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    Soledad Barrett Viedma, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) delatada por Cabo Anselmo e morta pela ditadura Foto: Reprodução

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Em busca de Soledad

Sobre o tratamento condescendente dado a Cabo Anselmo, informante da ditadura, em uma série documental da HBO

Eduardo Escorel | 15 nov 2023_08h00
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Entre os horrores, do passado e atuais, exibidos na televisão, alguns dos mais desagradáveis de assistir são as declarações de José Anselmo dos Santos (1942-2022), incluídas na série Em Busca de Anselmo. O tenebroso agente policial a serviço da ditadura militar, mais conhecido como Cabo Anselmo e depois vulgo Jadiel, Jônatas, Kimble e Daniel, relata sua trajetória ao longo dos cinco episódios lançados em abril de 2022, com duração total de 309 minutos, exibidos de novo há uma semana no canal HBO Mundi e disponíveis no serviço de streaming HBO Max.

No final do primeiro episódio, uma luz frontal, semelhante à de um interrogatório, ilumina um close de Anselmo. Ele está atento, com expressão facial séria e olha para a direita do quadro. Ouve-se uma voz em off: “Você já matou alguém?”. Antes de responder, o entrevistado dá uma risada, interrompida pela mudança de plano. Agora, de frente para a câmera, diz: “Uma vez, fui matar uma galinha, né? Mas me deu uma baita tremedeira e a galinha saiu correndo, com o pescoço meio quebrado.” Segue-se um fade out, e sobre o fundo preto surge o título da série em letras brancas.

Diante dessa desastrada tentativa de humor, e após ter assistido à série completa, cabe perguntar: terá sido adequado dar tratamento condescendente a Anselmo na série? Uma legenda no final de Em Busca de Anselmo informa que “até o momento não há registros oficiais de quantas pessoas foram sequestradas, torturadas, assassinadas e desaparecidas em decorrência das delações do Cabo Anselmo. Além dos seis militantes assassinados em Pernambuco [no início de janeiro de 1973], poucos outros foram identificados.”

Ou seja, Carlos Alberto Jr., diretor e roteirista de Em Busca de Anselmo, não deixa de mencionar episódios nos quais delações feitas por seu personagem resultaram em desfechos trágicos. Por outro lado, apesar de serem feitas algumas perguntas diretas a Anselmo, o que sobressai, de modo geral, é a postura benevolente do diretor. O entrevistado raramente é contestado, mesmo quando procura se eximir de qualquer responsabilidade pelo que ocorreu, ou quando justifica sua participação como tendo sido movida por convicção ideológica contrária à luta armada.

 

O prólogo do quinto episódio é exemplar nesse sentido. Os bucólicos planos iniciais mostram Anselmo sentado ao lado de uma casa pequena cercada de vegetação exuberante, lendo um livro com as pernas cruzadas e os pés sobre uma mesa à sua frente. Ao seu lado, estão um cachorro preto e outro branco. Uma pergunta é feita em off na terceira pessoa, apesar de ser dirigida ao próprio entrevistado: “O Anselmo foi impelido também para agir daquela forma por algum tipo de covardia?”. Em resposta, ele primeiro diz: “Nunca pensei como covardia, não. Eu sempre pensei o seguinte: os meus atos foram atos de consciência. Eu estava consciente do que eu estava fazendo, com um objetivo: contribuir para acabar com a luta armada. Segundo objetivo: liberar a mim próprio e seguir a minha vida longe da violência.” 

Segue-se montagem alternada de outras declarações com cenas prosaicas encenadas do que seria seu cotidiano na época das gravações – Anselmo dá de comer aos cachorros; depois, afirma: “Hoje para mim, interiormente, essa questão já está definida. Eu não estou procurando que me julguem culpado, inocente, herói ou canalha. Nada disso.” Anselmo rega as plantas do jardim com a água de uma mangueira e diz no plano seguinte: “Naquele instante, eu não me sentia tranquilo e, hoje, eu não me sinto culpado de maneira nenhuma.” Após perguntar a alguém não identificado se “quer comer uma ora-pro-nóbis”, o prólogo termina com Anselmo dando uma sonora gargalhada. Seria o caso de perguntar a ele de quê está rindo. Mas nada é dito e seguem-se os créditos de abertura do quinto episódio. 

A complacência de Carlos Alberto Jr. em relação a seu personagem sobressai, de início, na tentativa sistemática de recuperar sua origem modesta em Itaporanga D’Ájuda, Sergipe, e de colher o testemunho de seus amigos de infância e adolescência, além de seu próprio depoimento, gravado às vezes em uma igreja – Anselmo esfrega as mãos no rosto e se levanta da cama, lava as mãos, faz a barba, penteia o cabelo, toma café; visita o prédio do DOPS, no centro do Rio de Janeiro, onde esteve preso pela primeira vez etc. São todas cenas da vida privada e de uma espécie de turismo biográfico na tentativa aparente de retratar o personagem como sendo um homem comum.

 

Quando Anselmo alega, no final do quinto episódio, que mesmo sem a sua colaboração, o grupo de militantes mortos ou desaparecidos na periferia de Recife em janeiro de 1973 acabaria “assim, como acabaram tantas outros”, insinuando que isso o isentaria de responsabilidade pelo que ocorreu, Carlos Alberto Jr. erra ao não refutar o entrevistado. A contraditória justificativa dada a seguir por Anselmo, supostamente em sua própria defesa, tampouco é contestada: “E outra coisa. Eu não tinha, naquele momento, a exatidão de que elas seriam torturadas e mortas porque várias das pessoas com quem eu me relacionei e… já estava operando para o DOPS estão vivas.” 

Anselmo não responde às perguntas seguintes, as últimas que lhe são feitas na série: “Cadê o Edgar [Edgar Aquino Duarte]? Evaldo [Evaldo Luiz Ferreira de Souza] é um desaparecido político. Cadê o corpo de Soledad [Soledad Barrett Viedma]? Soledad é uma desaparecida política.” Esse é o raro e tardio momento da série em que o roteirista e diretor assume o papel que lhe cabia desde o princípio, o de se opor ao criminoso. O silêncio final de Anselmo é uma autocondenação. Ele se limita a fazer rápida expressão com o rosto e um gesto com a mão que talvez possam ser tomados como equivalentes a “o que mais posso dizer?” ou “E daí?”.

Quem indica com acuidade a falha decisiva de concepção da série documental dedicada a José Anselmo dos Santos, sobre o qual já havia vasta bibliografia e inúmeras entrevistas gravadas disponíveis, é a pedagoga, artista e ativista dos direitos humanos Ñasaindy Barrett de Araújo, filha de Soledad. Após o silêncio de Anselmo, ela diz em seu depoimento, contendo as lágrimas: “Não tem como encontrar o corpo da Soledad. Mas tem como encontrar a Soledad. Soledad se encontra hoje em dia em muitos lugares. Em muitas bandeiras… Vamos buscar e encontrar Soledades. Acredito que seja melhor do que buscar e encontrar Anselmos.” Carlos Alberto Jr. teve ao menos o mérito de encerrar Em Busca de Anselmo com essa proposta afetuosa.

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