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    O vereador Renato Freitas (PT) voltou a ser cassado sob alegação de quebra de decoro parlamentar pela Câmara Municipal de Curitiba (PR) Foto: Rodrigo Fonseca/CMC

colunistas

Tribunal racial na República de Curitiba

Cassação de vereador explicita racismo histórico na política brasileira

Flavia Rios | 18 ago 2022_10h30
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Na disputa pelos sentidos democráticos no Brasil, a leitura da carta pela democracia e pela justiça na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no dia 11 de agosto de 2022, foi ponto alto da sociedade civil, em amplo exercício de pluralismo diante das ameaças de ruptura democrática feitas pelo chefe do Executivo federal. Não muito distante desse reino paulista cercado por muralhas de palavras, uma “república” do Sul do Brasil estrangulou os princípios democráticos aplicando penalidade máxima ao vereador Renato Freitas (PT) por considerar quebra de decoro parlamentar sua atuação num protesto antirracista na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, local histórico de ativismos políticos e reconhecido oficialmente pela cidade como patrimônio da cultura afro-curitibana. 

Vamos à cronologia dos fatos. Em 5 de fevereiro de 2022, aconteceram atos antirracistas no Brasil em protesto contra o assassinato de Moïse Kabagambe. Em Curitiba, a manifestação adentrou a Igreja do Rosário dos Pretos e seguiu seu curso pelo Centro da cidade. Em 22 de junho, a Câmara aprovou a perda do mandato  de Freitas alegando que o protesto na igreja era incompatível com o decoro parlamentar. Freitas recorreu ao Judiciário e, no dia 05 de julho, o Tribunal de Justiça do Paraná suspendeu a sessão da câmara que gerou a decisão pela cassação, alegando irregularidades procedimentais. Um mês depois, a Câmara ratificou a cassação. Na sequência, a defesa de Freitas apontou abuso de autoridade com base no decreto lei 201/1967, argumentando descumprimento de prazo para conclusão do processo, que seria de noventa dias. No dia 10 de agosto de 2022, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara rejeitou o recurso de Freitas, mantendo seus direitos cassados por dez anos, incluindo aí não só a perda imediata de seu mandato como o direito de votar e ser votado até 2032. 

Para esta coluna, ouvimos o parlamentar Renato Freitas para saber sobre sua história, sua visão do processo e os novos passos em defesa do seu mandato. De origem periférica, Renato Freitas, 37 anos, é pai de uma filha de 2 anos e sete meses. Sua participação na política institucional começou nas eleições de 2016, seguiu nas eleições de 2018 e em 2020 foi eleito vereador na capital paranaense pelo PT. Antes, foi professor de cursinhos, trabalhou na defensoria pública e foi docente na PUC (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). Como estudante, ingressou no curso de direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná) como cotista.

Freitas é a face da renovação política no Brasil. Sem capital político de origem familiar, com trajetória marcada pelas dificuldades de viver em periferias de grandes centros urbanos, tornou-se um perfil destoante na Câmara de Curitiba, que conta apenas com cinco vereadores não brancos, sendo três deles autodeclarados pretos contra 33 vereadores brancos. Apesar dos discursos de origem remeterem aos imigrantes europeus, a capital do Paraná conta hoje com quase um quarto da sua população composta por pessoas negras, segundo os dados do IBGE, e sendo essa presença afrodescendente marcante na cidade antes mesmo da política imigratória na região sul do país. Em contraste com as características da população, a Câmara de Vereadores tem longa tradição de exclusividade masculina e branca, vista pela ausência absoluta de mulheres e negros na sua galeria de ex-presidentes, cujos registros fotográficos datam desde pelo menos o fim da Segunda Guerra Mundial. 

Bacharel e mestre em direito pela Universidade Federal do Paraná, Freitas percorreu seu mandato na Câmara em embate frontal com a maioria dos parlamentares de base governista. Líder da oposição, o candidato não só afrontou a autoimagem que Curitiba forjou para si ao seguir para a Câmara com seus cabelos à moda black power, como também apresentou postura que movia intensamente a relação entre sociedade civil, especialmente movimentos sociais e as instituições parlamentares. Tentou engajar a sociedade em pautas relevantes para a agenda pública, como a questão indígena na cidade, dos moradores de rua e da segurança pública.

 

A cassação de Freitas lida pelas lentes do racismo estrutural não é experiência única no Brasil. Caso semelhante viveu Esmeraldo Tarquínio. Tido como político insubordinado, com forte atuação no litoral paulista, Tarquinio também teve seus direitos políticos cassados por dez anos.

Político popular, Esmeraldo Tarquínio foi vereador, deputado por duas vezes e, em 1968, eleito prefeito em Santos pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Uma biografia política de Tarquínio, à moda de Freitas, mostra as complexas relações políticas e raciais no Brasil antes e durante o regime militar (1964-1985). A sua trajetória tem também elementos comuns à maioria dos políticos negros brasileiros no século XX e nas primeiras décadas do século XXI: origem em estrato popular e carreira política marcada por experiências de preconceito racial e discriminação.

Como Freitas, Tarquínio enfrentava a ideologia da democracia racial. Durante os anos de 1960, participou de atos cívicos de militantes negros paulistanos no contexto das mobilizações sobre abolição da escravatura. Em 1968, esteve nos Estados Unidos no auge da luta pelos direitos civis. Nos registros do Dops, inquietava aos agentes de segurança a relação que o parlamentar fazia entre os casos de racismo nos Estados Unidos e a realidade brasileira. 

Em 15 de Novembro de 1968, com 45.210 votos, Esmeraldo Tarquínio foi eleito prefeito de Santos. No entanto, seu mandato foi revogado pelo general Costa e Silva, que retirou a autonomia política da cidade e declarou a área da segurança nacional. A cassação de Tarquínio foi interpretada por ele como sendo ato de racismo por parte das autoridades militares. Numa coletiva no sindicato dos jornalistas, ao ser indagado sobre se o preconceito racial havia influído em sua cassação, Tarquínio lembrou um episódio de 1965, quando, na Associação dos Veteranos do Forte de Itaipu, o coronel Rubens Fleury Varela gritou: “Negro subversivo, vai para a Rússia limpar latrina que é o teu lugar” (Jornal Cidade de Santos,14-03-1979), em reação ao seu discurso sobre as ameaças à democracia logo após o golpe de 1964.

 

A forma como Freitas tem sido tratado pela mídia local e as várias denúncias de parcialidade por parte da comissão parlamentar apresentada pela defesa do vereador curitibano, e acatadas pelo Judiciário, dão mostras do caráter racial do processo de cassação. Dos quatro argumentos que sustentaram seu processo administrativo na câmara, três deles foram refutados pelas testemunhas e pela autoridade religiosa do local, quais sejam: 1) invasão da igreja, 2) interrupção da missa, 3) depredação de objetos religiosos, 4) prática de atividade política na igreja. Como as três acusações de tons mais graves foram descartadas pela acusação, posto que as testemunhas (incluindo o padre) e provas em vídeos as desmentiam, restou a argumentação da atividade política na Igreja, base argumentativa única para a cassação. 

Com esse argumento de caráter subjetivo e notavelmente frágil, o parlamentar eleito com 5.097 votos tornou-se o segundo vereador cassado na história da Câmara Municipal. Antes dele, a casa legislativa curitibana afastou o então vereador Rosalino Mazziotti (PDC), em 19 de agosto de 1964. No entanto, Rosalino recuperou seu mandato via Judiciário em março de 1965, segundo pesquisa de Luciane de Fátima Pereira, servidora aposentada da CMC, e que resultou no livro Legislaturas Municipais de 1947 a 2020. Freitas argumenta que vários outros processos tramitaram na Câmara nas últimas décadas, incluindo crimes graves que levaram à prisão e condenação de vereadores na Justiça comum, no entanto, nenhum deles foi cassado.

Para que a história não se repita como farsa, ou tragédia, é preciso lembrar que no passado Tarquínio, depois de cassado, só regressou à cena política na redemocratização. Candidatou-se a deputado e, poucos dias antes das eleições de 1982, sofreu um ataque cardíaco e morreu aos 55 anos. Como tragédia, a sua cassação por motivos políticos ecoa hoje como pesadelo. No caso de Freitas, embora encerrada a batalha na Câmara, o litígio seguirá nos tribunais. Será mais um caso de judicialização da política. Em tempos em que a democracia precisa ser defendida com unhas e dentes, recorrer ao Judiciário para barrar abusos de poder do Legislativo ou do Executivo se tornou, infelizmente, rotina na democracia brasileira.