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Embalagens vazias – bravura e discurso

Dois belos volumes estão sendo entregues hoje nos cinemas. São embrulhos atraentes. Abertos com cuidado, sem rasgar papel e fita, haverá uma caixa decorada com padrão geométrico de cores sóbrias. Levantando a tampa, papel de seda branco, preso com uma etiqueta dourada, estará em volta de… nada. Olhando bem, será possível ler, escrito à mão, em letra miúda, dois nomes: “Bravura indômita” e “O discurso do rei”. Dirigidos pelos irmãos Coen e por Tom Hooper, são dois filmes bem embalados, mas vazios.

| 11 fev 2011_10h20
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Dois belos volumes estão sendo entregues hoje nos cinemas. São embrulhos atraentes. Abertos com cuidado, sem rasgar papel e fita, haverá uma caixa decorada com padrão geométrico de cores sóbrias. Levantando a tampa, papel de seda branco, preso com uma etiqueta dourada, estará em volta de… nada. Olhando bem, será possível ler, escrito à mão, em letra miúda, dois nomes: “Bravura indômita” e “O discurso do rei”. Dirigidos pelos irmãos Coen e por Tom Hooper, são dois filmes bem embalados, mas vazios.

O romance de Charles Portis, publicado em 1968, chegou a ser considerado uma obra-prima e foi lido nas escolas, na década de 1970, ao lado de Walt Whitman, Nathaniel Hawthorne e Edgar Allen Poe. Mas, segundo a escritora Donna Tartt, teria “saído de circuito por causa do filme do John Wayne que não faz justiça ao livro”.

O primeiro desserviço a Charles Portis teria sido feito, portanto, pelo filme dirigido por Henry Hathaway, a partir do roteiro da veterana Marguerite Roberts, de volta à ativa depois de ter estado na lista negra durante nove anos por se recusar a responder ao Comitê de Atividades Anti-americanas do Congresso (HUAC). No mesmo ano de 1969 em que “Butch Cassidy” (“Butch Cassidy and the Sundance Kid”), de George Roy Hill, e “Meu ódio será tua herança” (“The Wild Bunch”), de Sam Peckinpah, renovaram o western, o que a primeira versão de “Bravura indômita” fez foi amontoar clichês, adocicando o estilo seco da pedagogia da maldade narrada por Portis.

Passados quarenta anos, Ethan e Joel Coen não só voltam a desmerecer o romance, como também a obra deles mesmos que, desde “Fargo” (1996), ao menos, destaca-se como das mais interessantes do cinema americano.

Tendo Steven Spielberg entre os produtores, não é de admirar ter sido dada ênfase à redenção do xerife assassino, ladrão, bêbado e semi-analfabeto, de bravura indômita – o caolho Rooster Cogburn criado por Portis. A chave sentimental do sucesso de Spielberg é conhecida – por pior que o personagem seja sempre há uma face boa a ser resgatada. A bilheteria agradece, e tendo custado 38 milhões de dólares, “Bravura indômita” já rendeu cerca de 160 milhões.

Mesmo sendo mais fiel ao livro do que a primeira versão, o novo “Bravura indômita” não passa de uma novela cor-de-rosa em que os dois personagens principais – Rooster Gogburn (Jeff Bridges) e La Boeuf (Matt Damon) – parecem fantasiados para um baile de Carnaval.

Até o habitual sarcasmo e ironia dos irmãos Coen foram postos de lado. Ao contrário da epígrafe de origem duvidosa de “O homem sério” (2009), filme anterior da dupla (leia aqui o post "Um homem sério" – sarcasmo e ironia), a de “Bravura indômita”, inexistente no livro de Portis, é autêntica: “Os ímpios fogem sem que haja ninguém a perseguí-los; mas os justos são ousados como um leão.”

A atenção dada a “O discurso do rei”, por sua vez, só se explica pelo fascínio que os americanos preservam por tudo que diga respeito à família real britânica. Trata-se, na verdade, de mais uma história de superação em que todas as atenções se concentram na elocução, sem que seja dada qualquer atenção ao conteúdo dos discursos, nem sejam mencionados seus autores.

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No livro homônimo, escrito por Mark Logue, neto do terapeuta de voz Lionel Logue, que cura o rei da gagueira, e pelo jornalista Peter Conradi, há ao menos referências às revisões feitas nos textos por Logue para livrar o rei de armadilhas verbais. Mas também não se entra no mérito das ideias contidas nos discursos.

Embora o produtor Iain Canning e o diretor Tom Hooper tenham, segundo Mark Logue, manifestado o desejo que o filme fosse “historicamente o mais preciso possível”, o resultado contradiz esse propósito, atendendo os requisitos dramáticos usuais do cinema dominante.

Na verdade, depois de 82 consultas, entre outubro de 1926 e dezembro de 1927, o duque de York, futuro rei Jorge VI, era capaz de discursar sem as hesitações que tanto o embaraçavam. Nos sete primeiros meses, o tratamento teve um grande efeito, a ponto do duque ter escrito a Logue, em janeiro de 1927, durante viagem à Austrália, dizendo não ter “nunca sido obrigado a parar por causa de alguma palavra”.

No filme, para sustentar o suspense ao longo da narrativa, que vai de 1926 a 1939, a cura é adiada de uma década para coincidir com a coroação do duque como rei Jorge VI.

Mais importante que essa usual liberdade do cinema de entretenimento com os fatos, porém, é “O discurso do rei” não fazer referência à irrelevância política de Jorge VI num dos períodos mais dramáticos da história mundial, e ao declínio e desmembramento do império britânico. Além do rei, o filme também é patético.