minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Ilustração: Carvall

colunistas

O que a eleição tem a ver com bolo de chocolate

Mulheres são pobres de tempo – e isso tem relação direta com o transporte precário e a exploração no emprego

Bárbara Ferrito | 20 set 2022_10h47
A+ A- A

Minha pesquisa de mestrado foi sobre pobreza de tempo e sobre como ela afeta as mulheres: em diversas pesquisas feitas ao redor do mundo sobre o uso do tempo, em todas elas, sim, em todas elas, as mulheres figuram como pobres de tempo. E não é difícil ver por que esse tema me tocou tanto, basta observar as mulheres da minha família. Além da minha mãe, a minha madrinha também era pobre de tempo. Professora do estado com várias matrículas, ela também vendia cosméticos. O que significa que, além de trabalhar na escola, corrigir provas e preparar aulas, ela precisava vender os produtos, indo, de ônibus, até potenciais clientes, levando as compras, passando pedido. Fazia isso sem desoneração dos serviços domésticos, era uma exímia cozinheira. E, apesar de estar sempre correndo e atarefada, arranjava um tempinho para fazer meu bolo favorito aos fins de semana.

Esse tema deveria ter muita relevância nas eleições que se aproximam. Pobreza de tempo. Desde a década de 1970, a pobreza tem sido vista a partir de dois aspectos, dos rendimentos e do tempo. Encarar o tempo como medidor de desenvolvimento e bem-estar é perceber que nem tudo pode ser monetizado. A vida precisa também de tempo. Se podemos mandar a roupa para a lavanderia, teremos que guardá-la, se compramos uma lava-louça supermoderna, teremos que abastecê-la, se mandamos as crianças para a creche, teremos que buscá-las. Mas, principalmente, relações e desenvolvimento exigem tempo de dedicação e cuidado.

Por outro lado, a pobreza de tempo não é a nossa eterna sensação de não conseguirmos dar conta de tudo. Na sociedade estimulante de hoje, a gente quer aprender quatro idiomas, fazer nossa própria pasta de dente, viajar o mundo, reciclar, salvar os animais. É normal não termos tempo para todas as coisas que gostaríamos de fazer, isso não é ser pobre de tempo. Pobreza de tempo tem a ver com a falta de tempo para coisas básicas, como trabalhar ou dormir. Por isso que o tema se torna sensível nas eleições.

Encarar a pobreza a partir da lente do tempo é perceber, por exemplo, que estruturamos cidades com péssima mobilidade. Quem suporta o custo disso são as trabalhadoras e trabalhadores que precisam dispender duas horas no transporte público por trajeto para chegar ao trabalho. Ainda que o empregador tenha obrigação, por lei, de pagar boa parte desse custo, quem entra com o tempo de vida são as trabalhadoras. São pessoas que precisam comer no transporte, estudar no transporte ou mesmo dormir. Se pensarmos em um trabalhador com necessidades específicas ou dificuldade de locomoção, o tempo gasto com o transporte coletivo pode ser ainda maior.

A pobreza de tempo passa também pela qualidade dos serviços públicos. Se, para ir ao médico, a pessoa precisa amanhecer na fila do hospital e passar o dia todo ali para uma simples consulta, quem arca com o custo do dia de trabalho pode ser o empregador, mas é o trabalhador que perde seu tempo, bem tão precioso, nas longas filas de hospitais, clínicas, postos da previdência, bancos. E, nesse grupo, as mulheres são as mais afetadas, já que são a maioria das acompanhantes de pessoas que necessitam de cuidado. Se pensarmos no mercado autônomo ou informal, percebemos que o trabalhador suporta integralmente o curso, econômico e temporal, da precariedade desses serviços.

Assim, a pobreza permanece e se reproduz pela manutenção da exploração do tempo. O tempo para locomoção ou para fruição de serviços públicos é retirado do patrimônio de pessoas que, muitas vezes, já são pobres de rendimento, gerando um agravamento da situação dessas famílias.

 

Se economia e violência são as grandes pautas das eleições de 2022, pobreza de tempo também é – ainda que não seja mencionada com este nome. A precariedade de transporte coletivo, de mobilidade urbana e de serviços públicos afasta muitas pessoas de empregos, de oportunidades, na medida em que o dia de 24 horas não comporta a demanda de tempo para dedicação ao mercado e dedicação ao cuidado.

Ao contrário do que se poderia imaginar de início, esse não é um tema para eleições municipais. Nas grandes metrópoles, principalmente, pensar em mobilidade urbana exige solucionar um problema que envolve diversas cidades. É facilitar mais do que a aquisição de veículos próprios, a vida sem um desses. As poucas medidas adotadas nesse sentido, no entanto, focam no custo monetário do transporte urbano, que também precisa ser melhorado, mas e o tempo despendido nesse transporte?

A pobreza de tempo afeta muito o mercado de trabalho e não há como pensar em organizar a economia e vencer a crise de emprego sem enfrentar também o viés temporal da pobreza. Passa por questões de saúde e segurança, já que o trabalhador vai chegar já cansado ao emprego, se enfrenta duas horas para chegar ao trabalho, abalando também sua produtividade. A necessidade de ter mais de um emprego, também afeta, em muitos casos, a qualidade de vida do trabalhador, e esse fenômeno muitas vezes decorre da crise dos salários.

A minha madrinha nunca reclamou da vida. Ela naturalizava a correria. Mas, para mim, é difícil não pensar, na nostalgia do seu bolo de chocolate, em quantos perrengues poderiam ser evitados se ela não precisasse de dois empregos, ou se ela pudesse contar com um serviço de transporte de qualidade. Ao longo da vida, ela conseguiu melhorar a sua situação financeira, mas seguiu pobre de tempo. Tempo que poderia ser revertido em cuidado de si e resultado em mais bolos de chocolate.