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    O presidente Jair Bolsonaro durante o lançamento de um pacote de medidas econômicas no Palácio do Planalto, em maio Foto: Gabriela Biló/Folhapress

colunistas

O silêncio dos donos do poder

Patrões ajudaram a derrubar Dilma e a eleger Bolsonaro, pois brasileiros endinheirados se sentem mais confortáveis com regimes autoritários – tomara que dessa vez não

Marcelo Paixão | 16 ago 2022_10h31
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Nas últimas semanas, o Brasil presenciou a publicação de quatro diferentes manifestos em apoio à democracia. Ao protagonizado pelos eméritos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), orgulhosa e humildemente, se somou o autor destas linhas. Outro desses documentos foi encabeçado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e ainda outro por uma coalizão que, embora constituída por diferentes entidades da sociedade civil, é liderada por entidades com interesses no agronegócio. Em todos esses manifestos aparece o nome de pessoas que pertencem à elite econômica do país. Isso é um bom sinal. Nem sempre ao longo da história brasileira os ventos sopraram nessa direção.

Em qualquer contexto, manifestações a favor da democracia serão sempre bem-vindas. Se esses nomes e entidades pertencerem ao mundo dos negócios, ainda mais. Afinal, trata-se de gente cujas decisões de investimentos e gastos inequivocamente determinarão não somente o ritmo da economia mas do conjunto da sociedade em diferentes planos. No Brasil como em qualquer outro local do mundo. Contudo, acompanhar o posicionamento político da elite econômica brasileira é importante porque nos permite a colocar no centro de nossas atenções para além das revistas de fofoca sobre celebridades e das colunas sociais. É quase um truísmo dizer que somos um país marcadamente violento, desigual e autoritário. O seríamos se nossas elites econômicas tivessem uma mentalidade oposta a esses valores?

Ao longo dos anos 1950 e 1960, uma das maiores polêmicas da esquerda nacional dizia respeito à “teoria da revolução brasileira”. Segundo uma dessas vertentes, uma fração significativa da burguesia nacional, premida pelas necessidades de ampliação do mercado interno e pela concorrência do capital estrangeiro, se colocaria a favor de reformas sociais que levassem à distribuição da terra e a uma posição mais altiva perante o sistema econômico internacional. Essa hipótese, que a linha oficial do Partidão classificava de “revolução por etapas” (significando que a luta pelo socialismo somente aconteceria após essa transformação social prévia), apesar de dominante, nunca foi unânime junto a outros segmentos progressistas descrentes da suposta vocação esquerdista da elite nacional.

De qualquer forma, se os sonhos de parte da esquerda brasileira acerca de uma suposta vocação revolucionária da elite industrial brasileira parecem delírios, talvez devêssemos indagar mais detidamente o porquê de ela não ter sido revolucionária.

Os livros de história ensinam que o nascimento do sistema capitalista ocorreu a partir de rupturas com a velha ordem. Foi assim na Inglaterra (1642-51, 1688), na França (1789, 1830, 1848) e nos Estados Unidos (1861-1865). Em outros países, como Itália, Alemanha e Japão, a transição se deu no último quarto do século XIX pelo modelo da “revolução passiva”, no conceito de Antonio Gramsci. Essa variante implicava na transformação da antiga para a nova ordem através da liderança de segmentos da velha aristocracia, não se associando aos sobressaltos políticos das experiências inglesa, francesa e americana. Por outro lado, nos países de modernização retardatária, a ausência de rompimento com o passado absolutista se associou a um crescente descontentamento com as então potências hegemônicas no plano global. Aqui não há elogio ao ocorrido. Sabemos que dessa disputa nasceram conflitos interimperialistas e a emergência, por toda parte, de nacionalismos exacerbados e das trágicas consequências posteriores. Mas a comparação dessas experiências com o Brasil não deixa de ser um bom exercício.

Florestan Fernandes, na sua versão da teoria da revolução burguesa no Brasil, nos legou uma preciosa reflexão sobre as transformações sociais ocorridas no país desde a independência. É a ideia de que a sociedade brasileira se desenvolve a partir de “circuitos fechados”. Como entender esse conceito? Trata-se de um modelo de sociedade no qual os novos setores emergentes ou nascem de dentro das entranhas da velha ordem ou, senão, são cooptados econômica, política, social e culturalmente para se somarem aos tradicionais donos do poder – aqui, tal como o título deste artigo, tomando de empréstimo a denominação do clássico livro de Raymundo Faoro.

No Brasil, os setores industriais emergentes, imigrantes estrangeiros, protestantes de diversas denominações (que em outros países séculos atrás contribuíram para a queda do absolutismo), média e pequena burguesia mais prósperas, cada um ao seu modo e ao seu tempo, jamais representam rupturas com o sistema anterior. Isso também vale para sua adesão passiva aos termos de um modelo de capitalismo dependente e periférico (de financiamento, investimentos, tecnologias e valores culturais) em relação ao mundo economicamente mais avançado.

Em suma, o circuito fechado implica o longo processo de modernização conservadora da sociedade brasileira sob controle das antigas elites, aliadas aos novos segmentos empresariais que despontam a cada ciclo histórico. Do ponto de vista social, esse modelo implica em uma amarga combinação entre o pior do mundo patrimonialista (grande propriedade agrícola, sequestro do Estado pelo interesse privado, vida social regida pela lógica do mando e do favor) com a ordem capitalista selvagem (individualismo, concentração de renda, ausência de direitos sociais). A acomodação entre os de cima seguidamente supera o conflito ou a abertura para novos horizontes históricos mais progressistas, mesmo dentro dos limites da ordem do mercado.

Essa lógica impregnou igualmente a experiência da esquerda no governo entre 2003 e 2016 com sua multicolorida e disforme “base aliada” e acordões de qualidade duvidosa com segmentos do velho coronelato (e que, afinal, um dia tanto lhe custaria). Tal como dizia o historiador José Honório Rodrigues, trata-se da longa trajetória de conciliação das elites brasileiras, tradição que as primeiras décadas deste século ensinaram, engloba também seus filhos ou afilhados rebeldes.

Mas agora já não temos mais esquerdistas barbudos circulando em Brasília. Eles foram substituídos por um novo arranjo, uma parte significativa dele ligada aos setores mais dinâmicos da economia brasileira como, por exemplo, uma folgada maioria do agronegócio entre outros ramos econômicos. De mãos dadas com o antigo latifúndio de origem escravocrata, milicianos, fundamentalistas religiosos e parasitas sociais de todo tipo. É, Florestan, o circuito fechado parece não ter mesmo fim.

Só pode haver elogios aos segmentos dos donos do poder econômico que hoje se integram aos milhões que se recusam a serem governados por um regime grotesco que é uma ditadura militar, paramilitar ou civil. Que sejam bem-vindos. Porém, há dias em que a gente acorda ranzinza e cisma chamar copo d’água não completo de meio vazio. Não se trata de desmerecer o esforço da Fiesp. Mas, até o início de agosto, 86% de seus sindicatos afiliados não haviam assinado o manifesto pela democracia. Outras federações patronais de importantes estados industriais como Rio de Janeiro, Minas Gerais ou Rio Grande do Sul também não o fizeram. Isso fora o mundo das confederações de representatividade nacional. Dessas, nenhuma aderiu aos manifestos ora em circulação. Onde estão as da Indústria, do Comércio, dos Transportes, da Agricultura neste instante tão traumático da vida política nacional? Passeando? Mimindo?

A presença de empresários e federações patronais nos manifestos em defesa da democracia é digno de nota. Mas a ausência de uma fatia maior do empresariado brasileiro nessas mobilizações são motivo, sim, de viva preocupação. Por que essa intrigante indiferença de segmentos mais amplos da classe empresarial brasileira diante dos desmandos em série que tomou conta do Brasil? Como decifrar esse ensurdecedor silêncio da maioria?

A primeira parte deste artigo indica o que poderiam ser as dimensões histórico-estruturais de fundo desse problema. Porém, a cultura autoritária dos donos do poder econômico no Brasil ganha mais concretude analisando-se a história brasileira nos últimos sessenta anos. Está devidamente registrado nos anais da história que a elite nacional participou ativamente das articulações em prol do golpe de 1964 e do endurecimento do regime em 1968. Sua adesão ao movimento das Diretas foi muito tímido e mais recentemente, de forma praticamente unânime, a classe patronal brasileira apoiou o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, as draconianas medidas antipopulares impostas pelo conspirador Michel Temer e a eleição do atual mandatário. Esses instantes da vida nacional não são divagações de cientistas sociais ou historiadores. É o modus operandi do circuito fechado.

No artigo da semana retrasada que escrevi para a piauí carreguei nas tintas acerca da importância das mídias sociais no avanço da extrema direita no Brasil e no mundo. Mas, pensando bem, isso é apenas meia verdade. Se a sociedade fosse diferente, as palavras e expressões que movimentam os motores de busca também o seriam. A internet vem se transformando em um instrumento do despotismo porque há na sociedade gente à espera de um déspota. Mas por que um país que até pouco tempo atrás podia se jactar perante o mundo de sua vibrante democracia hoje acha-se assediado pelos umbrais da tirania?

Segundo o relatório da Oxfam A Distância Que Nos Une, no Brasil, medindo-se pelo parâmetro da riqueza acumulada e não somente a renda auferida mensalmente, “o 1% mais rico concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74%”. De acordo com a mesma fonte, entre 2000 e 2016, o número de bilionários tropicais havia crescido de 10 para 31, possuindo em conjunto um patrimônio de 424,5 bilhões de reais. Depois da Covid, certamente esse número cresceu. Uma nação conhecida pela criatividade de seu povo, infelizmente, não fomos nós que inventamos o telefone celular, a bateria de lítio ou a computação quântica. Num país onde o número de famintos, desempregados e analfabetos se conta aos milhões, a pergunta que não quer calar é: como é que essa moçada conseguiu reunir tanta grana?

Por outro lado, com todas as suas contradições, o cenário institucional aberto pela Constituição de 1988 abriu as portas para os movimentos sociais, inclusive o negro, que foram cabais e eficientes em dizer que esperavam que o regime democrático fosse a via para o enfrentamento do grande e duradouro drama brasileiro que são as desigualdades sociais, raciais e de gênero. Nas conclusões da minha A Lenda da Modernidade Encantada supus que a sociedade civil brasileira teria maturidade para gerenciar os conflitos derivados da pororoca dessas duas visões de mundo em choque. Infelizmente, ela não o teve.

Seja como for, o atual cenário do país é produto dessas contradições. Vivemos um tempo em que os donos do poder econômico são mais um grupo dominante do que uma elite dirigente no sentido de sua capacidade de agregar maiorias qualificadas ao seu redor baseada em sua visão de mundo e projeto de sociedade e país. De resto, não há como se ter hegemonia burguesa em um país economicamente estagnado, com índices de desigualdades sociais e pobreza voltando aos patamares de antigamente e moralmente assediado por milicianos, garimpeiros e fundamentalistas religiosos.

Simultaneamente, há novo tempo grávido por emergir mas que não encontra suficientes forças para se constituir em uma alternativa viável. Sim, mais uma vez estou recorrendo a Gramsci. E à sua sombria profecia para as dialéticas de um tempo histórico assim constituído no qual o velho não morre e o novo não nasce. Esse interregno é o alvorecer do tempo da morbidez. Porém, ainda que no horizonte paire esse quadro horroroso, será que estamos condenados a ele?

Será que a adesão de uma parcela ainda minoritária dos donos do poder econômico às mobilizações pela democracia não estaria representando um novo tempo de autocríticas e diálogos? Não estamos nos iludindo acerca de vocações revolucionárias ou ímpetos transformadores. Fora uma ou outra exceção de algum filantropo, excêntrico ou visionário, a elite empresarial nacional já deixou evidente ao longo da história que esse jamais será seu caminho. Mas seriam aquelas assinaturas a senha para indicar que nesse meio começa a despontar o consenso de que a democracia e os direitos individuais e coletivos seriam o patamar mínimo de nossa sociabilidade? Será que as visões de mundo em choque, de resto fatos normais em uma sociedade moderna minimamente sã, não poderiam encontrar novas sínteses onde o oponente fosse somente um rival e não um inimigo a ser aniquilado no campo de batalha?

No comando da nação há atualmente um alucinado falando em metralhar, destruir e eliminar os que não são de seu feitio. Cada tempo tem o Domingos Jorge Velho que merece, e o capitão e seus capangas parecem mesmo dispostos a fazer o serviço sujo. No caso, a busca da resolução do conflito distributivo no Brasil, em prol das classes dominantes, na base do pescoção e do extermínio. Terão os empresários e entidades representativas que assinaram o manifesto pela democracia influência suficiente sobre seus pares que se calam neste momento para demovê-los de suas históricas inclinações reacionárias?

No país da mania de ter fé na vida, pode ser até mal-educado ficar imaginando o pior. Mas, tal como canja de galinha, realismo não faz mal a ninguém. A história brasileira ensinou que os endinheirados se sentem mais confortáveis com regimes autoritários. Tomara que dessa vez não. Pois se aquela tendência prevalecer junto aos donos do poder econômico, para desgosto de seus segmentos mais lúcidos e na contramão do glamour das colunas sociais e das revistas de futricas, o chicote e o chumbo seguirão compondo seu retrato no álbum de fotografias do amanhã.