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    Ilustração: Carvall

questões de saúde

Entre a contaminação e o desabastecimento

Laboratório descobre lotes contaminados de medicamento para epilepsia, retira produto do mercado e deixa famílias atormentadas

Lara Machado | 25 jul 2023_14h00
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Na manhã de 14 de julho de 2023, uma sexta-feira, a atriz Yohama Eshima, como de costume, tinha acabado de dar um comprimido e meio de Sabril para o filho Tom, de 3 anos. Quando olhou o feed do instagram, reparou que uma amiga falava do remédio: quatro lotes de Sabril estavam contaminados com o antipsicótico tiaprida, proibido para crianças no Brasil. Eshima correu para conferir se as duas caixas que tinha do medicamento faziam parte dos lotes afetados. Sim. As duas caixas, uma que ela comprou e uma que recebeu do SUS, estavam contaminadas. “Meu dia mudou, fiquei emocionalmente abalada, sem saber se meu filho poderia ter algum problema”, lembra. 

Tom, de 3 anos de idade, sofre de esclerose tuberosa, uma doença degenerativa que provoca tumores fatais e pode afetar diversos órgãos do corpo humano, em especial o cérebro, o coração, os olhos, os rins, a pele e os pulmões. Um ultrassom de rotina durante a gravidez revelou que o bebê tinha alguns rabdomiomas cardíacos, pequenos tumores cardíacos primários benignos mais comuns em recém-nascidos e crianças, que indicam a possibilidade de síndromes. Foi só quando Tom nasceu que se pôde fazer um exame genético e diagnosticar esclerose tuberosa. Cada portador de esclerose tuberosa precisa de tratamento personalizado: a quantidade de tumores e o local onde os tumores aparecem determinam a terapia. Tom tem tumores benignos no cérebro; além disso, ele tem uma displasia cerebral. Com três meses começou a apresentar crises convulsivas. Foi quando Eshima deu início ao tratamento com as medicações anticonvulsivantes, como o Sabril, três vezes ao dia.Hoje Tom toma 1 comprimido e meio pela manhã e outra dose à noite, totalizando 3 comprimidos por dia. 

“Eu estava havia mais de dois meses dando o remédio, talvez eu esteja dando desde setembro, mas não tinha como saber porque não tenho mais as caixas, então fiquei desesperada para comprar uma caixa não contaminada e medicar o Tom”, conta Eshima, que passou a tarde da sexta-feira procurando caixas de lotes não contaminados de Sabril para comprar. Ligou para diversas farmácias, mas não encontrou. Nenhuma das farmácias sequer estava informada sobre a contaminação. Em contato com a neurologista, Eshima foi orientada a interromper a medicação por conta da falta de informação do grau de contaminação com a tiaprida. Ao mesmo tempo, com medo de que a falta da medicação desencadeasse alguma crise convulsiva, ela e o companheiro optaram por manter o Sabril. “Foi muito difícil, você sabendo que você está dando meio que um veneno para o seu filho, mas ainda era melhor dar um pouco do veneno e um pouco do remédio do que não dar nada”, pondera.

No sábado de manhã, Eshima localizou uma única farmácia que tinha uma caixa não contaminada, comprou a medicação (cuja caixa com sessenta comprimidos custa cerca de 400 reais) e está usando, com orientação da neurologista, doses menores. No mesmo dia, Eshima postou dois vídeos alertando para a situação do Sabril: “Eu fiquei indignada com a falta de informação, com a falta de respeito, com a falta de afeto, com falta de humanidade da farmacêutica.” No Instagram, os vídeos aparecem no feed com uma capa com as palavras “UTILIDADE PÚBLICA” em caixa alta. Nos comentários do post, dezenas de mães e responsáveis relataram que só passaram a ter conhecimento da contaminação por meio do post da atriz.

 

O Sabril, nome comercial da vigabatrina produzida unicamente pela Sanofi no Brasil, é um medicamento utilizado para reduzir as atividades elétricas cerebrais que causam a convulsão. O fármaco age aumentando o ácido gama aminobutírico, também conhecido como gaba, um neurotransmissor que inibe determinados sinais que são excitados pelo glutamato, um neurotransmissor excitatório, que quando em excesso no cérebro pode levar à episódios epiléticos e até à morte dos neurônios. À piauí, Maria Eline Matheus, professora do Programa de Graduação em Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, explicou que, farmacologicamente, é como se houvesse uma gangorra entre as substâncias: se o glutamato está em excesso é preciso colocar mais gaba do outro lado, por isso o uso da vigabatrina é contínuo e de longo prazo. “Se interromper, o glutamato vai voltar a ficar pesado na gangorra, a criança pode ter mais crises. O certo é o que a gente chama de desmame; se o psiquiatra neurologista da criança achar por bem suspender tem que ir diminuindo gradualmente as doses, não pode suspender de uma hora para outra”, alerta.

Já a tiaprida pertence a uma classe farmacológica chamada antidopaminérgicos, que funciona bloqueando o receptor da dopamina. Esses fármacos são utilizados em quadros de sinais positivos da psicose ou esquizofrenia; no caso da tiaprida especificamente, seu uso é muito recorrente na síndrome de abstinência do álcool. Segundo Matheus, ela não é amplamente utilizada no Brasil. Entre os efeitos da substância estão a sedação e a sonolência, que também são efeitos da vigabatrina, mas há outros efeitos que devem acender o alerta dos responsáveis. Pode ocorrer, por exemplo, o que se chama de síndrome piramidal ou parkinsonismo induzido: a pessoa pode entrar em bradicinesia, quadro marcado pela rigidez de movimentos e alguns tremores. 

Para a professora, o fundamental nesse caso é compreender que esses sintomas aparecem somente com uma dose muito alta de tiaprida, e a contaminação com pequenas quantidades da substância oferece menos risco que a interrupção da vigabatrina. Para os neurologistas e pais que decidirem parar de usar o Sabril, a especialista orienta: “Tem que fazer o desmame, não pode em momento nenhum deixar a criança descoberta farmacologicamente. É preciso prestar atenção aos sinais motores da criança, só se ela apresentar rigidez e lentidão dos movimentos é que tem que se preocupar.”

Já o psiquiatra Teng Chei Tung, que atua na emergência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, afirma que a tiaprida sai do corpo relativamente rápido, não gerando acumulação. “Os efeitos adversos da tiaprida são transitórios e facilmente equacionados com alguns antídotos. Não há grandes riscos de reações graves com o uso de tiaprida em doses habituais”, explica. Assim, se ocorrer algum efeito adverso o prudente é procurar um neurologista antes de interromper a medicação. 

A Anvisa destacou que em caso de qualquer sinalização de efeito adverso observados no paciente, é necessário que os pais e responsáveis os comuniquem ao médico e à farmacêutica

 

Em 17 de julho, a Sanofi informou em seu site que iniciou o recolhimento voluntário e preventivo de quatro lotes do medicamento Sabril em 10 de julho, devido a “um evento de qualidade no fornecedor da matéria-prima deste produto”. Os lotes impactados (CRA02747, CRA06696R, DRA00489V e DRA00490) estavam sendo utilizados havia meses pelos pacientes. Nas redes sociais, mães de crianças que utilizam a medicação afirmam que estão usando os lotes contaminados há quase dez meses, desde setembro do ano passado, sem qualquer aviso da farmacêutica. 

Segundo a empresa, os lotes do produto recolhidos apresentaram traços de tiaprida decorrentes de um carry-over, isto é, processo que ocorre quando uma substância residual permanece nos equipamentos utilizados na fabricação mesmo após a limpeza adequada e acaba contaminando outros produtos. O recolhimento está sendo feito entre distribuidores privados, órgãos públicos e redes de farmácia, e, segundo a nota da Sanofi, “os riscos conhecidos da interrupção abrupta da vigabatrina são maiores que os riscos teóricos deste evento de qualidade”. Ainda de acordo com o posicionamento da Sanofi, um novo lote do medicamento está em produção.

O comunicado público da Sanofi não explicita a quantidade de tiaprida encontrada no Sabril. Consultada pela piauí, a empresa declarou que “os traços de tiaprida corresponderam a no máximo 12,7 microgramas por dia nos lotes em recolhimento, considerando a maior quantidade de tiaprida a que um paciente pode ser exposto por dia ao tomar a maior dose diária de Sabril indicada em bula, 3 g de vigabatrina”. Traduzindo: se alguém tomar a maior dose diária de Sabril recomendada pelo fabricante (3 gramas, ou seis comprimidos), vai consumir 12,7 microgramas de tiaprida. Cada comprimido tem, portanto, 2,11 microgramas do fármaco contaminante. Só uma cápsula de tiaprida com 100 mg – a menor dosagem do mercado – tem cerca de 47 mil vezes do fármaco que o traço encontrado no medicamento da Sanofi.

Para Tung, a quantidade encontrada é muito baixa, e é pouco provável que haja efeitos adversos: “O risco é baixo para essa situação, mas traz um alerta para a possibilidade de outros erros que podem ser mais perigosos. O recolhimento é a conduta técnica mais adequada, não tanto pelo risco, mas por ser uma falha técnica indicando problemas sérios na produção industrial do medicamento.”

A contaminação não é o único risco com que os pacientes que usam o Sabril têm que lidar. Em fevereiro de 2022, a Sanofi protocolou junto à Anvisa a descontinuação temporária de fabricação e importação do medicamento. Segundo a empresa, há riscos de desabastecimento do medicamento devido à dificuldade que a fabricante tem tido em conseguir quantidades necessárias da matéria-prima vigabatrina.

Segundo a empresa, o risco de desabastecimento temporário persiste e está sendo gerenciado. Isso não significa que o medicamento não esteja em produção, mas sim que há uma limitação parcial da quantidade ofertada ao mercado. Apesar disso, a Sanofi afirma que um novo lote está em produção e que estão sendo tomadas todas as medidas necessárias para minimizar o impacto do recolhimento voluntário do Sabril.

A Anvisa destacou que a contaminação foi reportada para a agência pela própria Sanofi e que está acompanhando a retirada do produto do mercado. Segundo a agência, o problema na produção da vigabatrina é global e decorre da falta dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) necessários. A fábrica responsável pela produção do IFA está com uma remessa em curso para atender a demanda global. O Brasil será assistido, mas ainda não há informações sobre a quantidade de insumo que será disponibilizado. Diante disso, a Anvisa afirma que em agosto a Sanofi deve disponibilizar cerca de 15 mil caixas novas de Sabril, demanda suficiente para suprir por três meses a média de 4.200 caixas consumidas mensalmente no país.

Além disso, a agência tem discutido a importação de uma outra forma farmacêutica do produto, visando atender principalmente a população pediatra. A Anvisa já solicitou o encaminhamento da documentação necessária para que avalie viabilidade da importação.

Enquanto isso, o desabastecimento da medicação acabou gerando uma corrida às farmácias dos pais, que se veem sem opção mesmo diante do erro da Sanofi. Em farmácias da Zona Sul do Rio, o medicamento foi recolhido. Pais e mães percorreram vários estabelecimentos em busca do produto, sem sucesso. Entre os poucos que conseguiram, há relatos de que tiveram o medicamento recolhido pela farmácia mesmo após a compra. Muitos recorreram ao mercado paralelo – onde uma caixa, vendida sem receita, custa em média 460 reais. A ANVISA alerta que é de fundamental importância adquirir o medicamento somente nas drogarias credenciadas pela agência. Comprar medicamentos de pessoas físicas, sites duvidosos e outros meios alternativos pode colocar os consumidores em risco.

Mesmo para os pais que conseguiram o medicamento nas farmácias, a incerteza permanece. Para Matheus, a professora da UFRJ, a saída entre a contaminação e o desabastecimento é a diversificação. “Nós temos um arsenal terapêutico para epilepsia enorme, inclusive a cannabis medicinal que tem mostrado efeitos positivos em pesquisas com grupo de crianças e adolescentes com epilepsias refratárias”, avalia a pesquisadora. Ela participa de um estudo na UFRJ sobre o uso do canabidiol. Segundo ela, os resultados são promissores: “Há casos de crianças que tomavam vários anticonvulsivantes, e o tratamento efetivamente só funcionou quando eles começaram a usar o canabidiol.” O uso simultâneo de diferentes anticonvulsivantes já é prática estabelecida no tratamento de crianças com esclerose tuberosa e Síndrome de West; a insegurança da disponibilidade da vigabatrina deve estender a aplicação da técnica. O desafio é, em meio à crise de desabastecimento do Sabril, compor um receituário que mantenha a gangorra dos neuroreceptores equilibrada para evitar as convulsões infantis.

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