Lula no evento realizado na Assembleia Legislativa da Bahia em agosto de 2021 Foto: João Ramos/BA
Obaluaê na mira da intolerância religiosa
Mês de purificação para religiões de matriz africana, agosto é tempo de agressões e preconceito contra fiéis; em vídeo, Michelle Bolsonaro criticou participação de Lula em ritual do candomblé
Na madrugada do dia 24 para o dia 25 de agosto de 2021, enquanto dormia, Pai Thiago de Oxum recebeu uma mensagem de Obaluaê, orixá da saúde e da cura. Trajando sua tradicional veste de palha que cobre o rosto, o orixá apareceu descalço num sonho. Sem falar, entregou ao pai de santo um balaio de palha gigantesco, com muitas e muitas pipocas dentro, apontando para a direção oposta de onde estavam. O cenário era de seca: o chão em que pisavam era de terra batida, com rachaduras e coloração terrosa. Ao receber o balaio do orixá, Pai Thiago foi caminhando lentamente pelo sertão onírico até se encontrar com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora novamente candidato ao Planalto. Frente a frente com Lula no sonho, o pai de santo jogou as pipocas sobre o político.
Ao acordar no terreiro de candomblé Ilê Asé Osun Dárà OlowoBaluayê, em Simões Filho, cidade da região metropolitana de Salvador, Pai Thiago correu para o jogo de búzios, espécie de linha telefônica direta entre o plano terreno e o dos orixás. As conchas mal tocaram o tabuleiro quando o veredito se fez decisivo: Pai Thiago tinha como missão banhar o ex-presidente Lula de pipoca. O pedido vinha diretamente de Obaluaê, para que o candidato “viva mais anos pela frente e assuma o posto de presidente”. Para religiões de matriz africana o banho de pipoca é uma espécie de “limpeza espiritual”. “É uma troca de energia. Eu passo o grão na pessoa e qualquer energia ruim vai pro grão, enquanto a energia do grão vai pra pessoa. Quando o grão cai no chão, tudo que é ruim se desfaz porque o solo é poderoso, é o que sustenta nossa energia vital. Passamos o deburu [milho, em ioruba] para termos paz, vida e saúde com abundância”, explica o sacerdote.
Em 25 de agosto de 2021 estava marcado no Auditório Jornalista Jorge Calmon da Assembleia Legislativa da Bahia o evento “Combater a Fome e Reconstruir o Brasil”, organizado pelo Instituto Lula e pelo PT. Seria um evento fechado por conta da pandemia, mas Pai Thiago foi convidado a participar por Jairan Andrade dos Santos, a Dekka Direitinha. Negra, falante, de riso farto, ela trabalha há vinte anos como baiana de receptivo (mulheres que se “montam de baiana” para receber autoridades e turistas em eventos corporativos e no aeroporto), além atuar como assessora parlamentar do deputado estadual Rosemberg Lula Pinto (PT-BA) e ser fundadora do bloco feminino As Direitinhas (“chama ‘As Direitinhas’, mas é todo mundo de esquerda”, como gosta de pontuar). No dia, eles estavam acompanhados também de Taís Viana, pedagoga e mestranda em educação e contemporaneidade pela Uneb, irmã de sangue (e de fé) de Pai Thiago.
Ao final do evento, foi difícil driblar líderes dos movimentos sociais, convidados, apoiadores e parlamentares para chegar perto de Lula. “Foi pior que pipoca do trio elétrico do Chiclete com Banana. Mas eu tinha uma missão e estava focado nela. Obaluaê me pediu”, relembra Pai Thiago. Quem abriu os caminhos foi Dekka. Por ter recepcionado Lula, Dilma e outros figurões petistas, ficou amiga do fotógrafo e fiel escudeiro de Lula, Ricardo Stuckert. Num vídeo gravado pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e postado no Facebook no dia seguinte do evento, 26 de agosto de 2021, é Dekka quem aparece agarrada ao ex-presidente com “vestes de axé” e máscara “vermelho PT” enquanto Pai Thiago joga pipoca e diz bênçãos em iorubá com uma roupa de axé vermelha. Taís é o terceiro elemento no vídeo, entre Pai Thiago e Dekka. A missão estava cumprida e o trio dormiu em paz naquela noite.
A poucos dias para que o evento completasse um ano, uma enxurrada de mensagens inunda o telefone de Pai Thiago. O sacerdote não estava muito conectado com o celular porque estava há quase um mês recluso no terreiro, dedicado a trabalhos espirituais e a iniciação de alguns filhos de fé no terreiro. Percebeu que algo estava errado. E estava.
O vídeo que o deputado Paulo Teixeira havia publicado no Facebook, quase um ano antes, fora repostado no feed do Instagram da vereadora Sonaira Fernandes (Republicanos-SP) com a legenda “Lula já entregou essa alma para vencer essa eleição. Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje, para não ser proibido de falar de Jesus amanhã”. Horas mais tarde, a primeira-dama Michelle Bolsonaro repostou o vídeo na mesma rede social com a legenda “Isso pode, né! Eu falar de Deus, não”.
A esposa do presidente Jair Bolsonaro postou a publicação no modo “stories”, cujo conteúdo desaparece após 24 horas, mas, para o pai de santo, essas 24 horas foram muito mais longas que isso. “Sou jovem, tenho 29 anos, mas sou diabético e hipertenso. Tomo medicação controlada de manhã, de tarde e de noite. Passei muito mal com a repercussão e tive que ir ao posto de saúde mudar meus remédios”, diz o sacerdote. “Aquele momento foi algo especial, foi um momento em que pedimos ao Orixá para que o abençoasse para que ele pudesse enfrentar todas as demandas políticas que viesse pela frente. Ali estávamos alinhando nossas crenças políticas e religiosas de forma democrática e legítima. Ver o que a primeira-dama e demais políticos que compartilharam o vídeo além de vexatório foi muito doloroso”, completa Taís Vianna, pedagoga e irmã de fé e de sangue de Pai Thiago.
Lula, pelo número de Ricardo Stuckert, ligou para Dekka às 9 horas de quarta-feira para acalmá-la. “Ele falou que ficou triste com o ocorrido e para eu ficar bem, não levar pro coração. Farei isso, mas quero justiça. A de Xangô [orixá da justiça] e a dos homens também.” Dekka, Pai Thiago e Taís Vianna pretendem entrar com uma ação contra a deputada e a primeira-dama pelas postagens alegando intolerância religiosa.
Agosto é um mês desafiador para os fiéis de religiões de matriz africana. É quando ocorre o sabejé, ritual candomblecista no qual mulheres saem às ruas levando na cabeça balaios com as chamadas “flores de Azoany ou Omolu ou Obaluaê”, pipocas jogadas nas pessoas como sinal de purificação, muito parecido com o ritual feito com Lula. O ritual é gratuito, a contribuição de quem quiser doar é voluntária, e o dinheiro arrecadado é destinado para a festa dedicada aos orixás Azoany, Omulu e Obaluê. “Sempre houve uma tentativa de ‘demonização’ dos rituais, mas foi a partir de 2017 que começamos a receber denúncias de grupos majoritariamente femininos com relatos de ameaças de agressão física e estupro contra mulheres”, explica Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Amerindia (AFA).
De 2017 a 2021 chegaram à associação 21 relatos de ameaças a grupos formados por mulheres no período do sabejé (um em 2017, seis em 2018, oito em 2019, nenhum em 2020 e seis em 2021). Não há ainda um balanço parcial do que vem acontecendo neste agosto. Embora a associação tenha atuação nacional, os pedidos se concentraram no estado da Bahia, onde a prática é mais comum. Neste ano, com a proximidade das eleições, a AFA entrou com um pedido junto ao Ministério Público do Estado da Bahia para reforçar a segurança de religiosas que vão às ruas. O pedido foi aceito pela promotora Lívia Vaz, responsável pelos casos de intolerância religiosa na promotoria. Segundo o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, ligado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do governo da Bahia, desde 2017 foram ao todo 645 casos registrados de racismo, intolerância religiosa e temas relacionados. Apenas de janeiro a julho deste ano foram 69 notificações. Em 2021 foram 128 no total. O ano de maior número de denúncias foi em 2019, 148.
Reportagem da piauí mostrou que, em 2021, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou 581 denúncias de ataques à liberdade religiosa – um aumento de 140% em relação a 2020, quando ocorreram 242. Na contabilidade das vítimas de agressão no ano passado, a umbanda aparece em primeiro lugar, com 65 denúncias, seguida do candomblé, com 58.
Em períodos eleitorais, a situação fica ainda mais perigosa, avalia Monteiro, da AFA. “É preciso ter um cuidado muito grande neste momento eleitoral. A gente nota que sempre em ano eleitoral grupos neopentecostais ocupam mais as ruas, com informes e panfletos [de seus candidatos], o que faz com que a temperatura nas ruas acirre”, completa Monteiro, que se diz preocupado com as ameaças sofridas vindas de grupos evangélicos. O livro Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?, escrito pelo bispo Edir Macedo e publicado em 1997, é uma das obras evangélicas mais vendidas na história – foram mais de 3 milhões de cópias desde o lançamento. Em 2005 a impressão da obra foi suspensa pela juíza Nair Cristina de Castro, da 4ª Vara da Justiça Federal da Bahia, por encontrar ali incitação à intolerância religiosa. No entanto, um ano após a proibição, o veto caiu, e a Unipro Editora (vinculada a Igreja Universal, a qual o bispo é fundador) segue até hoje editando o livro.
Em maio deste ano, num evento público em Itaboraí, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, o pastor Felippe Valadão disse aos moradores da cidade que se preparassem “para ver muito centro de umbanda sendo fechado pela cidade”. Valadão tem tem mais de 1.100 milhão de seguidores nas redes.
A própria Michelle Bolsonaro, evangélica, esteve no centro do debate sobre intolerância religiosa em dezembro de 2021, quando foi filmada por apoiadores falando em línguas. Segundo crenças pentecostais, este é o idioma falado pelo espírito santo, portanto, algo que não pode ser ensinado, diferente de como ocorre com idiomas como inglês e espanhol. O dom se manifesta quando a pessoa recebe uma alta carga de emoção ou felicidade, como foi na confirmação de André Mendonça como ministro no Supremo Tribunal Federal. Na época, Michelle virou alvo de zombaria, motivando pastores, deputados e até prefeitos (como Eduardo Paes, do PSD, no Rio de Janeiro) a sair em defesa dela. “Lamentável quantos posts, a partir dessa notícia, cuspindo preconceito contra a fé dos outros. São os mesmos que vivem reclamando de discriminação. Minha solidariedade à primeira-dama. Que ela possa manifestar sempre sua fé com liberdade. Em tempo: é a minha opinião. Se você tem a outra, ok”, publicou Paes em seu Twitter na época.
O número de evangélicos cresce exponencialmente no Brasil, segundo o Censo: no ano de 2000, em torno de 26,2 milhões de pessoas se disseram evangélicas, 15,4% da população. Em 2010 o número saltou para 42,3 milhões, 22,2% da população. É um eleitorado disputado por todos os partidos. E a postagem da primeira-dama, meses antes do primeiro turno das eleições presidenciais, mira diretamente esse grupo.
Se no passado Michelle Bolsonaro foi responsável por introduzir o marido ao mundo evangélico (Bolsonaro se converteu em 2016, nas águas do Rio Jordão, pelas mãos do Pastor Everaldo, presidente nacional do Partido Social Cristão), atualmente a primeira-dama tem a missão de aumentar a popularidade do marido entre as mulheres evangélicas. Segundo dados do último Datafolha, 29% das evangélicas declaram apoio a Bolsonaro enquanto 25% declaram apoio a Lula. Os números, segundo o instituto de pesquisa, são considerados empate técnico.
Enquanto isso, para quem só quer viver seus rituais, a intolerância religiosa deixa marcas dolorosas. Pai Thiago está acamado desde que o vídeo viralizou. “Não tenho vergonha de ser candomblecista, tenho vergonha de ser assimilado a um satanás que eu não cultuo. Estou com vergonha de ir para rua e ser assimilado com diabo que não conheço, de sofrer agressão em nome de um Deus que tenho certeza que não prega a violência”, completa. E o que será do sabejé? “Teremos, óbvio, mas ainda não sei como porque não quero colocar meus filhos em risco. Mas tenho fé em Obaluaê, ele me indicará um caminho.”
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