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    "Não durma ou você será derrotado", dizia o cartaz no comício do oposicionista Donald Tusk, grande rival do atual primeiro-ministro na eleição Foto: Wojtek Radwanski / AFP

anais da política internacional

Eleitores da Polônia deram voto de confiança à democracia

Em um país que vinha se transformando em uma autocracia de extrema direita, o impasse em torno da escolha do primeiro-ministro já é uma primeira vitória

Marina Slhessarenko Barreto | 19 out 2023_09h01
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Antes das eleições parlamentares de 15 de outubro, a cobertura política independente da Polônia – o adjetivo “independente” é importante porque o governo vem cooptando veículos de imprensa nos últimos anos – sinalizava um cenário turbulento.

Como é praxe no calendário eleitoral de países em processo de autocratização, o governo polonês fez investidas obscenas para mobilizar uma base oscilante e cada vez menos entusiasmada. Por outro lado, os democratas chamavam a atenção da comunidade internacional para as lambanças do governo para pedir apoio da União Europeia e dos Estados Unidos em nome da lisura do processo eleitoral. 

Nos últimos meses, o PiS (Partido da Lei e da Justiça), de extrema direita, fez diversas acrobacias para se agarrar ao posto. Em março, aprovou mudanças no Código Eleitoral, que já seriam aplicáveis a essas eleições. Implementando medidas aparentemente positivas, como gratuidade no transporte e aumento de seções eleitorais em áreas rurais, o partido tentou favorecer seu eleitorado fiel, como acusou a oposição. Afinal, fabricar novas regras eleitorais é receita básica do roteiro autoritário, já empregada na Hungria e sendo testada aos montes nos Estados Unidos.

A lista de manobras para perpetuar o PiS no poder é longa. O resultado das urnas, porém, azedou a estratégia. Se antes a continuidade da extrema direita parecia certa, agora ela é uma dúvida, diante de um impasse de difícil solução para o atual governo.

Dos 460 assentos na Câmara (Sejm), o PiS, partido mais votado, levou 194, abaixo dos 231 necessários para conseguir maioria sozinho. A oposição, por sua vez, conquistou 248 assentos – a união entre a Coalizão Cívica, a Esquerda e a Terceira Via. Quem leva, porém, a indicação de primeiro-ministro? É o partido campeão de votos ou a maioria formada pela soma de forças? Eis a questão a ser respondida, em um país onde essa regra eleitoral não é regulada pela Constituição.

Os dois lados, situação e oposição, alardearam vitória, mas a resposta será dada pelo presidente Andrzej Duda. Ele deve convocar a primeira sessão do novo parlamento dentro de 30 dias da data da eleição. Feita a sessão, terá o prazo de 14 dias para nomear um novo primeiro-ministro ou reconduzir o atual. Duda chegou ao poder pelo PiS (ele abdicou à filiação partidária ao ser eleito presidente, como é tradição no país, em sinal de isonomia da gestão, que obviamente não acontece na prática).

Ele antecipou que deverá indicar um nome da situação. Cabe à Câmara, porém, confirmar ou rejeitar a escolha – e a coalizão tem o número de cadeiras para mandar nesse jogo. Caso o impasse permaneça, novas eleições podem até ser convocadas. Duda, presidente desde 2015, encerrará seu mandato em 2025, e há dúvidas sobre o quanto aceitará se desgastar com os dois lados. 

Trata-se de um imbróglio atípico na Polônia. É a primeira vez, desde a virada do século, em que a legenda campeã de votos não consegue formar coalizão para maioria. A baixa performance no Senado (cuja pequena força política não se compara àquela do Senado brasileiro) também abala a força do PiS: foram 34 das 100 cadeiras, quatro a menos que nas eleições anteriores.

Diante dessa complexidade, as eleições têm sido citadas muitas vezes como as mais importantes na Polônia desde 1989, quando o país começou seu processo de redemocratização após a dieta comunista. Para além da contagem de cadeiras, ela expressa um movimento de mudança importante. O comparecimento às urnas foi um recorde histórico: 74,38%. A faixa etária entre 18 e 29 anos é a que mais chama a atenção: aumentou em mais de 22% sua participação em relação à eleição anterior. A taxa total superou o recorde de 2019, que ficou abaixo de 62%, com a presença de cerca de 46,4% dos jovens (que agora somam 68,8%).

O dia das eleições também foi marcado por longas filas de espera em pontos de votação, dentro e fora do país. Algumas seções ficaram sem cédulas dada a quantidade de votantes acima do esperado e eleitores tiveram que esperar até três da manhã para votar (o horário de fechamento das urnas era 21 horas, mas a quem estivesse na fila depois desse horário foi garantida a chance de depositar o voto).

 

O caminho do governo até o dia da votação foi tortuoso. Enquanto lançava medidas populistas, aprovou uma lei abertamente inconstitucional e contra as regras de direito europeu para combater a “influência russa” – que, para os íntimos, atende pelo nome de Donald Tusk. Tusk é líder do maior partido de oposição, a Plataforma Cívica (que agregou outras forças políticas nessas eleições sob a aliança da Coalizão Cívica) – e foi o candidato a deputado com o maior número de votos nas eleições de domingo.

Essa lei é cheia de conceitos indeterminados e prevê a criação de uma comissão parlamentar dotada de poderes superlativos para julgar casos da tal “influência russa” no país, o que levantou suspeitas de um macartismo 2.0. A repercussão negativa foi tamanha que a Comissão Europeia pediu explicações ao governo com excepcional rapidez e sugeriu a revogação imediata da iniciativa. Depois, o governo sugeriu remendos cosméticos à lei, que foram barrados por um Senado em protesto, mas revertidos pela Câmara e levados à sanção presidencial depois da querela inicial já ter perdido a voltagem política. 

Não bastasse isso, o líder do partido, Jarosław Kaczyński, turbinou as bravatas conspiratórias. Virou meme nas redes sociais por dizer que o que estava em jogo nas eleições era o direito dos poloneses de colher cogumelos. Insinuou que Donald Tusk seria a incorporação absoluta do mal e que a Polônia não teria futuro se a oposição ganhasse, o que são rubricas comuns ao autoritarismo, como bem sabem os eleitores brasileiros.

Kaczyński chegou também a anunciar que submeteria os tribunais a seu mando quando seu partido ganhasse as eleições, porque eles teriam pisoteado o estado de direito. “Vamos mudar isso”, garantiu – sem mencionar que, de tanto aparelhar tribunais, a Polônia vem sofrendo com o bloqueio de fundos europeus e com outros procedimentos sancionatórios na União Europeia.

Em meio a confabulações sobre mandantes russos e alemães no país, ataques a imigrantes e outros enredos delirantes, Kaczyński até tirou da cartola um referendo para atiçar seus correligionários, programado para acontecer na mesma data das eleições. Com perguntas que iam desde a privatização de companhias públicas até a deriva migratória, essa iniciativa passou a ser alvo de campanha de boicote pela oposição.

O timing não poderia ser mais sensível: a UE acabou de aprovar seu novo pacto migratório, o que levou o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán a dizer que “Bruxelas estuprou legalmente a Polônia e a Hungria”. No fim das contas, o referendo flopou de forma monumental. Somente cerca de 41% do eleitorado – menos do que os 50% exigidos para validar um tal procedimento – optaram por participar, em alto contraste com o recorde absoluto de participação eleitoral. Mirou em unir uma base maior para legitimar o projeto nacionalista e xeonofóbico do PiS e acertou com um tiro no pé.

A cascata de benesses não teve o efeito esperado. O governo reduziu os preços dos combustíveis, prometeu redução do tempo de trabalho para a aposentadoria e concedeu uma pensão surpresa aos professores (que, em setembro, desfilaram demandas por melhores condições de trabalho nas ruas do país). Em gestos desesperados, também garantiu fundos polpudos para áreas com alta concentração de eleitores fidelizados.

No final de setembro, o ministério do Meio Ambiente, em conjunto com o ministério do Interior, anunciou uma competição a pequenos municípios poloneses: aqueles que conseguissem maior comparecimento às urnas poderiam ganhar 220 mil euros para modernizar seus corpos de bombeiros. Pior: a exíguos três dias das eleições, o ministério da Agricultura chegou a assegurar financiamento a associações rurais em cidades pequenas que tivessem comparecimento eleitoral de mais de 60%. Contra o medo de perder o governo, vale tudo, até a compra branda de votos.

 

Todas essas manobras foram tentadas em um cenário de acelerado derretimento da popularidade do PiS, mesmo que todas as pesquisas de opinião não deixassem de mostrá-lo em primeiro lugar na disputa a acontecer (inclusive lhe garantindo maioria sem necessidade de coalizão). Nos últimos meses, o partido se deixou enredar em disputas domésticas e internacionais que lhe custaram popularidade. Uma delas foi a aprovação da lei da tal “influência russa”. A medida gerou o maior protesto no país desde a redemocratização. Cerca de 500 mil poloneses fizeram uma grande marcha pela democracia, no mesmo dia da comemoração dos 34 anos das eleições que puseram fim ao comunismo. 

Uma cifra de magnitude comparável tomou as ruas de Varsóvia no começo de outubro, a duas semanas do pleito. A Coalizão Cívica, dividindo o palanque com a Esquerda, mobilizou centenas de milhares de poloneses na “Marcha de um milhão de corações”, em alusão ao logotipo do partido. A capital da Polônia, bem como outras grandes cidades, é governada pela oposição, marcando a divisão entre eleitores rurais e conservadores pró-PiS e eleitores urbanos e progressistas pró-oposição.

Outro cabo eleitoral para a oposição foi um escândalo de venda de vistos poloneses, que veio a público em setembro. Segundo relatórios publicados pela imprensa, migrantes da África e da Ásia pagaram até 4 mil euros a autoridades consulares polonesas em troca de vistos de trabalho. A oposição tachouou o episódio de “o pior escândalo polonês do século XXI”, o que levou à queda do ministro de Relações Exteriores e mais uma rusga com a União Europeia.

Em gesto ao eleitorado rural, o governo decidiu frear seu apoio à Ucrânia na guerra. Desde que o conflito estourou, a Polônia se aliou a Volodymyr Zelensky – o que até levou a atritos com sua vizinha Hungria, cujos esforços para se solidarizar com Vladimir Putin não são poupados. De alguns meses para cá, porém, o governo polonês estancou a venda de armas à Ucrânia, prometeu investir até 5% de seu PIB para a defesa militar – o que representa o maior percentual de PIB injetado na defesa por um país da OTAN – e vetou unilateralmente a importação de grãos ucranianos.

Com o veto, o partido igualmente flertou com o partido da Confederação, de uma direita ainda mais radical que o PiS, que critica o envolvimento polonês na guerra da Ucrânia. 

Assim como aconteceu agora na Polônia, um processo semelhante se deu na Hungria no ano passado e na Turquia neste ano, mas com resultados catastróficos para a democracia. É por isso que devemos desde já aplaudir os resultados eleitorais da Polônia no último domingo. Os eleitores mostraram ao mundo a possibilidade de desvio da autocratização, que vem se entrincheirando nas instituições desde o final do primeiro mandato do presidente Andrzej Duda, em 2019. 

Apesar das investidas robustas contra a democracia, porém, até aqui o governo polonês não conseguiu mudar substancialmente a arquitetura constitucional para se favorecer em termos eleitorais. Na Hungria, por exemplo, ainda em seu primeiro mandato, o primeiro-ministro Viktor Orbán conseguiu maioria parlamentar para substituir a Constituição e, de uma tacada só, também reduzir pela metade o número de membros do parlamento.

A Turquia, por sua vez, não só aboliu o sistema político vigente pela via constitucional, mas também chancelou reeleições presidenciais sucessivas de facto (afinal, a constituição proíbe mais de uma reeleição, mas Recep Tayyip Erdoğan foi reeleito para um terceiro mandato neste ano). Já na Polônia, o PiS se mostra sem forças para mudar a constituição até 2025 e emplacar um terceiro mandato de Duda, possibilidade vetada atualmente. 

Tudo ainda está muito recente. Para a nova coalizão oposicionista, formada pela Coalizão Cívica, Esquerda e Terceira Via, o cenário igualmente apresenta desafios. O grupo aglutina não só a esquerda, como também a centro-direita e uma direita não radical.

A Terceira Via, que por sinal performou melhor do que o esperado, surgiu de uma oposição tanto à Plataforma Cívica quanto ao PiS, as duas maiores forças parlamentares. A Esquerda, por sua vez, perdeu cadeiras e influência na esfera pública. Se é certo que ativistas progressistas, minorias sexuais e euroentusiastas de toda sorte estão festejando os resultados com a volta da Polônia ao mapa da democracia, não é menos verdade que há um longo caminho a ser costurado. Muita coisa ainda pode acontecer, mas desde já o país mostrou para o mundo que é possível desmantelar um processo voraz de autocratização, bem como fez em 1989.

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