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    Ilustração: Carvall

anais do golpismo

The golpe is on the table

Para tentar reagir ao TSE, Bolsonaro repete mentiras diante de embaixadores e inaugura com atraso a frente internacional de sua campanha para desacreditar as eleições

Rafael Mafei | 19 jul 2022_12h06
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Na tarde de 18 de julho de 2022, o presidente Jair Bolsonaro reuniu-se com dezenas de representantes de diversas nações para, em suas palavras, realizar um “debate técnico” sobre o processo eleitoral brasileiro. Nos dias anteriores à reunião, o Itamaraty buscou confirmar a presença do maior número possível de representantes qualificados no encontro que nada serviu a interesses de política externa do país, mas apenas às urgências eleitorais do candidato Jair Bolsonaro.

O teor da reunião, na qual os diplomatas estrangeiros ouviram muito e falaram pouco, ficou entre aquilo que Bolsonaro apresentou em sua live de um ano atrás, quando requentou teorias conspiratórias de nível colegial sobre fraudes nas eleições que venceu, e a recente apresentação do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio, no Senado Federal, quando o militar insistiu não ser possível ao Exército atestar a segurança das urnas contra ataques de agentes maliciosos que tenham acesso direto aos equipamentos.

A reunião é uma reação direta de Bolsonaro ao encontro do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Edson Fachin, com representantes de países e organizações internacionais em maio deste ano. Na ocasião, mesmo sem mencionar o nome de Bolsonaro, Fachin foi explícito em chamar atenção da plateia de 68 embaixadores, diplomatas e chefes de missões estrangeiras para os ininterruptos ataques a que o processo eleitoral brasileiro vinha sendo submetido. Criticou os “populistas”, as “acusações levianas de fraude” e o “vírus da desinformação”, e chamou atenção para a possibilidade de séria instabilidade política no período pós-eleitoral, para então assegurar que a Justiça Eleitoral estava pronta a desincumbir-se de sua missão. O recado mais importante do dia foi claro: Fachin instou os países e organizações ali representados a buscarem informações confiáveis sobre a integridade das eleições no Brasil, pois confia que quem o fizer de boa-fé restará convencido de que as reclamações de Bolsonaro não passam de pirraça de mau perdedor. O encontro foi a parte mais solene da estratégia de Fachin de angariar apoio internacional ao trabalho do TSE, ao lado do convite a um número recorde de observadores estrangeiros para acompanharem o pleito.

Uma semana após a reunião entre o TSE e os embaixadores, Bolsonaro proferiu um discurso raivoso e ameaçador reclamando da iniciativa. Ameaçou “reação”, sem especificar qual seria, por não ser “um rato”. Por Fachin ter se reunido com representantes de nações estrangeiras, algo que a seu entender caberia apenas ao Poder Executivo, Bolsonaro acusou-o de ter promovido um “estupro” da democracia. Aparentemente, Bolsonaro acha que a democracia é feia e não merece ser estuprada. 

 

A crítica de Bolsonaro não foi, obviamente, motivada por qualquer apreço à integridade da democracia. Como parlamentar, ele nunca escondeu sua preferência pela ditadura que sempre homenageou; e como presidente, trabalhou dia e noite contra instituições e convenções sociais indispensáveis ao regime democrático, a mais óbvia das quais é a disposição para entregar o poder à oposição caso ela vença as eleições. No debate político atual, quem ainda acredita que Jair Bolsonaro está preocupado com a democracia deve ser tratado da mesma forma com que seu governo tratou as necessidades dos mais vulneráveis até perceber que precisava deles para não perder as eleições: ora com fria indiferença, ora com escancarado deboche. 

Vinda do candidato que busca interferir no processo eleitoral com apoio explícito das Forças Armadas, a crítica de que outra instituição supostamente ultrapassa seu quadrado constitucional só pode ser recebida como cinismo. Apenas para que conste, a pirraça de Bolsonaro não tem fundamento: observadores e convidados internacionais são figuras comumente presentes em eleições mundo afora, e nada há de estranho no fato de a instituição que organiza os pleitos – no Brasil, a Justiça Eleitoral, encabeçada pelo TSE – promover entendimentos para assegurar sua presença. Na eleição de 2018, vencida por Bolsonaro, quem acertou a vinda de observadores internacionais para acompanhar a votação no Brasil foi o mesmo TSE, mas o candidato então à frente nas pesquisas não viu “estupro” da democracia. Da mesma forma, quando o Brasil manda agentes para servirem de observadores internacionais em eleições de outros países, quem costuma ir não são os membros do Executivo ou diplomatas do Itamaraty, e sim magistrados do TSE, como aconteceu nas últimas eleições presidenciais colombianas.

A fúria de Bolsonaro contra a reunião de Fachin com embaixadores lembrou episódio semelhante no qual o presidente voltou-se, em tom igualmente hidrofóbico, contra o ministro Luís Roberto Barroso, quando este presidia o TSE. O pretexto foram os encontros de Barroso com lideranças políticas do Congresso Nacional por ocasião da votação de projetos, que acabaram derrotados, para implementar o voto impresso nas eleições de 2022. Da mesma forma, Bolsonaro reclamou que Barroso havia ultrapassado limites e estava fazendo política, ignorando o fato de que é próprio a presidentes de tribunais representarem suas cortes em diálogos com outros poderes nos temas que digam respeito aos aspectos materiais e institucionais indispensáveis a seu funcionamento. 

A muralha intransponível que Bolsonaro alega existir entre o Judiciário e os demais poderes não existe – ao menos não da forma como ele a representa. Presidentes do STF sempre participaram de debates sobre reforma judiciária junto ao Congresso, e cabe ao tribunal inclusive a iniciativa exclusiva de projetos de lei sobre a carreira da magistratura. Durante a tramitação da PEC que veio a tornar-se a Emenda Constitucional 45, que entre outras coisas criou o CNJ, o diálogo entre presidência do STF e Congresso foi permanente. 

A eventual mudança de todo o sistema de votação obviamente impactaria a capacidade de o TSE realizar as eleições nos termos impostos pela Constituição. Seria absurdo exigir que uma discussão dessa natureza ocorresse à revelia do tribunal representado por seu presidente, que à época era o ministro Barroso. Aqui, mais uma vez, o cinismo de Bolsonaro é escancarado: se quisesse voltar-se contra ministros do STF que participam de encontros políticos impróprios, poderia começar boicotando jantar em homenagem a Gilmar Mendes na casa de Arthur Lira, ao qual compareceu sem constrangimento. A quem acredita que Bolsonaro está realmente preocupado com o sarrafo da ética judicial no Supremo estar abaixo do recomendado, renovo os meus votos de indiferença e deboche.

Bolsonaro está, isto sim, preocupado com o fato de que o TSE tem se mostrado competente em articular-se junto a diversos setores nos quais o governo talvez imaginasse vencê-lo com facilidade. No Congresso Nacional, a PEC do voto impresso foi derrotada na Câmara quando Arthur Lira já dispunha, há aproximadamente oito meses, das vantagens imbatíveis garantidas pelo orçamento secreto. Nas redes sociais, onde Bolsonaro julgava ser capaz de ganhar de qualquer um com os dois braços amarrados atrás das costas, o TSE teve êxito em negociar arranjos de cooperação com plataformas de redes sociais, que igualmente fizeram o presidente comer poeira: Fábio Faria, ministro das Comunicações, chegou ao Telegram só depois de o TSE haver conseguido que o aplicativo nomeasse representante no Brasil. Ainda no tema das redes, o STF foi bem-sucedido em impor reveses sensíveis aos influenciadores que se dispuseram a ser longa manus de Bolsonaro nas campanhas de desinformação sobre a Covid-19 e as vacinas, e nos ataques ao sistema eleitoral e ao próprio Supremo. 

A reunião atabalhoada desta semana é o atestado de que a campanha de Bolsonaro, em seu empenho de desacreditar as eleições, levou bola nas costas também no terreno das relações internacionais, no qual talvez pensasse jogar sozinha. Se não tivesse dormido no ponto, Bolsonaro poderia ter se valido da estrutura diplomática bem estabelecida de que dispõe o Ministério das Relações Exteriores para tentar cooptar apoios para sua empreitada antidemocrática contra o TSE. Mas Fachin foi mais diligente e antecipou-se na busca de apoio internacional ao tribunal, às urnas e às eleições. 

A julgar pelo histórico desempenho de Bolsonaro e do general Paulo Sérgio na matéria, é de se esperar que os embaixadores presentes na reunião de ontem saiam pouco convencidos pela cantilena de que as eleições não são confiáveis. Talvez Jair Bolsonaro tenha conseguido lhes transmitir com sucesso, isto sim, alguma doença: horas antes do encontro, o presidente relatou ter passado mal na noite anterior, com sintomas de gripe e febre. Mentiras e um vírus respiratório: nenhum cerimonialista poderia conceber um evento tão bem talhado para expressar o legado da administração de Bolsonaro para o resto do mundo. Terá faltado apenas botar fogo nas plantas e jogar mercúrio na água mineral.

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