublicana, influenciaram decisivamente o processo político e econômico nacional dos últimos anos. Pesquisas acadêmicas mostram os prejuízos econômicos que ela causou ao país, enquanto o impeachment de Dilma e a vitória de Bolsonaro em 2018 foram condicionados por seus desdobramentos. Perpassando esses eventos, um inegável efeito da Lava Jato foi potencializar a desilusão e indignação da população brasileira com seu establishment político, o que estimulou a opção eleitoral por um candidato demagogo e (supostamente) antissistema no pleito de 2018.

Bolsonaro teria saído vitorioso sem que a operação tivesse existido? Exercícios contrafactuais como esse são complexos, dada a multicausalidade de qualquer fenômeno político e social. Mas é inegável que a Lava Jato favoreceu a vitória populista naquele contexto, tendo sido peça relevante na “tempestade perfeita” de então. O governo Bolsonaro, contudo, foi bastante competente para desmoralizá-la, descredenciando tanto seus líderes quanto seu modus operandi. Caberá ao governo seguinte dar prosseguimento ao serviço prestado, ao mesmo tempo em que promove o combate à corrupção por vias legais e que não comprometam o sistema político ou as cadeias produtivas do país.

A terceira herança positiva está relacionada à anterior. A gestão bolsonarista ensinou (com maestria) ao povo brasileiro que a corrupção está bem longe de ser o maior problema do Brasil. Não que ela não seja um problema, longe disso. Mas aprendemos da pior maneira que ter um governo irresponsável e indiferente às mazelas do povo e que debocha da morte e do sofrimento alheio é infinitamente mais nocivo à sociedade. E tudo isso, claro, enquanto práticas corruptas provavelmente seguem ocorrendo.

Não à toa, a corrupção perdeu espaço na opinião do brasileiro como maior problema do país. Se no ápice da Lava Jato ela ocupava o topo da lista, desde a eleição de Bolsonaro outras questões sociais se tornaram mais problemáticas para a maioria da população. Paralelamente, a percepção sobre a corrupção no Brasil cresceu ao longo do governo Bolsonaro. Isso sugere estar em curso uma reorganização de prioridades na cabeça do cidadão, na esteira da experiência traumática do bolsonarismo. Como resultado, a estratégia de esconder sob o manto da moralidade a ausência de propostas para temas como saúde e educação tende a perder eficácia para captar votos.

Não só desgraças, portanto, nos serão legadas pelo quatriênio 2019-22. Há lições valiosas a serem compreendidas, para além das que aqui foram apontadas. Certamente não era necessário sofrer na pele para aprender. Mas isso é o que ocorre quando estamos diante de uma escolha fácil e ainda assim fazemos a opção errada.