Em Cannes, o diretor Rithy Panh disse que a viagem retratada no filme suscita questões: "Qual é o trabalho do jornalismo? O que é manipulação? O que é ideologia? O que é um crime contra a humanidade? O que é o silêncio? O que é informação? O que é visível? O que não está visível? Finalmente, onde está a verdade?” Crédito: Divulgação
Encontro com o ditador no Brasil
Pol Pot, assassino impune no Camboja
O ano começou bem no Brasil com o lançamento, em 2 de janeiro, de Encontro com o ditador (título original: Rendez-vous avec Pol Pot), exibido, em maio de 2024, na mostra Cannes Première e depois, em outubro, no Festival do Rio.
Duvidoso, porém, é o filme dirigido pelo cambojano Rithy Panh ser apreciado como merece entre nós, caso o espectador desconheça o genocídio que houve no Camboja na década de 1970. Liderado por Pol Pot (1925-98), o braço armado do Partido Comunista local, conhecido como Khmer Vermelho, tomou o poder em abril de 1975, e estima-se que entre 1976 e 1978 de 1,5 a 3 milhões de pessoas tenham morrido. Quem não souber dessa tragédia humanitária que paira sobre Encontro com o ditador poderá gostar do filme per se?
Alguns líderes do Khmer Vermelho foram julgados e condenados à prisão perpétua, mas Pol Pot, ex-primeiro-ministro chamado de Irmão Número Um, responsável final pelo extermínio, não chegou a ser devidamente julgado. Após o regime de terror que liderou ser deposto pelos vietnamitas, viveu quase vinte anos, parte deles em prisão domiciliar, próximo à fronteira da Tailândia, até morrer em 1998.
No ano seguinte, em Nova York, a jornalista Elizabeth Becker perguntou a uma plateia de diplomatas e funcionários das Nações Unidas: “Por que Pol Pot escapou impune tendo cometido assassinatos?” Autora de When the War Was Over: Cambodia and the Khmer Rouge Revolution, publicado em 1986, sem edição brasileira e reeditado em 1998 com um novo capítulo, Becker disse ainda:
Os cambojanos não sabem quem são e desconhecem sua própria história porque não foi permitido que ela fosse escrita. Só por isso, creio ser importante haver um julgamento e percebo que isso está sendo esquecido outra vez. Não há determinação quanto a haver um julgamento. Eu argumentaria que o povo cambojano merece uma história real e a única história real seria esse julgamento, mas não acho que isso vá acontecer a menos que as pessoas aqui presentes façam algo a respeito. Isso não vai acontecer, vocês podem ver a questão desaparecendo. Não há resolução. É muito mais fácil deixar que seja esquecida…. Acho que é terapêutico dizer quem são os responsáveis. Acho que isso é cicatrizante. É muito, muito, muito difícil, quando ninguém é responsabilizado por algo que arruinou seu país e não vejo nada antiterapêutico em responsabilizar as pessoas.
Encontro com o ditador é baseado, em parte, no livro de Becker, e as palavras dela indicam um elo imprevisto do filme com o Brasil, guardadas as devidas diferenças e proporções – afinal, torturadores e assassinos a serviço da ditadura civil-militar de 1964 não permaneceram impunes? E quem arrisca prever o desfecho das investigações sobre a tentativa de golpe em dezembro de 2022 e janeiro de 2023, na qual estava previsto assassinar um ministro do Supremo Tribunal Federal, o vice-presidente e o presidente da República? Haverá um julgamento correspondente à gravidade dos fatos? Mesmo sem invocar o processo colonial feito às custas das nações indígenas e da mão de obra escrava, não nos faltam violências cometidas e encobertas no decorrer da história.
Se, à primeira vista, Encontro com o ditador, situado em 1978, pode parecer defasado meio século depois, o alerta de Becker demonstra que, pelo contrário, o propósito de Panh é mais do que justificado e necessário, pois o que ele pretende fazer ao recriar e relatar o que foi chamado de “uma ferida que não cicatriza” é suprir o desconhecimento da história de seu país, sem o que os cambojanos não podem constituir uma nação unificada.
Ao apresentar Encontro com o ditador no Festival de Cannes, em maio de 2024, Panh deixou claro seu objetivo, em entrevista à Unifrance. Embora desprovido de didatismo, ele não desconsidera a tarefa preliminar de suprir o desconhecimento dos cambojanos sobre si mesmos, mas vai muito além: o filme “é uma viagem desastrada ao Camboja. Ao longo desse percurso surgem uma série de questões: qual é o trabalho do jornalismo? O que é manipulação? O que é ideologia? O que é um crime contra a humanidade? O que é o silêncio? O que é informação? O que é visível? O que não está visível? Finalmente, onde está a verdade?”
A essas questões se acrescenta ainda o fato de o filme, nas palavras de Panh, “ser a minha própria história”. “É a história que eu vivi e, afinal, é um eco de hoje, do que acontece hoje” – a família do diretor, além de inúmeras outras, foi expulsa pelo Khmer Vermelho de Phnom Penh, capital do Camboja, em 1975. Seus pais, irmãos e parentes foram vítimas fatais da sobrecarga de trabalho e da desnutrição que lhes foi imposta. Ele sobreviveu ao escapar para a Tailândia, em 1979.
Em Encontro com o ditador, Panh lança mão de múltiplos recursos de linguagem para contar a funesta viagem ao Camboja, feita para entrevistar Pol Pot, em 1978, por Lise Delbo (Irène Jacob), jornalista; Paul Thomas (Cyril Gueï), repórter fotográfico; e Alain Cariou (Grégoire Colin), intelectual. Surpreende e chega a ser desconcertante a liberdade com que Panh recorre, além de encenação ficcional e de imagens de arquivo, a maquetes e figuras de barro. Fica claro, porém, que as miniaturas impedem, por um lado, o envolvimento completo do espectador pela inevitável ilusão de realismo da imagem cinematográfica e, de outro, evitam tornar a violência um espetáculo.
O uso de estatuetas, Panh disse ao portal Cinema Express, “ajudou a criar o distanciamento correto do assunto. A extrema violência, os estupros e a brutalidade da situação são muito difíceis de ignorar. Então, como ter a distância crucial e certa reproduzida na tela? Mesmo depois de tantos anos fazendo filmes, ainda não sou capaz de retratar a violência. Não acho que posso mostrar um ator matando outro. Esses dispositivos, como as estatuetas, ajudam a projetar a violência real sem que eu precise recriá-la na tela.”
“Sempre gostei de fazer filmes”, Panh declarou ainda, “mas o que mais gosto é desse tipo de liberdade que aprendi com cineastas mais antigos, como Dziga Vertov e Chris Marker. É muito importante para mim ter liberdade para criar minha própria coisa dentro da forma clássica da arte e do artesanato. Às vezes, a ficção não pode ser bem filmada. Tudo que você faz parece menos forte do que o que você imaginou para o filme. Então, tento novas formas de me expressar, experimento. Aí, as possibilidades cinematográficas parecem estimulantes para mim. E acho que, às vezes, funcionam bem no filme.”
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