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    Ilustração de Carvall

questões de gênero

Em casa e na rua, pandemia pesou mais para as mulheres

Pesquisa com moradoras de três favelas mostra que elas foram as primeiras a perderem o emprego e ainda acumularam tarefas domésticas

Antonia Cleide Alves, Carmen Silva, Eliana Sousa Silva, Ester Carro, Evaniza Rodrigues, Marília De Santis e Regina Madalozzo | 23 abr 2021_17h30
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A pandemia de Covid-19 traz impactos particularmente severos às mulheres de todo o planeta, em face dos múltiplos papéis que elas exercem na vida social. Um dos efeitos mais danosos tem sido verificado nos trabalhos remunerado e doméstico. Como um dos países com pior desempenho no combate à doença, o Brasil se insere nesse quadro de modo alarmante. Quando se olha para o mercado de trabalho nacional, constata-se que a participação das mulheres dentro dele caiu de 53,3% no terceiro trimestre de 2019 para 45,8% no mesmo período de 2020. Se forem considerados somente os empregos formais, ou seja, com carteira assinada, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) revela que 81% das vagas suprimidas de janeiro a setembro do ano passado eram ocupadas por pessoas do sexo feminino.

Fechando mais o foco, é possível identificar claramente um aumento das responsabilidades das mulheres no âmbito da vida doméstica. O acompanhamento muito de perto da vida escolar dos filhos, diante da suspensão das aulas presenciais, e a proliferação de tarefas em casa, por causa de uma maior permanência dos membros da família entre quatro paredes – para ficarmos só em dois exemplos –, colocaram nos ombros das mulheres um peso ainda maior do que aquele que elas costumavam carregar sozinhas antes da pandemia.

E­sse cenário adverso salta à vista na pesquisa realizada pelo Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper sobre as consequências da Covid-19 nos trabalhos remunerado e não remunerado (doméstico) de moradoras de três territórios socialmente vulneráveis localizados nas duas maiores cidades brasileiras. O estudo, de metodologia qualitativa, foi feito entre os meses de outubro e dezembro de 2020 e entrevistou 150 mulheres que residem no conjunto de dezesseis favelas da Maré, no Rio de Janeiro, e nas comunidades de Heliópolis e do Jardim Colombo (que faz parte do Complexo de Paraisópolis), ambas em São Paulo.

Do ponto de vista metodológico, priorizou-se a participação, como pesquisadoras, de mulheres que moram naquelas mesmas áreas. A ideia foi promover a identificação da entrevistada com sua entrevistadora, a fim de assegurar o estabelecimento da confiança que garantiria uma boa coleta de dados, feita, em sua esmagadora maioria, por meio de ligação telefônica, em respeito ao distanciamento social.

No plano do trabalho remunerado, formal ou informal, as três favelas espelharam com nitidez os números do Caged: as mulheres foram as primeiras a perder seus empregos com carteira assinada, enquanto os companheiros tinham, de início, redução de jornada e salário (muitos acabaram perdendo o emprego depois). Elas também continuaram em situação de fragilidade nos raros casos de retomada da “normalidade” profissional.

Com relação ao trabalho não remunerado – aquele, repita-se, levado a cabo dentro de casa –, a pesquisa atestou a ampliação das tarefas e das obrigações das mulheres, inclusive para as que têm emprego. Isso ficou claro em depoimentos como estes, aqui reproduzidos sem qualquer filtro de linguagem:

           “Eu queria que a divisão fosse mais justa no sentido de que, como eu passo mais tempo trabalhando fora, eu queria fazer menos trabalhos domésticos. Eu queria chegar em casa e que a casa tivesse arrumada. Sei lá, que não dependesse de mim para ter que limpar tudo, comida. Coisas desse tipo, já que tem outra pessoa dentro de casa.” (Moradora de uma das favelas da Maré, 42 anos);                   

               “Sim, queria colaboração, porque quatro pessoas para sujar e só uma para limpar é difícil, não é?” (Moradora de Heliópolis, 36 anos);

                     “[Eu queria] ter mais ajuda dentro de casa, porque a minha filha trabalha também, sai cedo e chega à noite e fica meio difícil, porque cuidar de casa, cuidar de criança é difícil, meio complicado.” (Moradora do Jardim Colombo, 63 anos)

                   

Esse excesso de atividades, logo transformado em pressão emocional, implicou que as mulheres tivessem cada vez menos tempo para si mesmas. Sim, “tempo”, esse bem escasso para todos na sociedade contemporânea, porém mais escasso ainda, hoje em dia, na vida feminina. De acordo com a edição de 2021 dos Indicadores Sociais das Mulheres, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), concluída a partir de levantamentos realizados em 2019 – ou seja, numa fase pré-pandemia –, as mulheres usavam, em média, 18,5 horas semanais para cuidados com a casa e familiares, enquanto os homens gastavam 10,4 horas para esse fim. É verdade que elas cumpriam jornadas de trabalho remunerado mais curtas do que as deles (35,8 contra 40,8 horas semanais). Entretanto, essa realidade, por si só, não justificaria a frequente desvalorização do trabalho feminino não remunerado diante do ofício remunerado dos homens. O trabalho doméstico – ligado, no imaginário social, a características puramente femininas, como uma atribuída vocação para cuidar do outro, algo que precisa ser desconstruído – e o trabalho remunerado continuaram sendo, no período atual, mais duro para as mulheres. Elas trabalham, em média, segundo a pesquisa, 54,3 horas semanais, e os homens, 51,2 horas por semana.

De volta a alguns depoimentos, mais uma vez em sua forma original:

        “É, porque, na verdade, a gente que é mãe, que cuida de casa, que é doméstica, além da gente cuidar da casa, da rotina diária que é manter a casa limpa, arrumada, comida, essas coisas, a gente ainda tem que cuidar de nós, porque se a gente não cuidar de nós, a gente não tem saúde, a gente fica maltratada, fica largada…” (Moradora de uma das favelas da Maré, 31 anos)

                 “Eu não consigo achar tempo. Tenho que catar o tempo para fazer alguma outra coisa. O que eu queria que mudasse era isto: que eu conseguisse ter tempo para fazer mais coisas.” (Moradora de Heliópolis, 40 anos);

                 “Gostaria de arrumar a casa e as pessoas manterem, lavar a louça e a pessoa colaborar, deixar tudo bonitinho e a pessoa valorizar aquilo. Mas parece que é um trabalho em vão, parece que você é uma empregada.” (Moradora do Jardim Colombo, 33 anos).

                    

As entrevistas da pesquisa mostraram também que a Covid-19 trouxe para as moradoras das três favelas estudadas a percepção de um sentimento de tristeza e de solidão indisfarçáveis. Isso só reforçou a importância de haver redes de apoio e escuta para elas.

Tome-se como exemplo o projeto Casa das Mulheres da Maré, desenvolvido pela ONG Redes da Maré, que durante todo o surto epidêmico do novo coronavírus vem oferecendo amparo emocional e acesso à justiça às moradoras da comunidade. Esse tipo de trabalho foi fundamental para garantir algum suporte às mulheres das favelas da Maré. A atenção à saúde mental é primordial sempre, contudo ela se tornou mais urgente durante o prolongado isolamento imposta pela pandemia – em especial para as mulheres.

O extraordinário papel das redes de apoio não se resumiu, todavia, ao aspecto psicológico. Foram elas, as redes, que asseguraram a entrega de cestas básicas para pessoas que, de uma hora para outra, ficaram sem seu sustento. A Redes da Maré levou a 18 mil famílias cestas de alimentos e kits de higiene pessoal e de limpeza. A instituição organizou a confecção de máscaras logo no início da pandemia, que estavam em falta até para quem podia pagar pelo produto. A União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS) atuou na mesma linha, arregimentando dezenas de costureiras para fazer máscaras – distribuindo, dessa maneira, renda e proteção.

Esse tipo de pacto de mobilização social foi recorrente também em outros contextos não abarcados pela pesquisa. Na União dos Movimentos de Moradia, de São Paulo, mulheres criaram grupos para ajudar as outras a obter o auxílio emergencial. Os apoios de grupos para o cuidado com crianças, como nos espaços compartilhados nas ocupações do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), que atua na capital paulista, é outra expressão da importância das redes femininas de apoio.

Embora sejam louváveis as ações comunitárias no enfrentamento das dificuldades trazidas pelo novo coronavírus às populações mais vulneráveis, é necessário que tais iniciativas ultrapassem os esforços da sociedade civil. O Estado precisa formular com urgência políticas públicas consistentes, integrando seus diversos setores para a articulação de uma rede de proteção que possa, de fato, atender às necessidades das famílias – em sua maioria dependentes do arrimo das mulheres.    

Apesar dos incontáveis infortúnios, um traço comum detectado entre as moradoras das três favelas pesquisadas foi a esperança – não por acaso um substantivo feminino. Não é razoável, no entanto, que o peso maior do impacto da Covid-19 continue recaindo sobre os territórios mais vulneráveis e, dentro deles, sobre as mulheres. Pandemia é, claro, substantivo feminino. Mas isso é uma “realidade de dicionário”, digamos assim. Na vida real, ela precisa ser um substantivo de todos os gêneros – e enfrentada igualmente pela totalidade dos agentes da vida social.

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Todas as autoras são professoras do Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper.

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