O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates (terceiro da esquerda pra direita), prestigiando uma exposição da Petrobras no Congresso Nacional, em Brasília Foto: Nelson Lima Mendes/ Agência Petrobras
A encruzilhada brasileira na COP28
Chefes de Estado se reunirão em Dubai para discutir um mundo livre de petróleo. O Brasil, enquanto isso, não sabe que futuro quer para a Petrobras
No coração do deserto, a Arábia Saudita está investindo meio trilhão de dólares na construção da cidade de Neom. O projeto inclui a criação de um porto com tecnologia de ponta, um resort de esqui, ilhas tropicais ideais para mergulho e uma versão anabolizada do famoso High Line, parque suspenso de Nova York, estendendo-se por 170 km. A maior extravagância dos sauditas, no entanto, é a promessa de uma vida sem carros e livre de emissões.
Neom é um paradoxo. Oferece a transição para um mundo sem carbono, mas ninguém sabe como a Arábia Saudita será capaz de se sustentar sem combustíveis fósseis. Turismo? Serviços financeiros? Logística? Hoje, essas atividades econômicas são dependentes da opulenta renda do petróleo.
Em 2016, Mohammed bin Salman, herdeiro saudita, lançou o ambicioso plano “Visão 2030”, um pacote de medidas para reduzir a dependência petrolífera do país. Ele prevê que, em sete anos, 50% da energia consumida pelos sauditas virá de fontes renováveis, e até o meio do século o país não fará mais emissões de gases do efeito estufa.
Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), para se manter o aquecimento global no limite de 1,5 Cº até o fim do século, seria preciso que nenhum novo poço de petróleo fosse aberto a partir de 2021. Um estudo científico publicado no ano passado é mais restritivo: diz que, para mantermos o aquecimento dentro desse limite, é preciso não extrair 40% das reservas de óleo e gás já desenvolvidas.
Todos os países com grandes jazidas de gás e petróleo estão, neste momento, tentando conter a ansiedade. Poucos são capazes de investir tanto dinheiro em projetos de sobrevivência quanto os sauditas, e muitos querem surfar as últimas ondas de exploração fóssil, remando contra a ciência climática e a contestação crescente na sociedade. Mudar de matriz energética não é simples. E a transição para baixo carbono vai além disso. É uma mudança de modelos de negócio, de mentalidade e de atores.
Na última década, o custo da energia solar e das baterias de íon-lítio, essenciais para veículos elétricos, caiu 85%. O da energia eólica, 55%. Em 2020, um em cada 25 carros vendidos no mundo era elétrico. Três anos depois, já são um em cada cinco. As mudanças são reais. Um dos principais estímulos para isso foi o Acordo de Paris, assinado por 195 países em 2015. Mais do que palavras no papel, o acordo mudou expectativas e deu largada a duas corridas. Uma é a de quem será o vencedor no paradigma da descarbonização, liderando a corrida pela mineração de lítio, cobalto e outros metais críticos para as novas tecnologias. Na outra corrida, o que está em disputa é quem será o último homem forte do petróleo e gás a ficar de pé.
A IEA diz que a economia mundial está mudando de “um sistema energético intensivo em combustível para um sistema energético intensivo em minerais”, o que irá “superestimular a demanda” por esses recursos. A COP 28, marcada para daqui a duas semanas em Dubai, será o encontro de todo o mundo com as dores e as delícias desse estado de transição. Pavilhões de diferentes países mostrarão os esforços de construir “Neoms” e acelerar a adoção de tecnologias promissoras, enquanto chefes de Estado farão uma coreografia ensaiada, comprometendo-se a triplicar a energia renovável no mundo até 2030.
Já nas salas de negociações, diplomatas terão de achar um jeito de corrigir os rumos da implementação do Acordo de Paris através do chamado “Balanço Global”. Não há como resolver a crise climática apenas aumentando investimentos nas energias de baixo carbono. A resposta passará, inevitavelmente, por enfrentar o poder e a dependência dos combustíveis fósseis, principal causa das perdas e dos danos causados pela mudança do clima. Ainda não sabemos como o Brasil vai se posicionar nesse debate.
A encruzilhada brasileira na COP 28 é palpável. Em coletiva de imprensa no dia 8 de novembro, o embaixador André Corrêa do Lago, Secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, disse que o Brasil buscará ser o “paladino do 1,5 Cº” nas negociações. Isso significa que o Itamaraty pretende defender com unhas e dentes que não se ultrapasse o limite de emissões recomendado pela ciência como o mais seguro. Isso implica cortar 45% das emissões de todo o mundo até 2030 e 100% até 2050. Essa política externa se alinha com a perspectiva de bons resultados que o Brasil sonha alcançar até o fim desta década, contando sobretudo com uma radical redução do desmatamento na Amazônia e regulação do mercado de carbono.
Por outro lado, basta olhar as notícias na imprensa e checar as agendas de governo para concluir que há, no país, grupos interessados em participar das duas corridas – a da descarbonização e a da exploração de petróleo até a última gota. Ambos os grupos, embora antagônicos, estarão representados dentre os mais de 1.500 integrantes da delegação brasileira em Dubai.
A Agência Nacional do Petróleo (ANP) celebra o fato de que o Brasil pode se tornar o quarto maior produtor de petróleo do mundo até 2030. Como isso acontece, porém, no momento em que a janela para a exploração fóssil está se fechando, a delegação brasileira não terá como fugir de questionamentos. Até que ponto o Brasil está preparado e determinado a alinhar suas políticas com as recomendações da IEA para o cenário de 1,5 Cº de aquecimento?
Desde que o petróleo da Foz do Amazonas surgiu no debate público, no começo do ano, essa contradição ficou patente. Explorar ou descarbonizar? A possível renda do petróleo alimenta, de um lado, a imaginação de políticos e empresários que aspiram ver a paisagem do Brasil transformada em uma imagem reminiscente de Neom. Essa ambição, envolta na promessa de desenvolvimento regional, faz lembrar histórias conhecidas de prosperidade efêmera impulsionada por recursos naturais.
Por outro lado, o passado recente mostra que, apesar da vasta riqueza petrolífera, a exploração do pré-sal nas últimas duas décadas não resultou em avanços significativos em educação, produtividade ou transição de baixo carbono para todos nós. Os combustíveis fósseis hoje representam 52% da energia do Brasil (incluindo combustíveis para transporte).
É preciso achar um caminho viável entre o ambientalismo ingênuo e o desenvolvimentismo irresponsável. A solução passa pela transição planejada da indústria do petróleo. Explorar o pré-sal nesta década é inevitável. A questão é se o Brasil deve manter o apetite, abrindo novas fronteiras de exploração, ou se planeja uma gradual transformação dessa indústria.
Como o historiador Luiz Antônio Simas ensina, a encruzilhada é algo positivo, porque simboliza a habilidade de descobrir alternativas. No contexto da política climática, o problema do Brasil não é estar em uma encruzilhada – é o fato de que continuamos a buscar novos caminhos no petróleo, mesmo com os evidentes sinais de que a era dos combustíveis fósseis está chegando ao fim.
Sentado na desconfortável cadeira de palestrante do Brazil Climate Summit, evento realizado dois meses atrás na universidade de Columbia, em Nova York, Helder Barbalho, governador do Pará, provocou a plateia: “Se a Noruega, um grande produtor de petróleo, financia o Fundo Amazônia, por que a Petrobras, gigante petrolífera brasileira, não lidera o movimento de preservação da Amazônia?” O público, dividido entre aplausos e reações de perplexidade, escutava atentamente. O que Barbalho propunha era que a Petrobras, beneficiária dos altos preços do combustível custeados pela sociedade brasileira (como ele próprio frisou), investisse parte de seus lucros na transformação e financiamento de uma nova economia da Amazônia.
Sua sugestão ressoou, para alguns, como uma licença estendida para o setor explorar novas fronteiras. Abrir as portas do Fundo Amazônia para receber recursos da futura exploração de áreas como a Foz do Amazonas? Os benefícios à região seriam só uma modesta contrapartida – isso se a empresa conseguisse se manter competitiva num mundo em que a demanda por combustíveis fósseis é cada vez menor.
Para outros, e talvez inadvertidamente, Helder escancarou uma oportunidade: considerando os lucros astronômicos gerados nos últimos anos pela indústria de petróleo e gás – mais de 4 trilhões de dólares, desde o início da guerra da Ucrânia, que fez o preço do barril disparar –, o momento para fazer com que o petróleo financie a transição para zero emissões é agora, e não no futuro indefinido.
A história do Fundo Amazônia é ilustrativa. Criado em 2008, foi o primeiro fundo ambiental na história a mobilizar recursos na casa dos bilhões de reais. Os recursos alimentaram projetos de desenvolvimento sustentável na região. Ele mobilizou 1,2 bilhão de dólares da Noruega (advindos principalmente dos ganhos com a exploração de petróleo no mar do Norte), quase 90 milhões de euros da Alemanha e 17 milhões de reais da Petrobras na década passada. A ideia de financiar projetos socioambientais com recursos advindos do petróleo (explorado aqui ou além-mar) não é, portanto, uma novidade.
No entanto, mesmo que o petróleo injete bilhões de reais na bioeconomia brasileira – o que em si, é uma boa ideia –, isso não garantirá uma transição suave. É preciso investir capital diretamente em substitutos para os combustíveis de altas emissões, de modo que a nova economia ganhe fôlego inclusive para sustentar investimentos públicos. E isso requer um esforço sistêmico.
Não é só no Brasil que se discute usar dinheiro do petróleo para financiar a transição para zero carbono. No Canadá, por exemplo, as províncias que dependem do gás encampam essa mesma visão. Nos Estados Unidos, o financiamento polpudo às tecnologias de baixo carbono está convivendo, até aqui, com a autorização de exploração em áreas sensíveis do Alasca e com investimentos em portos de gás fóssil.
Alguns especialistas argumentam que a ideia de usar a indústria de petróleo para financiar a transição energética envelheceu, já que as fontes renováveis se tornaram competitivas nos últimos anos e estão ganhando espaço com ou sem apoio financeiro do petróleo. Pode-se argumentar também que essa política de financiamento, se prorrogada de forma indefinida, servirá apenas de pretexto para a manutenção dos investimentos em petróleo e gás.
Mas, se o horizonte for hoje e não depois de amanhã, a ideia pode se materializar.
Em 2022, as cinco maiores empresas integradas do setor privado de petróleo e gás – Chevron, ExxonMobil, Shell, BP e Total Energies – alcançaram um lucro anual combinado de 195 bilhões de dólares. Foi o maior da história, um aumento de 120% em relação ao ano anterior. Se colocarmos as empresas públicas no pacote, o lucro chegou a 2 trilhões. A Petrobras, que mantém 99,5% de seus investimentos em combustíveis fósseis, obteve 40 bilhões de lucro extraordinário em 2022.
Esse faturamento recorde abre uma oportunidade única para que os países produtores de petróleo e gás diversifiquem suas economias e se preparem para o futuro. Seria uma chance para que as grandes petroleiras liderassem o investimento em fontes de energia limpa das quais o mundo dependerá.
No entanto, empresas que até o ano passado eram elogiadas por seus planos de transição retrocederam em compromissos e investimentos. Os investimentos em energia limpa representaram, em média, apenas 5% do total de despesas declaradas pelas companhias de petróleo e gás no ano passado.
O que se vê é um crescente abismo entre os planos de produção de petróleo e gás para as próximas décadas e as metas de redução de emissões estabelecidas pelo Acordo de Paris. No agregado, os governos teimam em dobrar a quantidade de combustíveis fósseis até 2030, o que é incompatível com o limite imposto para manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C.
A proposta radical do ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown para a COP28 é um aperitivo das discussões que estão por vir. Brown sugere um imposto global sobre os lucros extraordinários dos maiores produtores de petróleo para financiar iniciativas climáticas. Embora seja improvável que uma proposta como essa saia do papel, ela reflete uma demanda social, vocalizada sobretudo pelos jovens: a necessidade de mudar radicalmente a indústria petrolífera. No evento em Dubai, aqueles que protestarem contra a transição planejada dos combustíveis fósseis poderão ser vistos como responsáveis pela crise climática. Países que investem mais no petróleo podem ser pressionados, por via diplomática, a contribuir financeiramente para o fundo de perdas e danos, criado para compensar os prejuízos sofridos pelos países mais pobres, um mecanismo que está em processo de implementação.
A COP é uma oportunidade para sinalizar essa transformação sistêmica e estabelecer cronogramas claros para a eliminação gradual dos combustíveis fósseis. É uma tarefa extremamente difícil – nunca foi feita. O Brasil, ator sofisticado da diplomacia climática, pode fazer uma grande diferença se jogar a favor da transição rápida, completa, planejada e financiada para zero emissões. Antes, contudo, será preciso combinar com os russos – e os árabes.
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