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    Ilustração: Carvall

colunistas

Prender e cassar, é só fundamentar

Para cumprir promessa de 2021, TSE de Alexandre de Moraes deve buscar mais precisão jurídica e menos retórica apoteótica

Rafael Mafei | 19 ago 2022_10h00
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Na terça-feira, dia 16, tomou posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o ministro Alexandre de Moraes. Além da regular condução das eleições, sua gestão ocorrerá à sombra da expectativa do cumprimento da promessa feita por ele em outubro de 2021, no julgamento em que foi arquivado o pedido de impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão: “se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado e as pessoas que assim fizerem irão para cadeia.” Recado semelhante foi dado no julgamento que resultou na cassação do então deputado estadual Fernando Francischini (União-PR), na mesma época. Com o ar impregnado pelo cheiro azedo da guerrilha de desinformação levada a cabo em 2018 pela campanha então em julgamento, o ministro pontificou: “a Justiça pode ser cega, mas não é tola.”

Moraes foi ambicioso ao acenar com a ameaça de castigos eleitoral (cassação de registro) e criminal (cadeia). Fazer cumprir essas promessas exigirá não apenas vontade, que não lhe parece faltar, mas apuro jurídico e refinamento para evitar que o caldo entorne. A intervenção em excesso sobre manifestações públicas de candidatos e eleitores poderá alimentar o discurso, semeado há tempos por políticos e comunicadores sociais do campo bolsonarista, de que a Justiça Eleitoral age como censora da direita e trabalha contra Jair Bolsonaro. Tanto quanto as mentiras sobre urnas fraudadas e votos roubados, o mantra da parcialidade do TSE é constantemente martelado na cabeça do eleitor bolsonarista – e assim será ao longo da campanha. A Justiça Eleitoral precisa de cautela para, a pretexto de reagir contra a primeira acusação, não acabar por confirmar inadvertidamente a última. 

A ferramenta que o direito oferece para essa atuação cuidadosa é o uso de conceitos precisos e fundamentos consistentes. A técnica jurídica, enfim. O horizonte que deve inspirar a atuação de Moraes e do TSE deve ser o de convencer cidadãos de boa-fé, qualquer que seja sua ideologia política, de que a Justiça Eleitoral não estará agindo por capricho, voluntarismo, preferência política ou arbítrio quando vier a intervir sobre manifestações de eleitores e candidatos, e principalmente quando aplicar sanções a estes últimos.

 

A promessa de “cassação de registro” será mais fácil de se fazer cumprir. O TSE enxergou de longe que o desafio da campanha de 2022 seria fazer frente a candidatos que usarão a plataforma, mesmo que parcial, de descrédito do sistema eleitoral. O mais óbvio exemplo dessa ameaça é sabidamente o presidente Jair Bolsonaro, mas ele não estará só: todo o entorno de candidatas e candidatos que farão campanha na barra de sua saia (“heteramente”) flertará a todo instante com essa linha. É para eles que Moraes promete a cassação da candidatura, que os alcançará mesmo que sejam eleitos, como ocorreu com o ex-deputado bolsonarista Fernando Francischini.

A cassação de Francischini foi importante porque fixou um sentido jurídico preciso para as plataformas de comunicação digital em contexto eleitoral: elas passaram a ser consideradas “meio de comunicação social”. Essa compreensão foi parar na resolução do TSE que disciplina a comunicação política e seus abusos, e foi recentemente confirmada pela decisão da Segunda Turma do STF que derrubou a liminar de Kassio Nunes Marques (que tentava devolver o mandato do deputado cassado). 

Esse entendimento é chave para o cumprimento da promessa de Moraes, pois faz com que a internet fique mais próxima do rádio e da televisão e deixe de ser a terra sem lei com a qual Francischini contava na sua live espalha-mentiras. O TSE anda bem ao tratar assim a comunicação política digital, que funciona de fato com estrutura comparável aos demais meios de comunicação social: o emissor vale-se de uma infraestrutura (em grande parte pública) para disseminar informação a uma quantidade grande e indeterminada de destinatários. Nos casos de figuras políticas de maior expressão, a quem se somam influenciadores de peso que os replicam, esses destinatários facilmente chegam à casa dos milhões. Bolsonaro tem mais impacto pelo Facebook do que por uma entrevista a uma rádio do interior. 

Para o período de campanha que se iniciou nesta semana, dois refinamentos importantes devem estar presentes na atuação das autoridades eleitorais e das redes sociais nas falas sobre eleições. O primeiro é uma distinção sobre quem fala. Candidatos devem ser tratados com o rigor prometido por Moraes: deles exige-se não apenas que saibam distinguir fatos e boatos, mas que ajam como quem tem o dever de fazê-lo. Passar adiante uma denúncia mentirosa que desacredita as urnas é grave quando intencional, mas é grave também quando provém de descuido ou incúria de candidatas e candidatos. Isso vale para a Justiça, mas também para as plataformas. Candidatos, e autoridades públicas em geral, não são qualquer um. Seu impacto é diferenciado, como também o é o compromisso que se pode exigir deles em relação ao processo eleitoral, e isso importa.

O mesmo não se pode dizer de eleitores, especialmente quando estiverem afirmando suas crenças fáticas e opiniões pessoais genuínas – mesmo que erradas – sobre candidaturas, urnas e a própria Justiça Eleitoral. Ainda que autoridades e empresas ajam para mitigar o impacto dessas informações equivocadas, nesses casos é preferível conter o ímpeto das intervenções excessivas, preferindo-se o caminho das iniciativas de esclarecimento. 

Na chave do quem fala, o grande desafio estará em como lidar com a coluna do meio: aqueles atores que, embora não sejam formalmente autoridades ou candidatos, distinguem-se da massa de usuários pela sua enorme influência nas redes. São os chamados influenciadores, que nas redes de disseminação de notícias falsas funcionam como “superespalhadores” (superspreaders) de desinformação. A capacidade de causar danos desses perfis não deve ser subestimada: na infodemia de Covid, por exemplo, apenas doze pessoas foram responsáveis por difundir 73% do conteúdo antivacinal no Facebook nos EUA. Com os candidatos vigiados por Moraes e podendo falar menos, é esperado que essas contas falem mais. Nesses casos, os protocolos firmados entre TSE e redes sociais terão de funcionar eximiamente. 

O segundo refinamento é a especificação do tipo de conteúdo inverídico cujo combate será priorizado no TSE. A desinformação, vulgarmente chamada fake news, é um tipo específico de informação falsa: trata-se do conteúdo ardilosamente produzido com objetivo de levar seus destinatários a acreditar em uma inverdade, fabricado com aparência de conteúdo confiável, mimetizando o jornalismo (estética de notícias, manchetes atraentes, aparência de equilíbrio) ou a comunicação científica (falas de supostos especialistas, menções não especificadas a pesquisas e estudos fajutos ou inexistentes). Ela não se confunde com depoimento sinceramente equivocado, como o do sujeito que jura até hoje que seu voto em Bolsonaro foi roubado pela urna em 2018. Nem com a boa e velha cascata eleitoral, tal como a promessa fajuta do candidato que sabe que a estação de metrô que jurou entregar não ficará pronta a tempo. 

Na intervenção sobre o debate político em período eleitoral, menos – mas com foco cirúrgico – é mais. Sem descuidar de falsidades emitidas contra candidaturas e partidos pelas campanhas rivais, que é o arroz com feijão do litígio eleitoral, o foco do TSE deve ser a desinformação sobre o processo eleitoral. Inclusive porque o impacto da desinformação eleitoral é diferenciado: ao contrário da lorota contada para fisgar os votos indecisos de última hora, a desinformação eleitoral tem efeitos que perduram no tempo e que se fazem sentir após a eleição, tanto para os vencedores quanto para os perdedores. 

 

O esforço de se pautar por conceitos precisos e refinar a intervenção é inimigo da retórica inflamada, das comparações exageradas e dos modismos da linguagem. No caminho da promessa de mandar para a cadeia quem repetir 2018, há algumas cascas de banana no caminho do Poder Judiciário, tais como o sempre polêmico “ódio” ou as muito faladas “milícias digitais”. 

Um termo como “discurso de ódio” gera frases de efeito e rende boas manchetes, mas turva a análise quanto à legislação cabível para diferentes tipos de conduta ilícita. Há países, como Canadá e Reino Unido, nos quais “ódio” é termo propriamente legal, previsto em diplomas que pretendem proteger grupos tradicionalmente discriminados contra falas e atos que objetivam instigar repulsa contra seus membros. Não é o nosso caso. Nossa legislação equivalente (Lei 7.716/1989) fala em “incitar a discriminação ou preconceito”, aliás sem prever a pertença a partido político ou a preferência ideológica entre as categorias protegidas. 

Mas há sim muitos crimes nos quais o direito penal demarca a esfera do que pode e do que não pode ser dito. Quando Daniel Silveira fez sua live raivosa contra ministros do STF, sem dúvida havia ódio no que disse, mas suas condenações foram por “incitação” e por “ameaça” – esses sim, delitos previstos no direito brasileiro. Há outros tantos crimes que se consumam com a expressão verbal de “grave ameaça”. Juízes podem invocar “discurso de ódio” como recurso retórico para amplificar a mensagem que suas decisões querem reforçar, mas ainda assim sobra-lhes o dever de apontar um crime previsto na legislação brasileira vigente. Mas essa estratégia comunicacional tem um risco: ela periga deslocar a discussão jurídica do foco necessário (“qual crime foi cometido por ele ter dito o que disse?”) para águas bem mais turvas (“houve discurso de ódio?”). É a alegria dos comentaristas da Jovem Pan.

O mesmo vale para as ditas “milícias digitais”, outra figura que não tem previsão em lei. A resolução do TSE sobre propaganda eleitoral proibiu “disparo em massa de mensagens instantâneas”, o que pode gerar embaraços: nem toda estratégia de geração artificial de engajamento em redes se vale de disparos automatizados em massa. O fato é que “milícias digitais” atualmente tornou-se até nome de inquérito penal no STF (Inq. 4.874, presidido pelo mesmo Alexandre de Moraes). Nele investigam-se, isto sim, suspeitas de crimes propriamente previstos em lei, como a tentativa de, “com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício” do Poder Judiciário (Código Penal, art. 359-L); incitação ao crime (idem, art. 286); e ameaças (idem, art. 147). Também aqui o ganho retórico vem à custa da precisão no uso do conceito. O magistrado ganha manchetes, mas os polemistas ganham material de primeira qualidade para desacreditar a necessária atuação da Justiça.