Ilustração: Carvall
Precisamos falar sobre os evangélicos
Enquanto o Brasil desse segmento religioso for visto como "outro Brasil", será impossível compreender as urnas
Eu havia planejado escrever sobre a importância de falar do campo evangélico para além do contexto eleitoral apenas em novembro, após a eleição. Mas fui obrigada a antecipar essa reflexão devido ao fuzuê de notícias de todo tipo compartilhadas por WhatsApp, pela imprensa e pelas próprias campanhas. O resultado do primeiro turno e a busca por explicações pela migração de votos não captada pelas pesquisas voltou a suscitar na cobertura eleitoral e no debate público em geral o interesse pelos “evangélicos”.
Como alguém que não é evangélica, mas tem pesquisado e mergulhado nesse universo há alguns anos, o meu WhatsApp voltou a não ter sossego um só minuto. De amigos buscando sanar todo tipo de dúvida possível sobre religião em geral ou sobre o campo em específico, passando por grupos diversos compartilhando análises que buscavam respostas “no mundo evangélico”, até muitos jornalistas tentando entender por que raios começamos o primeiro dia de campanha do segundo turno falando de Satanás, maçonaria e desmentindo que o ex-presidente Lula não tinha pacto com o Demônio.
Temos duas avenidas de um mesmo Brasil para destrinchar nesse contexto de aparente desorientação e dúvida. A primeira avenida mostra que o Brasil do qual falamos é também evangélico.
Por que uma grande parte de nós que estamos no ambiente político, nas organizações da sociedade civil, nas universidades e nas redações só descobriu agora que existem evangélicos no Brasil? Se estamos falando de uma parcela da população que chega a 32%, mas possivelmente já está alcançando percentuais maiores, para onde estávamos olhando antes que não os incluíamos? Por que é recorrente nesses momentos e espaços a pergunta: Como falamos com os evangélicos? Quais evangélicos? Todos? Por que nos referimos a “eles”, “os evangélicos”? É um outro Brasil, diferente do nosso?
Um evangélico lê essa pergunta em algum grupo de WhatsApp que certamente agora está tentando virar voto ou tentando entender o que aconteceu no primeiro turno e deve se responder em voz alta: “Ué, falando comigo.” Eu, se recebesse um convite para uma reunião ou um card no WhatsApp com o título “Como falar com as mulheres?”, ficaria bastante incomodada. Pois é isso que estamos fazendo, pelo menos grande parte do nosso campo político, ativista e intelectual não evangélico. Dessa maneira, num país que já é em grande parte evangélico, fica bastante difícil tentar entender qualquer coisa, não apenas as eleições.
É urgente nosso olhar, não apenas vindo de centros e pesquisadores dedicados ao tema, sobre as práticas, comportamentos e demandas dos diferentes grupos e correntes evangélicas. E, por favor, não apenas durante as eleições. É importante conhecer para dialogar, é importante compreender medos e anseios mútuos e dissidentes para que possamos construir pontes. É importante escutar para se comunicar. Enquanto esse Brasil for “outro Brasil”, não compreenderemos as urnas.
A outra avenida paralela é a de que esse campo evangélico, não monolítico e crescente, é cada vez mais conservador moral e politicamente e tem sido cada vez mais influenciado por lideranças religiosas – locais e nacionais – que buscam controlar as opções políticas individuais de seus fiéis. Seja na produção e reprodução de notícias falsas e pânicos morais, seja na ameaça explícita e direta dentro de espaços religiosos.
Projetos de poder construídos a partir de grupos evangélicos que querem ser hegemônicos encontram projetos de poder político de uma extrema direita neofascista, ultracapitalista e conservadora que está na sociedade e na política.
É inegável o grau de radicalismo, politização e conservadorismo intolerante que atingiu grande parte dos templos e espaços onde frequentam e congregam evangélicos no Brasil. O crescente ativismo político evangélico é documentado há algumas décadas, mas é cada vez mais presente e disseminado um ativismo político de caráter ultraconservador.
Importante destacar que esse não é um fenômeno apenas brasileiro, mas ganha contornos locais a partir da forma como se expandem os templos por aqui, como se informam seus fiéis, como são formados do ponto de vista teológico seus novos líderes e como determinadas lideranças de corporações evangélicas se aliam com forças políticas da extrema direita brasileira. Essas características não são apenas circunstanciais e menores para esse recrudescimento ultraconservador.
Evangélicos hoje, em sua maioria, seguem optando pela reeleição de um presidente que representa um projeto de sociedade violento, intolerante e excludente – pesquisas de segundo turno já falam em 61% das intenções de voto em Bolsonaro e 31% no Lula nesse segmento. Mas mais de um terço não faz essa opção. E isso também retrata o campo evangélico no Brasil.
Já sabemos também que, ao longo do primeiro turno, uma forte campanha de fake news e desinformação chegou até os evangélicos, com a disseminação de mentiras diante de uma possível vitória do PT: fechamento de igrejas, ameaças de silenciamento de lideranças religiosas e professores de escola cristãs que se opusessem a pautas referentes à diversidade sexual e à pluralidade. Esse foi o mantra da campanha de reeleição do presidente Bolsonaro com foco na parcela do eleitorado na qual ele conseguiu recuperar ampla vantagem.
Nesse contexto, essas duas avenidas de um mesmo Brasil precisam se cruzar. Precisamos falar sobre os evangélicos nos nossos estudos, análises, projetos e reuniões, para muito além dos períodos eleitorais e sem ter como foco necessariamente as preferências partidárias desse grupo. Também precisamos escutá-los. Compreender como vivem sua relação com a fé, como vivem e convivem nos diferentes espaços sociais ligados às suas igrejas e comunidades. Incorporar as vivências, visões e leituras de muitos jovens e grupos que atuam nos territórios para combater a intolerância e a crescente vigilância ultraconservadora.
Ao mesmo tempo, precisamos entender que esse Brasil mais evangélico faz parte de um Brasil mais conservador e cada vez mais influenciado por projetos de poder que buscam controlar os corpos e as minorias, restringir direitos e consolidar uma democracia apenas para alguns. E isso está, sim, acontecendo fortemente no e a partir do segmento evangélico no Brasil. Precisamos nos dedicar a entender como e por quê. Quais são os vasos comunicantes com dinâmicas globais, quais são os interesses econômicos de grandes corporações religiosas, quais são as pontes entre o novo conservadorismo brasileiro não religioso e o religioso? Como o bolsonarismo, que se alia às velhas elites conservadoras, está presente em diferentes segmentos religiosos e não apenas no cristão – evangélico e católico? E precisamos dar visibilidade a esses elementos, colocar luz sobre eles, explicitá-los. Especialmente fora dos períodos eleitorais.
As dinâmicas hegemônicas vividas hoje dentro do segmento evangélico são uma das dimensões que compõem o novo conservadorismo brasileiro. Não se restringem, portanto, a uma determinada religião, e apenas a ela.
Recuperando duas expressões recorrentes nos últimos tempos: a culpa não é da esquerda, mas tampouco a culpa é dos evangélicos. Estão em curso projetos concretos de poder da extrema direita, com eco nas pessoas. No Brasil e no mundo. E projetos que se comunicam. No entanto, temos responsabilidades nessa história e nos rumos do que virá.
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