Para conservadores, Bolsonaro aparece como um ator político corajoso, autêntico e verdadeiro que se propõe a desafiar as regras morais absurdas, transformando-se num herói do povo, um verdadeiro “salvador”. Gabriela Biló/Folhapress
Por que Bolsonaro é incancelável
Como os conservadores, que defendem valores familiares tradicionais, se encantaram com um homem agressivo e desrespeitoso
Como é que um homem sórdido, abjeto e indecoroso como Jair Bolsonaro se tornou a principal liderança do conservadorismo brasileiro? Como é que conservadores, que defendem a decência e os valores familiares tradicionais, se encantaram com um homem agressivo, bruto e desrespeitoso? O estranhamento não é só brasileiro. Os americanos também se perguntam como os conservadores de lá puderam se deixar seduzir por Donald Trump, que tem os mesmos vícios. Enquanto os brasileiros se perguntam como seus conservadores podem admirar um homem que diz que usava verba de gabinete “para comer gente”, os americanos se questionam como seus conservadores podem respeitar um homem que disse que certas mulheres “pegamos pela boceta”. A explicação parece estar na cultura do cancelamento e do politicamente correto que os conservadores tão ardentemente repudiam.
O politicamente correto
“Politicamente correto” é uma expressão pejorativa adotada pelos críticos para se referir às salvaguardas da linguagem e do comportamento que deveriam ser adotadas para proteger os oprimidos. O politicamente correto é visto pelos conservadores como uma opressão porque estigmatizaria como más ações ordinárias e aparentemente inofensivas das pessoas comuns. E, para os conservadores, que cultivam tão zelosamente os valores morais, é especialmente ofensiva a acusação de serem maus. A literatura conservadora sobre o politicamente correto é caudalosa, mas se precisamos começar por algum lugar deve ser por Olavo de Carvalho, cuja projeção sobre o conservadorismo brasileiro é inconteste. Em um artigo de 2006 no Jornal do Brasil ele diz o seguinte:
O código politicamente correto esmaga as normas baseadas na tradição religiosa e no hábito consagrado, colocando em seu lugar, com a brutalidade dos decretos inexoráveis, um sistema de cobranças artificiosas inspiradas em valores paradoxais como a empáfia feminista, o exibicionismo gay, o ódio racial e político, a rejeição pueril das responsabilidades da gravidez – tudo isso impingido como alta e irrecorrível obrigação moral.[1]
Num livro (2) em que apresenta a trajetória do seu pai, descrito como “fenômeno ignorado”, Eduardo Bolsonaro dá grande destaque ao fato de Jair Bolsonaro ter desafiado as normas opressivas do politicamente correto. De maneira parecida com Olavo, diz que o politicamente correto impõe ideias “insanas e disparatadas” fazendo as pessoas agirem permanentemente de forma artificial, “como se fossem políticos tradicionais em campanha, sempre sorrindo”. Segundo essa “antessala da loucura”, ninguém mais seria “normal”, seria como se “ninguém tivesse falhas”.
No discurso das lideranças conservadoras, essas normas politicamente corretas são um ardil e um complô do progressismo para dominar a população por meio das instituições culturais. Mas não precisamos aderir à teoria da conspiração para entender o apelo do discurso antipoliticamente correto junto ao público conservador. A linguagem “politicamente correta” do progressismo é com frequência considerada exagerada e hipersensível pelos conservadores. A linguagem neutra, a crítica às microagressões e ao racismo estrutural são denunciadas como excessos ridículos e como uma hiperfragilidade dos progressistas. A expressão “floquinho de neve” é empregada no meio conservador para indicar essa sensibilidade excessiva que se deixa ofender pelas coisas mais tolas.
É especialmente repudiada pelos conservadores a condenação por atos involuntários, como quando, por exemplo, os progressistas consideram racismo o emprego inadvertido de uma expressão como “denegrir” ou “mercado negro”. Como o uso da expressão é inadvertido e não tem intenção racista, receber a pecha de “racista” é considerado, por um lado, um exagero ridículo, mas, por outro, é considerado ofensivo, já que o racismo é abominável. A gramática moral progressista imputa uma pesada condenação a um ato involuntário, subvertendo o princípio moral das pessoas comuns segundo o qual a ausência de intenção funciona como atenuante.
A gramática moral dos movimentos identitários é completamente estranha para grande parte da população. Qualquer pessoa com mais de 30 anos que não tenha passado por espaços de socialização nos quais esses códigos estão em vigor, como universidades públicas ou grupos feministas, quase certamente não os domina. O ressentimento contra o politicamente correto advém, por um lado, do conflito entre a gramática moral dos movimentos identitários e a moral ordinária das pessoas comuns. Mas ele é também intensificado pelas mídias sociais. Para entender como os novos meios de comunicação impactam o conflito moral entre conservadores e progressistas é necessária uma pequena digressão teórica.
O colapso dos contextos
Em seu trabalho mais influente, A representação do eu na vida cotidiana (1959), o sociólogo Erving Goffmann se dedicou a estudar a interação face a face como uma performance teatral. Cada interação presencial estabeleceria um contexto que funcionaria como um cenário no qual as pessoas atuariam, desempenhando papéis. Os indivíduos em um contexto provocam impressões nos demais tanto ao transmitir conscientemente uma expressão quanto ao emiti-la inconscientemente. Essa capacidade de assumir diferentes papéis em diferentes contextos permite que, por exemplo, uma mesma pessoa se apresente como séria e respeitável no ambiente de trabalho, como divertida e engraçada num bar com amigos e como terna e carinhosa em casa com os filhos.
Os contextos estudados por Goffmann se restringem aos limites espaciais, aos lugares onde ocorrem. Enquanto certo contexto se estabelece na sala de jantar, outro se estabelece na cozinha. Seguindo o vocabulário do sociólogo, a cozinha e o banheiro seriam os bastidores nos quais as pessoas se preparam para atuar no palco, nesse caso representado pela sala de jantar.
A delimitação das fronteiras físicas entre diferentes contextos teria mudado profundamente com a difusão dos meios de comunicação eletrônicos. Essa é a tese do livro No sense of place (1985) do professor de comunicação Joshua Meyrowitz. Escrito nos anos 1980, o livro investiga como os meios eletrônicos, especialmente a televisão, minam a relação tradicional entre localidade e o contexto social. Isso ocorre porque a câmera captura tanto as expressões transmitidas intencionalmente quanto as emitidas involuntariamente, permitindo que mesmo pessoas ausentes fisicamente possam ser impressionadas por uma atuação. Em outras palavras, os meios eletrônicos embaralham os contextos permitindo trazer ao palco aquilo que era bastidor.
Para ilustrar os efeitos desse fenômeno provocado pelos meios eletrônicos, Meyrowitz conta como o acesso à televisão atrapalhou a estratégia de comunicação do líder do movimento Black Power, Stokely Carmichael, nos Estados Unidos dos anos 1960. Carmichael adotava dois discursos diferentes em suas palestras presenciais: um para o público negro que precisava mobilizar, outro para o público branco que apoiava a integração racial. Quando ganhou projeção política e seus discursos passaram a ser televisionados, ele teve que escolher se usava o discurso militante para o público negro ou o discurso moderado voltado para os apoiadores brancos, já que, na tevê, ele perdia o controle do contexto. Quando escolheu manter o discurso inflamado e militante, “encheu seu público secundário com ódio e medo e provocou a ira da estrutura do poder branco”.[3]
Nos anos 1980, os efeitos desse colapso de contextos eram experimentados apenas por pessoas públicas com acesso aos meios de comunicação de massa, como Carmichael. Como notou a socióloga americana danah boyd[4], junto com a popularização da internet, dos smartphones, e finalmente das mídias sociais, essa dinâmica se expandiu para um público mais amplo. O gerenciamento das impressões é bem mais difícil nas mídias sociais, por conta de uma arquitetura que favorece o “colapso contextual”.
Como no Twitter ou no Facebook as postagens não podem ser facilmente direcionadas para um determinado público (apenas amigos de infância ou apenas colegas de trabalho), quem publica não consegue controlar o contexto no qual as mensagens serão recebidas. Assim, por exemplo, uma postagem divertida, retratando uma noite de bebedeira com os amigos, pode causar uma má impressão quando for recebida por um colega no trabalho. Falando em linguagem goffmaniana: com o colapso de contexto, os usuários de mídias sociais têm grande dificuldade em administrar as personas que precisam adotar em cada cenário.
O cancelamento
Essa situação permanente na qual os contextos se embaralham e colapsam nas mídias sociais permitiu a ativistas dos movimentos identitários desenvolver uma estratégia política de denúncia que ficou conhecida como “cancelamento” – uma punição que consiste em uma espécie de boicote social no qual uma pessoa denunciada por condutas condenáveis é publicamente difamada e perde seguidores, apoiadores e visibilidade pública. A denúncia consiste em expor uma conduta condenável deslocando-a de contexto. Uma comunicação pessoal, um tuíte antigo ou uma foto privada, quando trazidas para a esfera pública, romperiam a máscara de civilidade, expondo o machismo ou o racismo do denunciado.
A cultura do cancelamento é fruto de pelo menos três fatores. Em primeiro lugar, a ampliação do uso de mídias sociais que dificultam o controle do contexto na emissão de mensagens. Em segundo lugar, uma cultura ativista que politizou as relações interpessoais nas dimensões de gênero, raça e sexualidade, no espírito do slogan “o pessoal é político”. Finalmente, o uso estratégico da “exposição” como ferramenta de denúncia da opressão.
Essas características do cancelamento são fáceis de ver quando olhamos para um caso concreto. Em fevereiro de 2022, o influenciador e deputado estadual de São Paulo Arthur do Val anunciou que iria para a Ucrânia em missão humanitária para “mostrar aos brasileiros a realidade da guerra”, contrapondo-se à postura de neutralidade que o presidente Jair Bolsonaro tinha adotado no conflito. Ele arrecadou 180 mil reais para a compra de mantimentos e suprimentos para os refugiados e para apoiar o exército ucraniano. Quando retornava para o Brasil, já no começo de março, uma reportagem no site Metrópoles expôs áudios que Do Val enviou para um grupo de amigos no WhatsApp descrevendo as mulheres que havia encontrado na Ucrânia. Entre outras coisas, ele dizia que “a fila das refugiadas” “só tem deusa” e que elas “são fáceis porque são pobres”.
O choque entre a natureza humanitária da viagem, em contexto de guerra, e o conteúdo do áudio que degradava as mulheres refugiadas causou grande impacto. Arthur do Val era pré-candidato ao governo de São Paulo, com cerca de 2% de intenção de votos, e precisou renunciar a sua candidatura a governador e, depois, a seu mandato de deputado estadual. Mesmo assim, foi cassado e perdeu os direitos políticos. Ele também precisou se desfiliar do partido Podemos e perdeu o apoio político do ex-juiz Sérgio Moro e do então governador de São Paulo João Doria. Nas mídias sociais, perdeu 53 mil seguidores.
Do Val argumentou que “houve um mal-entendido” e que as “pessoas estão misturando os áudios com outro contexto”. Disse ainda: “Fui para fazer uma coisa, mandei um áudio infeliz, e a impressão que passou é que fui fazer outra coisa.” Disse, por fim, que “uma coisa é o Arthur que foi lá fazer a missão. Outra coisa é o Arthur que já tinha saído e mandou um áudio em grupo privado, para os amigos dele.” Do Val alega que o escândalo advinha da descontextualização do áudio. O áudio não seria voltado para a esfera pública, mas para um grupo restrito, falando de um tema privado, de uma forma descontraída, entre amigos.
O que houve, efetivamente, foi uma mudança deliberada do contexto do áudio para expor o machismo do deputado, como já havia sido feito em muitos outros casos de cancelamento. Os cancelamentos se aproveitam das possibilidades de registro da comunicação digital e deliberadamente rompem as barreiras de contexto para expor comportamentos considerados inadequados na esfera pública política. Ao trespassar os contextos, os cancelamentos retirariam as máscaras de civilidade, expondo e denunciando comportamentos opressivos como se fossem uma verdade escondida pelo jogo cínico e artificial dos bons modos.
Um político “autêntico”
Após a digressão, podemos retomar nossa questão inicial: por que os conservadores adotaram como seu líder um político de má conduta, vil e abjeto? A resposta é que Bolsonaro é visto como um ator político corajoso, “autêntico”, que desrespeita tão abertamente as opressivas normas de comportamento do politicamente correto que não pode ser cancelado, porque, por detrás de sua máscara de persona, não há nada de pior a ser encontrado. Bolsonaro é um campeão da causa conservadora que quer moralizar a política, mas não aceita se submeter aos ditames morais dos movimentos identitários que tentam transformar conservadores em pessoas más, machistas, homofóbicas e racistas.
No livro de Eduardo Bolsonaro, que citamos no começo do artigo, o politicamente correto é apresentado com uma grande opressão que impele as pessoas a agirem de forma artificiosa, fingindo respeitar regras “insanas” e “disparatadas”. Pessoas comuns seriam levadas a agir como “políticos tradicionais em campanha”, com um comportamento falso, artificioso, fingido, “como se ninguém mais fosse normal”. Então, segue o autor, “quando chega uma pessoa normal”, falando “as verdades mais básicas”, essa pessoa “passa a ser uma possibilidade de salvação.”
Para esse núcleo conservador, Bolsonaro aparece como um ator político corajoso, autêntico e verdadeiro que se propõe a desafiar as regras morais absurdas e enfrentar, sem medo, o risco de cancelamento, transformando-se num herói do povo, um verdadeiro “salvador”. Rapidamente, Bolsonaro começa a apresentar sua principal virtude como a de ser autêntico, isto é, de ser alguém que é idêntico a si mesmo, alguém sem máscara. A campanha de Bolsonaro adota como o slogan um versículo do evangelho de João, “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8:32) O trecho é interpretado na campanha ora como a determinação de não se submeter às crenças e asserções impostas pelo establishment, ora como a não submissão aos maneirismos e artificialismos do politicamente correto.
Nenhum episódio demonstra melhor a força política desta postura de autenticidade do que a revelação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril de 2020. Em abril de 2020, Sergio Moro se demitiu do cargo de ministro da Justiça alegando que havia sido pressionado por Bolsonaro para intervir na Polícia Federal para impedir uma investigação sobre os filhos do presidente. Moro denunciou que numa reunião ministerial gravada, Bolsonaro teria feito uma alusão direta à intervenção. Depois de um mês de controvérsia, o ministro do STF Celso de Melo retirou o sigilo sobre a gravação da reunião ministerial, autorizando a divulgação do vídeo. A intervenção de Bolsonaro pedindo interferência na Polícia Federal era um tanto ambígua, mas o restante da gravação revelava os bastidores do governo. Por cerca de duas horas o vídeo mostrava Bolsonaro sendo Bolsonaro:
Eu não vou esperar o barco começar a afundar pra tirar água. Estou tirando água, e vou continuar tirando água de todos os ministérios no tocante a isso. A pessoa tem que entender. Se não quer entender, paciência, pô! E eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção!
Olha como é fácil impor uma ditadura no Brasil. Como é fácil. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz uma bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua!
Por um momento, a oposição celebrou que as entranhas do governo finalmente estavam expostas. O público poderia ver a crueldade, a falta de sensibilidade e a brutalidade do governo Bolsonaro em toda a sua verdade. Mas, apesar da agitação na imprensa, a população não pareceu impressionada. Bolsonaro, afinal de contas, estava sendo apenas ele mesmo: o homem do povo, meio grosseiro, que dizia, sem papas nas línguas, as verdades inconvenientes ao establishment e que não se submetia aos ditames do politicamente correto. Onde a oposição via denúncia, os apoiadores viam a confirmação de que, longe da imprensa, Bolsonaro era o homem autêntico em quem tinham votado. Nenhuma revelação poderia ser mais chocante do que tudo que já havia sido dito em público. Sob a máscara pública da indecência, que atitude surpreendente poderia ser encontrada? Bolsonaro é incancelável.
[1] Olavo de Carvalho. “A guerra dos vestais”. Jornal do Brasil, 24/08/2006.
[2] Eduardo Bolsonaro e Mateus Colombo Mendes. Jair Bolsonaro: o fenômeno ignorado. Campinas: Vide editorial, 2022.
[3] Joshua Meyrowitz. No Sense of Place: The Electronic Media on Social Behavior. Oxford University Press, 1985, p. 43.
[4] danah doyd. It’s Complicated: The Social Life of Networked Teens. Yale University Press, 2014.
Professor de gestão de políticas públicas na EACH-USP e criador do podcast Guerras Culturais
Professor de sistemas da informação na EACH-USP