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    Bolsonaro em reunião com embaixadores em 18 de julho Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

questões da desinformação

Urna eletrônica vira alvo da mentira

Postagens falsas atacando o sistema eleitoral brasileiro se multiplicam nas redes de apoiadores de Bolsonaro

Daniel Tozzi | 25 ago 2022_15h32
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Ao ser entrevistado na bancada do Jornal Nacional da TV Globo na última segunda-feira (22), o presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou que respeitará o resultado das urnas eletrônicas desde que as próximas eleições sejam “limpas e transparentes”. Na prática, Bolsonaro repetiu o discurso de desconfiança sobre o sistema eleitoral brasileiro, apesar das reiteradas manifestações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) garantindo a lisura das eleições e de nunca ter sido comprovado qualquer indício de fraude nos mais de 25 anos de utilização das urnas. 

A mensagem de desconfiança sobre o sistema eleitoral propagada pelo presidente parece já causar impacto nos eleitores, ou ao menos no que os brasileiros pesquisam na Internet. Foi na semana de 17 a 23 de julho de 2022, por exemplo, que os brasileiros mais fizeram pesquisas no Google com o termo “urnas” nos últimos 12 meses, de acordo com o Google Trends, ferramenta que mostra os assuntos mais populares na aba de pesquisa do site. O período coincide com a data (18 de julho) em que Bolsonaro fez ataques, sem apresentar provas, às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral para uma plateia de embaixadores estrangeiros. É também a partir de julho que cada vez mais boatos e informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro começaram a circular nas redes sociais, quase sempre compartilhadas por apoiadores do presidente. 

Tanto na entrevista ao Jornal Nacional quanto na apresentação aos embaixadores, Bolsonaro reciclou argumentos descontextualizados sobre um inquérito da Polícia Federal que investigou uma invasão ao sistema de informações do TSE em 2018. O ataque atingiu apenas o sistema interno do Tribunal, sem qualquer interferência na segurança das urnas eletrônicas ou no resultado das apurações daquele ano, conforme já havia demonstrado verificação do Projeto Comprova, consórcio que reúne jornalistas de 42 veículos de comunicação brasileiros, incluindo a piauí, para checar informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições e a pandemia de Covid nas redes sociais ou nos aplicativos de mensagens. 

Dos 35 conteúdos verificados pelo Comprova entre 1º de julho e 15 de agosto, 7, ou seja, um a cada cinco, espalhavam informações falsas ou enganosas sobre as urnas. Somadas, essas publicações reuniram mais de 806 mil interações, entre visualizações, curtidas, compartilhamentos e comentários. Nos dois meses anteriores (maio e junho), o Comprova havia checado apenas uma publicação que tinha como tema as urnas eletrônicas, em um universo de 57 verificações concluídas. 

O número de boatos sobre urnas verificados pelo Comprova também foi bem maior que o registrado no período imediatamente anterior ao pleito de 2018. Naquele ano, o primeiro de atuação do Comprova, entre 5 de agosto e 6 de outubro, véspera do dia do primeiro turno da eleição, foram 107 verificações realizadas pelo projeto, das quais apenas 4 tinham como tema as urnas eletrônicas ou insinuações sobre fraudes eleitorais. 

 

Um dos boatos que ganharam as redes no último mês de julho dizia que a contagem de votos no dia das eleições seria feita por uma empresa terceirizada, e não pelo TSE. A desinformação foi compartilhada pelo ex-deputado estadual do Paraná Fernando Francischini, que perdeu o mandato em 2021 justamente por ter divulgado mentiras sobre as urnas eletrônicas nas redes sociais. 

Conforme demonstrou o Comprova, a postagem retirou de contexto declarações do então presidente do TSE e hoje ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso durante uma coletiva de imprensa no dia do primeiro turno das eleições municipais de 2020. A terceirização à qual Barroso se referiu em uma de suas respostas era a da empresa responsável pela manutenção do supercomputador do TSE, que processa a totalização dos votos registrados nas urnas. O trabalho da empresa terceirizada se restringe a eventuais consertos ou troca de peças no aparelho, sendo que o processo de totalização de votos é feito inteiramente pela equipe técnica do Tribunal. Procurado pelo Comprova para esclarecer a postagem, Francischini não respondeu. 

Outro político alinhado a Bolsonaro que espalhou informações falsas sobre as urnas foi o deputado estadual do Espírito Santo Capitão Assumção (PL). Pelo Instagram ele republicou um texto de um site que dizia que as Forças Armadas brasileiras teriam descoberto a existência de um “programa executável” nas urnas, capaz de transferir votos de um candidato para outro ou considerar como nulos os votos em determinado candidato. 

Consultados pelo Comprova, especialistas, e o próprio TSE, confirmaram que os sistemas que trazem os códigos com instruções sobre as tarefas que devem ser executadas pelas urnas, de fato, são chamados de “executáveis”, porém não possuem qualquer capacidade de fazer alterações na contabilização de votos. A lisura das urnas e da apuração pode ser confirmada nos processos de auditoria do TSE, como o Teste Público de Segurança e o Teste de Integridade, abertos à participação de diversas entidades antes, durante e depois das eleições. 

Mencionado pelo conteúdo verificado como sendo o responsável pela “descoberta” dos sistemas fraudadores nas urnas, o Exército pediu que as perguntas fossem direcionadas à Defesa, que por sua vez não respondeu aos questionamentos enviados pelo Comprova. Já o o autor do texto divulgado no site, disse que escreveu a matéria “baseado em fontes militares” e mencionou a existência de um programa executável chamado “Inserator” que, segundo ele, teria sido responsável pela virada da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) sobre Aécio Neves (PSDB) nas eleições de 2014. Dilma venceu no segundo turno por uma margem de cerca de 3%, após ter ficado atrás de Aécio no início da apuração. Relatório do próprio PSDB, contudo, não verificou qualquer evidência de fraude ou adulteração da contagem de votos na eleição de 2014. Além disso, como está demonstrado em outra checagem do Comprova publicada em julho, a explicação para a virada na apuração do segundo turno daquele ano é que, enquanto os votos contabilizados vinham predominantemente dos estados das regiões Sul e Sudeste, onde Aécio Neves venceu, a apuração indicava a vitória parcial do candidato tucano. Mas, na medida em que começaram a ser computados os votos dos estados do Norte e do Nordeste, onde Dilma obteve ampla vitória, esse placar foi mudando até que se consolidou na vitória apertada da petista. 

Sobre o “Inserator”, o TSE ainda respondeu ao Comprova que tratava-se de um pacote de sistemas externo à urna, sem qualquer relação com o processo de contagem de votos e cuja função era a de gerar certificados digitais para garantir que determinada urna fazia parte do sistema oficial da Justiça Eleitoral. Tal sistema foi utilizado somente até as eleições de 2004. O deputado Capitão Assumção, um dos responsáveis por viralizar o boato, não respondeu aos contatos do Comprova. 

 

Publicada em 18 de julho, dia em que Bolsonaro se reuniu com os embaixadores, uma montagem de um suposto boletim de urna fraudado das eleições presidenciais de 2018 também esteve entre as verificações feitas pelo Comprova nas últimas semanas. Compartilhado inicialmente no Twitter, um post com a imagem do suposto boletim chamava a atenção para a “discrepância de votos” creditados à Fernando Haddad (PT), que teria sido o escolhido por 9.909 eleitores naquela urna, enquanto Bolsonaro aparecia com a votação zerada. 

O Comprova demonstrou que, na verdade, a foto do boletim original mostrava Fernando Haddad com “0009” votos, e não 9.909. Já os números creditados à Bolsonaro também foram editados: o boletim original indicava “0342” votos em nome do atual presidente, enquanto na montagem o número era de “0000”. Conforme explicação do TSE, a atribuição do número “0000” à quantidade de votos de um candidato é outra prova de que o boletim era uma montagem, uma vez que os boletins de urna não exibem nomes de candidatos que não receberam votos. 

Já no dia 1º de agosto, o Comprova demonstrou ser falso um vídeo viral, postado inicialmente no Kwai, que dizia, sem apresentar qualquer prova, que o TSE havia comprado 32 mil urnas eletrônicas “grampeadas”, que tinham como objetivo “dar o golpe final no Brasil”, impedindo a reeleição de Bolsonaro. O TSE, de fato, adquiriu cerca de 32 mil novas urnas do modelo “UE2020” da empresa Positivo Tecnologia, em março de 2021, para utilizar o equipamento nas eleições de outubro desse ano, mas a chance de os aparelhos estarem grampeados é nula.

Prova disso é que, além do TSE acompanhar a fabricação das urnas, os equipamentos são desenvolvidos para operarem apenas por meio de softwares desenvolvidos pelo próprio Tribunal. Ou seja, é impossível acoplar softwares maliciosos para alterar o funcionamento das urnas. Tal impossibilidade é atestada por meio de testes que a Corte tem promovido ao lado de entidades parceiras, como a Universidade de São Paulo (USP), direcionados exclusivamente para as urnas modelo “UE2020”. Nesses testes, estudantes da Escola Politécnica da USP participam de ataques coordenados ao software e ao hardware das urnas para tentar quebrar o sigilo ou alterar a destinação dos votos e, consequentemente, provar que as urnas não podem ser invadidas. Além disso, ao contrário do que afirmava o vídeo postado no Kwai, as 32 mil novas urnas adquiridas não estão “estocadas” na sede do TSE em Brasília, e já foram distribuídas para os 27 Tribunais Regionais Eleitorais (TREs). 

 

Apesar de todos os boatos sobre as urnas checados pelo Comprova terem sido compartilhados nas redes por apoiadores de Bolsonaro, boa parte dessas informações falsas ou enganosas, em algum momento, também já apareceram em manifestações públicas do próprio presidente. Alguns dos boatos foram citados, por exemplo, na “live bomba”, transmitida em 29 de julho de 2021 pelos canais oficiais de Bolsonaro, em que ele prometeu fazer revelações “comprometedoras” sobre as urnas, mas acabou repercutindo insinuações antigas e sem apresentar qualquer prova. Algumas dessas insinuações voltaram a circular com nova roupagem em posts recentes nas redes sociais, e foram verificados novamente, agora pelo Comprova. 

Foi o caso do conteúdo compartilhado em 25 de julho pelo blogueiro Oswaldo Eustáquio, conhecido influenciador bolsonarista que já chegou a ser preso e teve suas contas nas redes sociais bloqueadas mais de uma vez por decisão do STF. No Twitter, Eustáquio fez menção a um “documento secreto” da Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) que supostamente reconhecia problemas no processo de apuração das eleições de 2018 e que, por isso, Bolsonaro teria sido eleito no primeiro turno. Tudo mentira. O Comprova demonstrou que, na verdade, o documento da PGE era um pedido de arquivamento de uma denúncia protocolada ainda em 2018 por dois apoiadores do presidente. Eles basearam a “denúncia” na transmissão ao vivo da apuração do canal de televisão GloboNews para dizer que aconteceu uma falha na contagem dos votos. Os denunciantes usaram o fato de que houve problemas na distribuição dos dados da apuração do TSE para a imprensa (o que fez com que, por alguns minutos, a apuração não evoluísse na transmissão da GloboNews) para sugerir que houve falha na apuração dos votos, o que jamais ocorreu. O próprio documento da PGE, citado por Eustáquio, mencionava na decisão que o ritmo de divulgação da evolução dos resultados “não tem qualquer impacto no resultado final da eleição”. Na “live bomba” de 2021, Bolsonaro dedicou pelo menos 15 minutos para explorar o boato, que segue sendo requentado nas redes sociais. Tanto a “live bomba” de julho de 2021 quanto a transmissão ao vivo do encontro de Bolsonaro com os embaixadores foram recentemente excluídas do YouTube, por decisão da plataforma, que argumentou que o conteúdo “violava as políticas de integridade eleitoral” da empresa. As transmissões, contudo, seguem disponíveis na página oficial de Bolsonaro em outras redes, como o Facebook.