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    O TEMPO/FOLHAPRESS

anais da tragédia

Em um dia, as mortes de um ano e meio

Histórias dos moradores de Brumadinho que sobreviveram à mais letal catástrofe ocorrida em uma cidade brasileira desde 1967

Karla Monteiro | 31 jan 2019_23h53
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Poucas são as tragédias coletivas comparáveis à de Brumadinho na história do Brasil. Raras vezes tantos moradores de uma mesma localidade morreram no mesmo dia de uma mesma causa. A dimensão da catástrofe humana tem exemplos impensáveis: o bairro onde um em cada vinte vizinhos morreu ou desapareceu, o colégio no qual trinta alunos ficaram órfãos ou perderam familiares, a rua em que a cada três casas uma tem um morador faltando, a diretora escolar que foi a cinco velórios num dia.

Se os 248 desaparecidos após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho não forem encontrados com vida – algo mais provável a cada dia –, a tragédia terá sido a mais letal em um município brasileiro no último meio século. Somando-se os desaparecidos aos 115 corpos resgatados até agora, as vítimas fatais podem chegar a 363, ou seja, um de cada 109 brumadinhenses. Se assim for, a cidade mineira terá perdido em poucos minutos da sexta-feira 25 de janeiro 66% mais moradores do que todas as pessoas que viviam e morreram lá em um ano inteiro. O número de vítimas equivale ao total de mortes de residentes no município entre julho de 2016 e dezembro de 2017.

Proporcionalmente à população, a tragédia de Brumadinho terá sido 29 vezes mais mortal do que o desastre semelhante ocorrido em Mariana (MG) em 2015, dez vezes mais do que o incêndio da boate Kiss de Santa Maria (RS) em 2013 e quase quatro vezes mais do que os deslizamentos em Nova Friburgo (RJ) em 2011. Naquele 8 de janeiro morreram mais pessoas na cidade da serra fluminense – 429 – do que desta vez na cidade mineira, mas a taxa por 100 mil habitantes foi um quarto da que pode vir a ser registrada pelo rompimento da barragem na mina do Córrego do Feijão, porque Nova Friburgo é uma cidade cinco vezes mais populosa do que Brumadinho.

No passado recente, a única tragédia que dizimou mais moradores de uma única localidade em um evento cataclísmico foi o deslizamento de um morro que soterrou grande parte de Caraguatatuba, em 1967. À época, pouco mais de 11 mil pessoas viviam na cidade do litoral norte de São Paulo. Após dias de chuva forte e ininterrupta, no finzinho de verão, as águas de março arrastaram árvores, estradas e casas centenas de metros morro abaixo, soterrando os bairros das encostas e deixando o centro de Caraguatatuba sob lama. Foram 436 mortos, ou um de cada 26 moradores. Os jornais batizaram o ocorrido de hecatombe. Em comparação a Brumadinho, a tragédia no litoral paulista impactou quatro vezes mais a taxa de letalidade por 100 mil habitantes. Para os sobreviventes mineiros, porém, a tristeza é única, incomparável.



Quando Tânia Campos Martins, diretora da escola Semear, um dos colégios privados de Brumadinho, chegou para trabalhar nesta terça-feira, 29 de janeiro, quatro dias depois do rompimento da barragem, defrontou-se com uma dura missão: contar para um aluno que ela viu crescer, um garoto de 7 anos, que o pai morrera soterrado. O corpo acabara de ser identificado, e a mãe da criança pedia socorro – não conseguia contar ao filho, pediu que a diretora o fizesse.

A educadora teve de incluir entre suas atividades na escola o cuidado com possíveis órfãos entre os alunos. Logo depois do desastre, ela fez um cruzamento da lista de desaparecidos da Vale com as fichas dos estudantes – contou trinta alunos com familiares diretos mortos ou não encontrados. Oito crianças podem ter perdido o pai, duas, a mãe e outras vinte, familiares diretos. “Não existe ninguém aqui na cidade que não tenha sofrido uma perda, de parente ou amigo”, disse a diretora. Ela mostrou o celular, com a foto de uma jovem loura, cabelos longos e olhos claros. “Nossa ex-aluna. Nesses dias o que mais chega são imagens de alguém próximo que morreu na tragédia.”

Em outra escola particular de Brumadinho, frequentada por alunos de 3 a 17 anos, a tragédia teve efeito semelhante. Às 10 horas da manhã da quarta-feira, 30 de janeiro, Neiva Fernandes Silveira Passos, diretora do Centro Educacional Maria Madalena Friche Passos, frequentado pelos filhos da classe média alta da cidade, chegou ao prédio da Câmara Municipal. Mais um velório, desta vez da “doutora Sirlei”, como era conhecida a secretária de Desenvolvimento Social do município. No dia anterior, Neiva Passos estivera em cinco velórios – têm sido cerimônias breves, com não mais de 15 minutos de duração. Após cumprimentar a família, em meio a multidão que se espremia na Câmara, ela tirou da bolsa uma folha de papel e mostrou uma planilha de Excel, em que relacionou os nomes dos alunos do colégio que perderam familiares diretos. São 27 alunos, entre pais, avós e tios. Destes, três perderam a mãe, e cinco, o pai.

“Passamos a noite de sexta em vigília, lembrando das pessoas que poderiam estar lá. Uma dizia: o pai de fulano. A outra: a mãe de ciclano”, relembrou. “Só eu conheço umas 150 pessoas naquela lista. Brumadinho é uma cidade muito pequena, não tem como não conhecer. Na minha família, perdemos o marido da minha sobrinha, o Davyson Chistian, que era funcionário da Vale”.


Nos dias seguintes à tragédia, predominava o silêncio no Centro da cidade de 39 mil habitantes, com suas pequenas lojas de portas fechadas e pouca gente nas ruas. Abertos, apenas bancos, mercados, farmácias e o posto de gasolina, além de alguns restaurantes. “Estamos vivendo a angústia da espera, a incerteza, o medo do futuro, tudo ao mesmo tempo. Quem não tem um parente desaparecido, tem um amigo próximo. A cada dia que passa piora, porque diminui a esperança”, comentou Nery Braga, chefe de gabinete do prefeito Avimar de Melo Barcelos. No fim da tarde de quarta-feira, Braga era um dos poucos dentro do prédio da prefeitura. “Nasci em Brumadinho e vivi aqui a vida toda. É uma cidade animada, alegre. Agora este silêncio de morte”, disse. Inhotim, o museu a céu aberto que colocou Brumadinho no mapa do circuito internacional das artes, está fechado, sem data de reabertura. De seus cerca de 600 funcionários, 41 perderam parentes próximos na tragédia.

Por toda a cidade, as histórias de sobreviventes e vítimas se entrelaçam. Moradora da rua 1, do bairro Monte Cristo, a 15 minutos do Centro de Brumadinho, a pedagoga Aline Xavier pega o celular e começa a deslizar fotografias. O primeiro retrato é de Gustavo Andrier Xavier, o irmão caçula, de 29 anos. Em seguida, fotos de três primos: Luciano, Letícia, André. Depois, a mulher de outro primo. Por último, uma selfie do marido de uma amiga. Apesar do calor sem brisa e sem trégua, está fresco na varanda da casa de Aline, uma chácara cercada de mangueiras. Todos os seis parentes e conhecidos que passavam pela tela do celular, conta ela, estavam desaparecidos. Na rua 1, uma vizinhança marcada por três sobrenomes que se misturam, Xavier, Magalhães e Almeida, sete casas estavam de luto.

“Ah, impossível ter esperanças”, disse Aline Xavier, ladeada pelo pai, aposentado da extinta mineradora Ferteco. Sua mãe, Lecilda Xavier, complementa: “É um descaso tão grande. Não imaginam o sofrimento que é querer enterrar um filho e não poder. Minha filha fica atrás de notícia, corre para lá, corre para cá. Ninguém vem aqui falar nada. Eu vou dizer para você que o Gustavo está morto? Não, não vou. Sinto culpa só de pensar que meu filho está morto sem ter visto o corpo.”

A partir do minuto em que soube que a barragem do Feijão rompera, a família começara uma busca frenética pelos parentes desaparecidos. Primeiro, no telefone. “Eu liguei, liguei, liguei… Meu irmão tinha visualizado o WhatsApp às 12h18”, relembrou Aline Xavier. Sem resposta, pulara no carro e dirigira em disparada até o Centro da cidade. “Meus pais moram lá, na minha cabeça ia arrasar tudo. Deixei meus filhos, um bebê e o outro de 9 anos, sozinhos.” Ao encontrar os pais, decidiram os três retornar ao Monte Cristo e improvisar um grupo de resgate. Às 17 horas do dia do rompimento da barragem, dois carros cheios de parentes partiram da rua 1. “O estacionamento da mina, acima do refeitório, estava intacto, e vi o carro do meu irmão lá, também intacto.” Eles passaram as seis horas seguintes buscando na lama e nas matas. “Chegamos até a casa da doutora Sirlei, que morava na antiga vila da Ferteco. Tudo destruído. A gente andou sem rumo, no mato, gritando os nomes. Já era uma meia-noite quando vimos que era inútil continuar”, contou a pedagoga.

Na terça-feira seguinte à tragédia, uma romaria de amigos e parentes passavam pela varanda dos Xavier. A rua 1 é de terra, sombreada por árvores frondosas. Na casa da esquerda, vive a avó de Aline e do neto desaparecido, Gustavo. “O meu neto ia casar com a Gabriela, que perdeu o noivo e a tia. Está vendo a construção ali? Era a casa que ele estava construindo para os dois”, comentou Dirce do Carmo Pinto, de 77 anos, prostrada na mesa da cozinha. Pelo quintal, entre muitos netos, corria uma menina de 4 anos, de cabelos louros encaracolados, vestida com uma camiseta do Atlético Mineiro – ela ainda não sabia, mas perdera a mãe. “Minha nora, Lenilda, era nutricionista da Vale. Deixou duas meninas, essa e uma outra mais mocinha”, lamentou Dirce Pinto.

Na hora do almoço, a pedagoga Aline Xavier recebeu a visita da amiga cujo marido está desaparecido. Ela passara a noite no carro, estacionado na porta da Estação Conhecimento, um centro cultural onde a Vale montou seu local de apoio a familiares de vítimas. Pela manhã, sairia a lista atualizada dos corpos identificados. “Eu não queria ficar em casa onde tudo me lembrava ele”, contou a amiga, Marina Tainá. “Foi a única noite que eu dormi desde sexta-feira.”

À amiga, Marina relembrou a última mensagem de WhatsApp que recebera do noivo, às 12h23, cerca de 20 minutos antes do horário em que a barragem rompeu. Dizia: “Amor, deixa o meu saco de boxe na minha casa.” Às 12h45, ela ligou de volta, estava na estrada, voltando da cidade vizinha Sarzedo, onde fora levar os papéis para a compra do primeiro apartamento do casal. “Além do meu noivo, estou procurando dez pessoas, entre amigos e parentes.”


Desde a tragédia, o Córrego do Feijão, distrito mais próximo da barragem da Vale, não dorme. De dia, o barulho é o dos helicópteros, que pousam e levantam voo no campo de futebol em frente à igreja de Nossa Senhora das Dores, transformado em heliponto. E à noite o som é o dos geradores, no terreno ao lado da capela, onde o Instituto Médico Legal montou uma tenda para a identificar os corpos resgatados.

Trepado na mureta de pedra do pequeno cemitério, de pouco mais de trinta túmulos, marcados por cruzes ou sepulturas modestas, Michel Fernandes Guimarães parecia estar ali só observando o movimento. Na frente do campo de futebol, aquele muro oferecia uma vista ampla para a chegada e saída dos helicópteros. “Meu irmão, enterrado ontem, o primeiro do Feijão, Reinaldo Fernando Guimarães”, relatou Michel, apontando para uma sepultura recém-fechada, ao começar a contar a sua história. O irmão trabalhava na pousada Fazenda Nova Estância – uma das mais bem cotadas da região, segundo o Tripadvisor – completamente destruída pela lama. “Estou aqui com ele, o que mais eu posso fazer?”

Caso sejam confirmadas as vinte mortes de moradores do Córrego do Feijão – de um total de 415 pessoas que vivem no distrito, segundo o Censo de 2010 –, o cemitério Recanto da Paz terá que ser estendido para o terreno vizinho. Até agora, cinco novas covas foram abertas. Também moradora do Córrego do Feijão, Leidiane Paula avistou Michel trepado no muro e se aproximou. Queria saber como ele conseguira enterrar o irmão dentro da área antiga do cemitério. Ela perdera a mãe, que também trabalhava na pousada, era uma das cozinheiras. “Eu sei que ela morreu, não falo mais esse negócio de desaparecida”, disse Leidiane. “Estou lutando pra que ela fique, como ela sempre quis, na cova ao lado da minha avó. Não vou colocar minha mãe longe, lá do outro lado da mureta, onde foram abertas essas covas novas, de jeito nenhum.”

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PS: Esta reportagem foi editada às 19h13 de sexta-feira, 1 de fevereiro, para atualizar o número de mortos e desaparecidos.

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