A pastora Katia Ezoite Teixeira Silva, líder de uma igreja evangélica na Baixada Fluminense: “Tem muito irmão passando fome e desempregado. Acho que isso vai pesar no voto deles.” CRÉDITO: JULIA CRUZ_2022
A outra voz de Deus
Pastores evangélicos tentam conciliar a religião com a pauta progressista
O menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, caiu do nono andar de um prédio de luxo no Recife no dia 2 de junho de 2020. A mãe da criança, Mirtes Renata Santana de Souza, era empregada doméstica e havia deixado o filho sob os cuidados da patroa, enquanto levava para passear o cachorro dos seus empregadores. O Brasil estava em quarentena, as aulas haviam sido suspensas, e Souza não tinha com quem deixar seu filho. A patroa, Sari Corte Real, autorizou o filho da empregada a entrar sozinho no elevador. Ele foi até o nono andar e despencou lá de cima.
No Morro do Sapo, uma favela no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, esse episódio deixou a pastora Katia Ezoite Teixeira Silva muito agoniada. No primeiro domingo de julho, ao subir ao púlpito da Igreja Evangélica Projeto Além do Nosso Olhar, ela decidiu que falaria sobre justiça. Nos dias que antecederam a pregação, pediu inspiração a Deus. Na hora do culto, inflamou-se ao falar na pregação sobre a tragédia de Miguel e Mirtes. No púlpito, ela disse ao microfone:
Que país é esse em que nós estamos em que os crentes não denunciam o pecado do racismo? Ficam dentro de sua igreja na sua de “olha pro céu, pro céu, pro céu, pro céu”. E aqui na Terra, cadê o Reino de Deus? A Sua justiça? É hora de a igreja abrir a boca. É hora de a igreja falar. Porque as empregadas domésticas estão dentro de sua igreja. Principalmente da igreja pentecostal. Mulheres negras, pobres, faveladas. Essas mulheres que sofrem. Eu chorei com aquela mãe [de Recife], porque poderia ter sido meu filho.
O discurso expressivo de Teixeira Silva viralizou nas redes sociais.
O templo modesto da Igreja Evangélica Projeto Além do Nosso Olhar, com 84 m2 de área e cobertura de telha de amianto, fica no alto de um morro íngreme. Bem ao lado da igrejinha, numa casa igualmente pequena e modesta, vivem Teixeira Silva, de 50 anos, e seu marido, o pastor Jairo dos Santos Silva, de 54 anos.
Magra, de estatura mediana, a pastora já foi babá e empregada doméstica. “Levava meus filhos para o trabalho quando meu marido não podia ficar com eles em casa. E minha mãe também foi empregada. A filha de uma de suas patroas chegou a bater no rosto dela. Tudo isso ficou marcado na minha história”, diz ela, sentada ao lado do marido sobre uma cadeira de plástico do templo. “Sempre debato esses assuntos da sociedade com minha família. E nos perguntamos: como Jesus agiria? Ele silenciaria? Quando oramos na igreja, pedimos para nós e para o outro. Então, precisamos sentir a dor do outro. Naquela pregação, eu senti a dor daquela mãe.”
O casal de pastores vem de famílias muito pobres e cresceu no Morro do Sapo. O avô e o pai de Jairo dos Santos Silva foram pastores da Assembleia de Deus, em Duque de Caxias, e por causa da criação rígida ele era proibido de jogar futebol e bola de gude ou empinar pipa. A família de Kátia Teixeira Silva também frequentava a Assembleia de Deus, mas seu pai, além de incentivá-la a ler a Bíblia, a estimulava a estudar e debater as questões do dia a dia. Essa educação fez dela uma evangélica questionadora.
Aos 13 anos, ela se viu um dia com um único calçado para ir ao culto de domingo da Assembleia de Deus: uma sandália. Como o pastor de sua igreja proibia o uso de sandálias pelas mulheres, ela foi interceptada na entrada do templo e advertida de que só poderia entrar se trocasse o calçado. Ela resolveu questionar a regra. Perguntou onde na Bíblia estava escrito que mulheres não podiam usar sandálias. “Eu disse que Jesus tinha usado alparcas. E alparcas, eu aprendi lendo o dicionário com meu pai, significava sandália. Se Jesus usou, eu também usaria”, recorda Teixeira Silva, que foi chamada de abusada, mas acabou tendo a entrada liberada.
As igrejas evangélicas pentecostais mais tradicionais, como a Assembleia de Deus, não ordenam mulheres pastoras. Mas as mulheres ocupam cargos sociais de liderança na comunidade, à frente de áreas como assistência social e ensino de crianças e jovens. Também atuam como conselheiras em grupos de mulheres. Em sua trajetória, Teixeira Silva realizou todas essas funções.
Quando ela se casou, o marido estava afastado da vida religiosa, pois ficara traumatizado com a educação excessivamente rígida que tivera. Aos poucos, ele retomou a religião, ao lado da mulher, frequentando igrejas menos severas. “Sentíamos um incômodo com as questões doutrinárias. Em muitas igrejas evangélicas mais opressoras, os pastores ficavam sentados no altar, em cadeiras pomposas, como se fossem reis, o centro de tudo. Só eles pregam, só eles sabem, só eles curam. E o evangelho estava sempre voltado para a espiritualidade, pensando no Céu, na eternidade, sem tratar dos desafios da sociedade”, diz ele.
Há doze anos, quando fundaram a Igreja Projeto Além do Nosso Olhar, o casal já havia adquirido outra perspectiva do evangelho em sua pregação. “Buscamos um equilíbrio entre o espiritualizar e o humanizar. Reconhecer que somos também cidadãos”, afirma Santos Silva. “Essa questão de você espiritualizar tudo e ignorar o aspecto social das pessoas é fugir do contexto da vida de Cristo. Jesus é filho de Deus, mas também se fez carne, como nós. Um homem de família pobre.”
A pastora diz que em sua igreja, como em outras da periferia, há uma vivência de vida compartilhada e solidária. “Distribuímos cestas básicas, e cada irmão oferece o pouco que tem para aquele que tem menos.” Mas ela e o marido perceberam que a solidariedade apenas não era o suficiente para lidar com os desafios de uma igreja em um contexto de muita pobreza e violência. “Nos faltava essa visão social. As pessoas que vêm até nossa igreja são trabalhadoras. E muitas congregações não debatem a injustiça no trabalho. O que acontece no Brasil hoje? Os trabalhadores perdendo seus direitos. Nós somos protestantes. Então é para debater. Não só o espiritual. A igreja é reflexo da sociedade”, diz Teixeira Silva. “Muita gente entra aqui porque está sofrendo, está machucada, esperando uma palavra.”
Alguns evangélicos, segundo a pastora, saem do morro e vão às igrejas pentecostais maiores que pregam a teologia da prosperidade. Mas, quando a situação financeira aperta, são as pequenas igrejas da periferia que os atende. “Há muitas denominações religiosas iludindo o povo, dizendo que o fiel precisa dar para receber. Muitos fiéis querem ouvir que ficarão prósperos se darem isso ou aquilo. Mas aqui não trabalhamos com barganha, falamos de prosperidade de forma mais ampla: aquela que vem com políticas públicas que garantam emprego e saúde. Alguns entendem, outros não”, diz ela.
Seu marido comenta que as igrejas que pregam a teologia da prosperidade tem que apresentar um templo luxuoso para encher os olhos. “Mas como vamos falar em teologia da prosperidade aqui no morro? Com essa igreja pobre em que pregamos?” Ele acha que as igrejas que fazem diferença social e culturalmente “são os templos das comunidades que orientam o jovem que pensa em entrar para o tráfico de drogas e auxilia o casal que está em crise no casamento.”
Em sua igreja, cada fiel doa o que pode, caso possa, sem pressão. Os que não têm para doar, recebem cestas básicas. A fim de promover a distribuição de alimentos, além de aulas de reforço para crianças e jovens, o casal de pastores prefere recorrer ao terceiro setor. Eles fazem parte de iniciativas sociais, como o Movimenta Caxias, um coletivo de direitos humanos, onde têm contato com lideranças de religiões diferentes da deles. Perto da igreja comandada pelo casal, há terreiros de candomblé e umbanda. Os pastores convivem harmoniosamente com os vizinhos e combatem dentro da igreja o preconceito e o racismo religioso contra os credos de matrizes africanas.
Teixeira Silva considera, intimamente, o aborto uma escolha difícil para as mulheres, mas é a favor de sua legalização como política pública, em casos de risco à saúde e à segurança da mulher. Nas rodas de conversas entre as fiéis que promove, quando o assunto da violência doméstica vem à tona, a pastora não apenas recomenda que elas orem, mas as ajuda a buscar proteção com a Justiça.
Em 2018, por insistência do filho mais velho, a pastora decidiu ir atrás de um sonho: estudar pedagogia. Passou no vestibular da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, um campus de pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em Duque de Caxias. No dia 17 de agosto passado, a convite da professora Luciana Alves, ela levou para a sala de aula três vizinhas que integram sua igreja no Morro do Sapo, para que elas contassem às estudantes suas experiências como trabalhadoras domésticas.
Havia mais de cinquenta alunas na sala, mais da metade era negra e quase todas eram a primeira da família a entrar para uma universidade. Teixeira Silva falou que levava o filho Wesley ainda pequeno para o trabalho e que a patroa se afeiçoou a ele, a ponto de dizer que colocaria um de seus bens em nome do menino. “Aquilo me assustou. Eu tinha medo de que ela o pegasse de mim por ser muito rica.” Ana Paula da Costa, uma das vizinhas da pastora, contou que deixou o filho pequeno com uma tia para que pudesse trabalhar como babá de uma menina. A dedicação exclusiva dedicada à criança dos patrões fez com que a garota passasse a chamá-la de mãe. Ao mesmo tempo, ela perdeu o vínculo com o seu filho, que resolveu chamar a tia de mãe. “No Dia das Mães, ele dá parabéns para a tia, não para mim. Já conversei com ele, expliquei que nunca o abandonei, que foi uma necessidade. Fui cuidar de outra criança e perdi o amor do meu próprio filho”, disse.
As mulheres na sala de aula se emocionaram. Uma jovem que se apresentou como Gabriela tomou a palavra. “Que sociedade é essa que impõe uma carga de trabalho que faz com que as mulheres abram mão de criar seus próprios filhos para trabalhar? E que sociedade é essa em que a responsabilidade por uma criança depende exclusivamente das mulheres? Onde estão os pais?”
No ano em que a pastora entrou para a universidade, outra professora preparou uma roda de conversa parecida. O tema era o voto dos evangélicos na eleição daquele ano. Teixeira Silva conta que, durante o debate, uma colega de sala disse que os evangélicos haviam ajudado na eleição de Bolsonaro, pois votaram em massa nele. Quando a pastora disse às colegas que não havia votado em Bolsonaro, quase metade das alunas revelou que, embora fossem evangélicas, também não haviam votado em Bolsonaro. “Dizer que os evangélicos são todos iguais e que pensamos da mesma maneira é uma coisa que me incomoda”, afirma ela.
Nas últimas décadas, o Brasil vem passando por um processo intenso de transição religiosa. A porcentagem de católicos no país caiu de 83,3% para 64,6%, entre 1990 e 2010, enquanto o de evangélicos subiu de 9% para 22,2%, no mesmo período, de acordo com o Censo de 2010. Segundo projeções, o Censo que está sendo realizado neste ano deverá mostrar que os católicos representam hoje uma porcentagem inferior a 50% e os evangélicos, superior a 30%.
Em 2010, muitas cidades já não contavam com uma população majoritariamente católica. O Censo daquele ano apontou que em 34 municípios da região Sudeste, a mais populosa do país, o número de evangélicos havia superado o de católicos. O município de Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde fica a igreja Projeto Além do Nosso Olhar, está entre as sete cidades fluminenses em que a maioria da população é formada por evangélicos: são 315 mil evangélicos, enquanto os católicos chegam a 300 mil. A população evangélica brasileira de cerca de 42 milhões passou a constituir um eleitorado crucial no país.
O primeiro deputado federal evangélico, Guaracy Silveira, foi eleito em 1933 e era do Partido Socialista Brasileiro. Na mesma época, a Confederação Evangélica Brasileira lançou um documento a favor de um Estado laico e da superação das desigualdades sociais. Seguindo esta tradição progressista, alguns grupos de evangélicos surgiram recentemente no país, como o Conselho de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, a Aliança de Batistas do Brasil e o coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero.
A maioria das igrejas atuais, no entanto, tem perfil conservador. E há raras exceções de pastores progressistas na periferia do Rio de Janeiro, como Júlio César da Silva Oliveira – que lidera a Comunidade Batista, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio – e o pastor Vladimir de Oliveira – da Igreja Cristã Redenção, em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Ambos avaliam que a esquerda tende a se aproximar dos evangélicos apenas em ano eleitoral e não sabe como se comunicar com os crentes. “A aproximação de partidos de esquerda nos períodos eleitorais não se dá de forma orgânica, não forma base. Por isso a esquerda está sempre correndo atrás do prejuízo com o eleitor evangélico”, diz o pastor Vladimir. Para o pastor Júlio César, a esquerda usa uma linguagem política muitas vezes elitizada, além de demonstrar preconceito com as igrejas evangélicas da periferia. “Você primeiro precisa entrar nas igrejas da periferia e ouvir, mais do que falar, tendo sensibilidade para entender a linguagem e abrir um caminho de comunicação. Os fiéis percebem quando há discriminação e preconceito daquela pessoa que está se comunicando com ele.”
A campanha eleitoral começou oficialmente no dia 16 de agosto. Em 2 de setembro, o instituto Datafolha publicou uma pesquisa mostrando que, entre a população em geral, Lula tinha 45% dos votos, e Bolsonaro, 32%. Entre os eleitores evangélicos, entretanto, a situação é o inverso: Bolsonaro tem 48%, e Lula, 32%.
As principais lideranças pentecostais e neopentecostais apoiam Bolsonaro. Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Abner Ferreira, liderança da Assembleia de Deus de Deus Ministério de Madureira, Edir Macedo, fundador da Universal do Reino de Deus, e R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça, são as principais forças evangélicas que manifestaram apoio publicamente ao atual presidente.
As vozes dissonantes sofrem represálias. É o caso do pastor batista Sergio Dusilek. Durante um ato em apoio a Lula no início de setembro, Dusilek criticou Bolsonaro e disse que a igreja evangélica devia pedir perdão a Lula: “ O senhor não foi alvo só da injustiça do Judiciário brasileiro.” A fala causou alvoroço no meio evangélico. Pastores de vários estados pediram a destituição de Dusilek da presidência da Convenção Batista Carioca. No dia 13 de setembro, Dusilek renunciou ao cargo alegando ser alvo de ataques e de um política de cancelamento que, segundo ele, pastores apoiadores de Bolsonaro não sofrem.
Autor do livro A Religião Distrai os Pobres? (Edições 70), o cientista político Victor Araújo ressalta que na eleição presidencial de 2002, que elegeu Lula presidente pela primeira vez, os evangélicos não votaram massivamente no PT. Mas na reeleição de Lula, em 2006, eles deram uma expressiva votação ao candidato petista. Em 2010, católicos de baixa renda continuaram a votar no PT, mas os evangélicos, sobretudo pentecostais, começaram a deixar de votar no partido. “De acordo com lideranças evangélicas, o PT não cumpriu alguns compromissos assumidos com o grupo. E então uma grande parte dessas lideranças passou a mobilizar o eleitorado de baixa renda contra o partido, recorrendo ao argumento de que, uma vez no poder, o pt passou a defender bandeiras antifamília, pró-aborto e outras que iam de encontro ao interesse dos cristãos”, afirma Araújo. “Em algum momento, o PT perdeu esse eleitorado e não conseguiu recuperar.”
O cientista político alerta que não se deve subestimar o peso da moral para o evangélico pentecostal de baixa renda. “Existe um limite para a questão do voto econômico. Essa ideia de que o eleitorado pensa no bolso, na inflação, no desemprego, não serve para todos os eleitores. Os pentecostais são mais avessos à esquerda porque são o grupo religioso mais conservador do ponto de vista da moral no Brasil. Para muitos deles, a crise econômica importa, mas menos que os valores morais”, diz Araújo. “O teto da esquerda entre esse eleitorado é baixo. O Lula vai tentar continuar conversando com os evangélicos, mas dificilmente vai superar 40% dos votos nesse segmento.”
A preocupação com a crise econômica e com os valores morais se misturam para o eleitorado evangélico de baixa renda, segundo a pesquisadora Magali do Nascimento Cunha, do Instituto de Estudos da Religião (Iser). “Não é só uma questão religiosa. O cuidado com a família é importante para o evangélico e vai além da moral, pois diz respeito a políticas públicas que o governo Bolsonaro não correspondeu em relação ao emprego, à educação e à saúde”, diz Cunha, autora do livro A Explosão Gospel: Um Olhar das Ciências Humanas Sobre o Cenário Evangélico no Brasil (editora Mauad).
O sociólogo Matheus Alexandre, autor da dissertação de mestrado Tornando-se um evangélico progressista: trajetória e formação dos valores políticos, avalia que a esquerda tem dificuldade em entender a diversidade e pluralidade das igrejas, cultivando a ideia equivocada de que a bancada evangélica no Congresso representa a visão de mundo do evangélico da base. Ele diz que a estratégia do PT de tentar abrir diálogo com evangélicos por meio de lideranças religiosas fundamentalistas só fortaleceu essas lideranças conservadoras na esfera pública. “É preciso que a esquerda engaje os fiéis em processos de reivindicação, construa núcleos setoriais para evangélicos no interior dos partidos e crie um movimento que mostre que não há contradição entre ser evangélico e de esquerda.”
Nos últimos tempos, a pastora Kátia Ezoite Teixeira Silva viu aumentar consideravelmente o número de moradores do Morro do Sapo que recorrem à igreja pedindo cestas básicas e se queixando da falta de emprego. “Tem muito irmão passando fome e desempregado. Acho que isso vai pesar no voto deles.” De repente, durante a entrevista à piauí, ela suspende a linha de raciocínio e diz: “Mas tem a questão da família também. Para o evangélico, proteger a família é muito importante. O Bolsonaro soube trabalhar isso muito bem na última eleição. O Lula terá que fazer o mesmo.”
Há ainda o enfrentamento com as fake news. Teixeira Silva foi procurada recentemente por um crente, que perguntou a ela, alarmado, se Lula iria fechar as igrejas. É a mentira mais recente que os bolsonaristas vêm espalhando para tentar reverter a vantagem de Lula nas pesquisas. A pastora respondeu ao crente que isso não era verdade. “Mostrei a ela um vídeo de quando o Lula era presidente e leu um documento defendendo a liberdade religiosa diante de uma plateia de vários pastores conhecidos.”
No domingo à noite, no Morro do Sapo, quatro jovens negros vestidos de jeans, camiseta e tênis foram os primeiros a chegar na Igreja Evangélica Projeto Além do Nosso Olhar. Eram os integrantes da banda de louvor musical. Primeiro, o baixo e a guitarra foram dedilhados. Depois, entrou a bateria, compondo uma melodia suave que gradativamente ia ficando mais intensa. O baterista era Kesley Teixeira Silva, filho mais novo de Kátia Ezoite Teixeira Silva e Jairo dos Santos Silva. O vocalista da banda, Cláudio Sabino, disse: “Que Deus traga nossos irmãos em segurança até a igreja”. O Morro do Sapo é dominado pelo tráfico de drogas.
Os fiéis começaram a chegar, pouco a pouco. Ajoelhavam no chão, apoiavam o corpo sobre as cadeiras de plástico e faziam uma oração em silêncio. Há uma máxima que diz que, nas igrejas evangélicas históricas, os fiéis vão aos templos para falar sobre Deus. Nas pentecostais, eles vão para falar com Deus.
O casal de pastores entrou acompanhado do filho Wesley Teixeira, que é candidato a deputado estadual pelo PSB. Em poucos minutos, havia 25 pessoas na igreja. O vocalista cantou: “Só nesse lugar o medo perde a vez e dá lugar pra fé./Capaz de me levar à paz que excede todo entendimento./Quem vê de fora não entende./Como é que estão de pé?/Como eles conseguiram?/A resposta é que eu vivo de milagres.” Os fiéis acompanhavam a música de olhos fechados.
Era Dia dos Pais, e Santos Silva fez a pregação naquele domingo. Falou da luta de Davi com o gigante Golias. Das motivações de Davi para proteger Israel, da disputa por territórios. Citou o povo da Ucrânia, que sofre com a guerra. Avançando na narrativa, comentou: “Quando olharmos para o propósito de Deus, meus irmãos, acredite, não é sobre você adquirir dez propriedades, carros, riquezas, quando muitos não têm nada. O propósito de Deus nunca foi uma vida dividida entre os seres humanos: aqueles que têm muito e quem não tem nada. Aleluia!” E os fiéis repetiram: “Aleluia!”.
Naquele dia, metade dos frequentadores do culto era jovem, havia uma quantidade considerável de mulheres e quase todos eram negros. Não houve nenhuma manifestação de proselitismo político da parte dos pastores, nem citação alguma ao filho que faz política. Depois da prédica do marido, Teixeira Silva pediu bênçãos aos pais presentes e às mães que criam sozinhas os seus filhos.
Na igreja não há uma hierarquia de fala: todos podem se expressar no momento que desejam. Uma mulher pegou o microfone e orou: “Se há alguma família aqui se sentindo desprezada, abatida, se há um irmão que entrou nessa igreja hoje se sentindo só e perdido, abraça essa família e esse irmão, meu Pai. Não deixe faltar o pão de cada dia. Cuida da família cujo marido, filho, irmão saiu neste fim de semana de casa e não voltou. Vai dando vitória, Senhor, e restaurando casamentos.”
Maria Albertina, de 69 anos, se aproximou da Igreja Evangélica Projeto Além do Nosso Olhar há dez anos, em busca de conforto espiritual depois que dois de seus irmãos foram assassinados no mesmo dia. “Enterrei eles de manhã, e às seis da tarde, aceitei Jesus. Estava sofrendo muito.” Foi nas aulas de Wesley Teixeira na igreja que Albertina aprendeu a ler e a escrever. Em eleições passadas, ela votou em Lula, mas na última escolheu Bolsonaro, porque conhecia pouco os outros candidatos. Neste ano, votará em Lula novamente, revelou, “porque é o candidato do Wesley”.
A dona de casa Nusinete Silva de Jesus, de 52 anos, disse que, na última eleição, votou em Lula. Quando a piauí contou que Lula não havia sido candidato em 2018, ela estranhou. Garantiu que tinha votado nele. Levou um tempo até que se esclarecesse que ela havia votado em Fernando Haddad. “As ideias de Bolsonaro não são compatíveis com o que eu penso sobre a vida. Ele fala sempre de um jeito debochado, agressivo. Esse ano vou de Lula”, disse. A filha dela, Amanda Jesus da Silva, de 22 anos, é mãe solo e acha que não é a religiosidade do candidato que importa, mas as suas propostas. “Não vejo verdade em Bolsonaro. Estou há meses sem conseguir trabalho. Os alimentos estão caros. Nele não voto”, afirmou.
Quando o culto acabou, a pastora disse a todos que partissem na paz de Deus – e com cuidado. “Avisa quando chegar em casa”, pedia Teixeira Silva aos fiéis, do mesmo jeito que pessoas de uma família costumam fazer na hora da despedida.
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