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    No último domingo (2), eleitores na fila para votar na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro Foto: Andre Borges / AFP

análise

A profecia de Mano Brown

Retomada das periferias pelo PT mostra que voto da extrema direita no Brasil ruma para o padrão global – fora dos grandes centros urbanos

Laura Carvalho e Pedro Abramovay | 05 out 2022_16h23
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Há exatos quatro anos o rapper Mano Brown subiu no palanque de Fernando Haddad na Lapa, no Rio de Janeiro, e cobrou a multidão: era necessário voltar pra base, voltar a falar a língua do povo. O próprio Haddad deu razão a Brown e afirmou no Twitter: “O Mano Brown tem toda razão. Precisamos voltar pra periferia de coração aberto porque a periferia não votou com a gente no primeiro turno. Vamos voltar para a base pra governar o Brasil com a base, como sempre fizemos.” Quatro outubros depois, será que o PT ouviu Mano Brown? Em meio à enorme quebra de expectativas inflada pela possibilidade de vitória no primeiro turno, pouca gente percebeu que a resposta a essa pergunta tão importante – tanto eleitoral quanto simbolicamente – para o Partido dos Trabalhadores pode ser sim.

A base à qual se referia Brown não era a população mais pobre do Nordeste que, afinal, ainda se mantinha fiel ao partido. Ainda que Bolsonaro, tal como Aécio Neves em 2014, tenha obtido seu maior percentual de votos entre os eleitores mais ricos, a maior perda do PT entre 2014 e 2018 se deu entre eleitores que completaram apenas o ensino médio, com renda familiar mensal entre dois e cinco salários mínimos. Tratava-se, principalmente, da população das periferias urbanas que, de alguma forma, está na origem de um partido dos trabalhadores. No Capão Redondo, onde vive Mano Brown, por exemplo, Bolsonaro venceu o primeiro turno, e Haddad obteve apenas 28% dos votos. Na cidade de São Paulo, Bolsonaro obteve 44,5% dos votos contra apenas 19,7% conquistados por Haddad, que perdeu em quase todas as zonas eleitorais da cidade em que foi prefeito.

O fenômeno não foi apenas paulista. Em Porto Alegre, cidade símbolo do PT no início de sua trajetória, Bolsonaro ganhou em todas as zonas eleitorais (incluindo as periféricas), abrindo vantagem de 25 pontos percentuais no primeiro turno. O fenômeno foi nacional. Em Recife, capital de um estado que sempre deu muitos votos ao PT, Bolsonaro também ganhou em todas as zonas eleitorais no primeiro turno. No Rio de Janeiro, Haddad ganhou apenas no tradicional reduto da esquerda de classe média alta, Laranjeiras. E só no segundo turno. No primeiro, deu Bolsonaro. Isso foi 2018.

 

Em 2022, o jogo parece ter virado. Lula recuperou amplamente esse terreno perdido nas capitais. Ganhou na cidade de São Paulo, ganhou em Porto Alegre, ganhou em Recife e diminuiu amplamente a vantagem bolsonarista no Rio. Em todos esses casos, a vitória se deu ampliando votos em favelas e zonas periféricas dessas cidades. Se nas zonas dominadas pela lógica eleitoral da milícia o bolsonarismo parece inquebrantável, Lula venceu em zonas como os complexos da Maré e do Alemão. E, se dependesse do Capão Redondo, de Mano Brown, Lula ganharia no primeiro turno: 57% a 30%.

O Brasil de 2018, na verdade, destoava de um padrão de voto nos candidatos de extrema direita mundo afora. Marine Le Pen ganha em várias cidades francesas, mas não marcha sobre Paris. Trump ganha nos estados do Meio-Oeste, mas não ganha em Nova York, Chicago ou Los Angeles. O fenômeno da extrema direita tende a se colocar em choque contra a vida cosmopolita.

O livro Strangers in their own Land, de Arlie Hochschild, ficou célebre por ser publicado em 2016, ano da vitória de Trump, e conseguir, a partir de anos de pesquisa da autora descrever com precisão esse sentimento de uma parcela dos estados mais rurais dos Estados Unidos (o estudo dela foca-se na Louisiana) que mostra um ressentimento de parcela da população que enxerga que a política e o Estado privilegiam grupos minoritários, impõe ao país um pensamento único politicamente correto e não se sente representado pelos partidos tradicionais, abrindo espaço para o apoio à extrema direita. Muitos outros livros saíram posteriormente oferecendo hipóteses para este fenômeno, mas ele segue sendo a marca central da extrema direita mundial. Mas não no Brasil. Ou não no Brasil de 2018. Aliado ao Brasil do agronegócio, que indubitavelmente apoiou Bolsonaro em sua primeira eleição, havia o Brasil urbano. Todas as capitais fora do Nordeste – e algumas no Nordeste – deram maioria a Bolsonaro em 2018.

Autoras como Esther Solano e Rosana Pinheiro-Machado descrevem com precisão esse fenômeno do voto das periferias de grandes cidades para Bolsonaro. “Esses trabalhadores são sujeitos muitas vezes pobres ou empobrecidos, que não se veem contemplados pelas políticas sociais dos últimos anos. São pessoas que querem ascender na sociedade, sentem-se injustiçadas por ralar 15 horas por dia, vivem na insegurança das grandes cidades e percebem o governo como uma grande farsa que atua para seu próprio enriquecimento ou apenas para o benefício de ‘minorias’”, explica Pinheiro-Machado em seu livro Amanhã será Maior. Ainda é muito cedo e é necessário fazer muita pesquisa para se compreender qual foi a mudança que levou Bolsonaro de seu triunfo acachapante em 2018 para o pior resultado de um presidente que tenta a reeleição na história do Brasil, fazendo 43% dos votos, atrás do candidato petista. Mas a chave parece estar em compreender que o padrão de voto da extrema direita no Brasil pode estar se aproximando de seu padrão global. Um voto fora dos grandes centros urbanos.

Não que o bolsonarismo possa ser resumido ao voto de uma grande Wyoming brasileira. Primeiro porque há diferenças fundamentais na dimensão socioeconômica desses fenômenos, sobretudo as associadas aos efeitos distintos da globalização e do crescimento chinês nos diferentes países (i.e. perda de empregos industriais e etno-nacionalismo nos Estados Unidos; ciclos de commodities e agronegócio no Brasil). Segundo porque, tal como Trump, que ainda deve a maior parte de seus votos às elites republicanas tradicionais, Bolsonaro também conseguiu manter o apoio das elites antipetistas nas grandes cidades. Terceiro porque, como demonstrou o cientista político Fernando Meireles, o apoio a Bolsonaro fora das capitais não somente se manteve em todo o país como aumentou em 3 pontos percentuais nos municípios de menos de 50 mil eleitores no Norte e Nordeste.

O aumento do apoio a Bolsonaro em redutos do lulismo merece ser mais estudado, mas a mais nova promessa do presidente de criar um 13º do Auxilio Brasil para mulheres chefes de família a partir de 2023 sugere que, ao menos na visão de sua campanha, a expansão de programas de transferência de renda tem lhe rendido frutos. E é essa a grande aposta para uma inédita virada de Bolsonaro no segundo turno. A associação positiva entre o valor pago por eleitor via Auxilio Brasil em cada município e o ganho de votos por Bolsonaro entre 2018 e 2022, encontrado por Fernando Meireles, aponta na mesma direção. Não seria nenhum exagero, portanto, formular a hipótese de que, sem a guinada na política social provocada pela pandemia e restabelecida em ano eleitoral, a retomada das capitais pelo PT teria sido suficiente para que Lula vencesse a eleição já no primeiro turno. Ao mesmo tempo, ainda é cedo para compreender o que fez as periferias das grandes cidades voltarem a apertar 13 no primeiro turno das eleições nacionais. O que já dá para saber é que, quatro anos depois da bronca de Mano Brown, se o PT não voltou para a base, pelo menos a base voltou para o PT.