Ilustração: Carvall
Entre a facção e a filarmônica
Como um bairro pobre conseguiu reduzir homicídios e virou tema de livro
duas noites por semana, Yure Filipe Palá, de 19 anos, deixa sua casa e atravessa duas ruas até um prédio coberto de azulejos. As palavras “Espaço Livre” estão escritas de maneira discreta. Ele sobe as escadas até o segundo andar, passando pelas salas de aula com mobiliário infantil, e vai até o depósito onde estão guardados instrumentos musicais e partituras. Sete anos antes, Yure Palá chegou ao prédio onde funciona a Banda Filarmônica do bairro de Mãe Luiza, na Zona Leste de Natal, capital do Rio Grande do Norte, com o desejo de aprender a tocar violão. Na banda, se apaixonou pelos instrumentos de sopro e passou a tocar eufônio, instrumento com tamanho similar ao de um trombone, com som suave e delicado, cujo nome, de origem grega, significa “som bonito”.
Palá é um dos cerca de 35 jovens integrantes da Banda Filarmônica de Mãe Luiza, fundada em 2016. De dia o prédio abriga uma escola infantil, por onde passaram grande parte das crianças de Mãe Luiza até os 7 anos de idade. Além da escola de música e do Espaço Livre, há também a Casa Crescer, que oferece reforço para as crianças e adolescentes mais velhos; e a Escola de Informática e o Espaço Solidário, que consiste em um centro de convivência para idosos. Ao lado fica o Ginásio Arena do Morro, com um projeto arquitetônico que, em 2015, foi considerado uma das cinco melhores edificações do mundo na categoria Arquitetura Esportiva, pela Archdaily, assinado pelo escritório suíço Herzog & de Meuron. Todos os serviços são gratuitos e grande parte das construções foi levantada e mantida pela própria comunidade.
Mas nem sempre foi assim. Até hoje, nem sempre é assim.
Espremido entre alguns dos metros quadrados mais caros de Natal, Mãe Luiza teve sua ocupação intensificada a partir de 1950, com a chegada de migrantes que vinham do interior para a capital fugindo da seca. Entre os anos de 1960 e 1980, Natal viu sua população saltar de cerca de 160,2 mil para 416,8 mil habitantes. Em 1958, Mãe Luiza já havia se tornado oficialmente um bairro, mas a infraestrutura básica para a população ainda demoraria a chegar. Em 1951, foi escolhido pela Marinha para a construção do farol que guiava as embarcações até a costa potiguar e se tornaria cartão postal de Natal. Na década de 1960 a energia elétrica chegou às ruas. Às casas, só chegaria dez anos depois. Hoje, com 15 mil habitantes e classificada como Zona Especial de Interesse Social pela prefeitura, Mãe Luiza convive com os problemas de várias outras periferias do Brasil — entre eles, a presença de uma facção criminosa que, por vezes, ocupa a lacuna deixada pelo Estado.
Em março de 2023, quando mais de trezentos ataques a ônibus, veículos particulares e repartições públicas comandados pelo Sindicato do Crime foram registrados em diversos municípios do RN, Mãe Luiza foi um dos bairros afetados. Dois ônibus foram queimados na principal avenida do lugar. Apesar de a vida ter retornado à normalidade no restante do RN, o mesmo não aconteceu com os moradores de Mãe Luiza: desde os ataques, eles têm mais dificuldade para receber encomendas ou solicitar qualquer serviço de manutenção de energia e internet. Muita gente tem medo de entrar em Mãe Luiza.
A transição do controle do tráfico das várias gangues para a mão de uma facção criminosa se concretizou em 2013. Mãe Luiza era um espaço privilegiado para os grupos criminosos, pois, localizado em uma área elevada, sempre era possível avistar de longe a subida dos policiais e avisar aos traficantes para que se escondessem. Era comum que o dia amanhecesse com corpos jovens estirados nas ruas. Em 2013, dados do Observatório da Violência (Obvio) do RN, atualmente fora do ar, mostram que Mãe Luiza tinha 140 homicídios registrados para cada 100 mil habitantes. Em Natal, a proporção era de 63 para cada 100 mil. Desde 2012, com a criação do Sindicato do Crime do RN, facção criminosa que rivalizava o controle do tráfico de drogas com o Primeiro Comando da Capital (PCC) no estado, o tráfico na região começou a sair das mãos das pequenas gangues de bairro. Em 2017, após o massacre de Alcaçuz, quando 27 pessoas estavam presas na penitenciária localizada no município de Nísia Floresta, 40 km distante da capital, foram mortas durante o conflito, o Sindicato do Crime se consolidou como principal ator no tráfico de drogas do estado, e passou a controlar a atividade na capital e no interior. Mãe Luiza era uma dessas áreas sob influência da facção.
A partir dos anos 1980, a fama de violência de Mãe Luiza se espalhou por Natal. Padre Sabino Gentili ocupava o posto de diretor do colégio Salesiano São José quando ouviu falar da situação precária do morro, poucos quilômetros distantes da sede do colégio, no bairro da Ribeira. Italiano nascido na pequena comunidade rural de Castel di Tora, a nordeste de Roma, Padre Sabino veio para o Brasil em 1973. Em 1979, deixou o posto na tradicional escola particular e mudou-se definitivamente para Mãe Luiza, onde deu início ao trabalho que faria até o fim da vida, em 2006. Foi ele o responsável por atrair a atenção da comunidade internacional para a área e obter os investimentos e doações necessárias para os projetos sociais do bairro.
Sem sede de igreja, que só foi concluída em 1981, o padre celebrava as missas “onde dava”, lembra Oscar Manoel, de 92 anos, um dos moradores mais antigos de Mãe Luiza: “Às vezes na casa de alguém, na escola ou até mesmo na rua.” Mais do que uma cerimônia religiosa, os encontros se tornaram também um espaço para ouvir as dores da população, que eram muitas. Oscar, ao lado de outros moradores como o avô de Yure Palá, participaram dos mutirões para construção da sede da Igreja e do Centro Sócio-Pastoral.
Não demorou para que Padre Sabino passasse a aplicar a metodologia que, até hoje, é utilizada para tomar as decisões em Mãe Luiza: os seminários comunitários, que aconteciam em dias, horários e locais diferentes, de modo que todos pudessem contribuir e falar sobre os problemas que enfrentavam no bairro. A população começava a elencar as prioridades: primeiro, precisavam fazer com que as crianças parassem de morrer. A mortalidade entre o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 era de 60 a 70 bebês para cada mil nascidos vivos. Diarreia, pneumonia e desnutrição eram as principais causas. Todas evitáveis. “Em Mãe Luiza, não se envelhecia. As crianças morriam ainda bebês, desnutridas, enquanto as mães, também desnutridas, tentavam alimentá-las”, conta o médico epidemiologista Ion de Andrade, vice-presidente do Centro Sócio-Pastoral de Mãe Luiza.
Em uma época na qual a presença de agentes comunitários de saúde não era uma realidade, o Centro Sócio-Pastoral organizou comissões para fazer o trabalho. Os agentes iam de casa em casa, visitando as mulheres grávidas e acompanhando as mães até a criança completar um ano. O centro criou a Casa da Criança, para atender aqueles com quadros de desnutrição, alimentando-as uma vez ao dia e oferecendo consultas pediátricas e reuniões mensais com as mães. As iniciativas começaram nos anos 1990 e só pararam em 2001, quando os agentes municipais de saúde chegaram ao bairro.
Outro problema era com quem deixar as crianças, uma vez que não havia creche ou qualquer outro serviço público disponível para recebê-las enquanto os pais trabalhavam. Foi quando surgiu a Casa Crescer. Padre Sabino já previra que um dos problemas poderia ser a evasão escolar, e organizou grupos de moradores para fazer a busca ativa das crianças e jovens que deixavam de frequentar a escola.
Cuidadas as crianças, era hora de assistir os idosos: criaram, em 2001, o Espaço Solidário, um centro de convivência no qual os idosos podem passar o dia enquanto seus familiares trabalham, e no qual outros residem de forma permanente. Os funcionários são moradores da própria comunidade.
À frente da paróquia de Nossa Senhora da Conceição desde a morte de Padre Sabino, em 2006, Padre Robério Camilo afirma que a redução nos homicídios do bairro foi um dos principais desafios. “A juventude se matava muito. Os que tinham mais de 60 anos lutavam pelo que restava a eles, mas a juventude com 15, 17 anos, não tinha perspectiva de projeto de vida. O Estado sempre foi fraco aqui, acredito que do mesmo modo que em outras periferias”, afirma. Assim como Padre Sabino, Robério abandonou o posto de vigário-geral e padre na paróquia de Santa Terezinha, localizada em uma das zonas mais abastadas de Natal, o bairro de Tirol, para viver em Mãe Luiza.
A partir de 2013, a curva de homicídios de Mãe Luiza foi caindo. Em 2019, pela primeira vez, apresentou uma proporção inferior à do município: 25 mortes para cada 100 mil habitantes. “Foi quando a gente viu que a nossa política estava tendo um grande resultado neste sentido. Nossa política não é a do enfrentamento, até porque assim a gente perde. A gente não enfrenta o mal, mas potencializa o bem. Em Mãe Luiza se acolhe”, destaca Padre Robério. Ao mesmo tempo, a comunidade começou a buscar socorro em projetos sociais.
A história do bairro, suas conquistas e suas dores, é o tema de Mãe Luiza construindo otimismo, livro de Paulo Lins, autor do romance Cidade de Deus (1997), cuja adaptação para o cinema feita por Fernando Meirelles e Kátia Lund em 2002 recebeu quatro indicações para o Oscar. Pouco antes da pandemia da Covid, Lins recebeu uma encomenda dos membros do Centro Sócio-Pastoral de Mãe Luiza: queriam que ele conhecesse o bairro e retratasse, a partir da ficção, a transformação social proporcionada pelo investimento em educação, saúde, esporte e cultura. No livro, Lins conta a história de Lúcia e José, um casal que, fugindo da seca, encontra no bairro a chance de escapar da realidade de fome e violência. “Escrever esse livro foi algo que me deixou muito feliz, porque o que eles querem mostrar realmente é verdade”, disse Paulo Lins. “Diferente de Cidade de Deus, Mãe Luiza tem um final feliz.”
O projeto foi financiado pela Ameropa, empresa agrícola suíça que financia diversos projetos humanitários no Brasil, como a construção da própria Arena do Morro.
Um século depois da chegada dos primeiros moradores, a realidade do bairro não é mais a das casas de taipa, desnutrição infantil e mortes semanais. Não há, em Natal, outros bairros populares que contem com a estrutura comunitária erguida pelos moradores de Mãe Luiza, com uma banda filarmônica, um ginásio poliesportivo, uma escola de informática, de música, espaços de convivência para idosos, crianças e adolescentes.
Isso não significa que Mãe Luiza esteja livre de todos os problemas. A presença da facção criminosa Sindicato do Crime do RN ainda é uma realidade. A violência não foi completamente erradicada. Há poucas estruturas públicas, conquistadas ao longo dos anos: a Unidade Básica de Saúde, as escolas para crianças e adolescentes, um posto policial e a escadaria que liga Mãe Luiza à praia de Areia Preta, construída após os deslizamentos que aconteceram em 2014. Mãe Luiza acabou entrando no roteiro da Copa do Mundo – para ir da praia ao estádio era preciso cortar o bairro de ponta a ponta.
O músico Yure Palá já perdeu dois amigos para a violência. Um deles, Kelvin Gomes Lopes, de 25 anos, que tocava com ele na banda filarmônica e sonhava em ingressar em uma banda militar, foi morto na frente da própria casa. Na sede da Escola de Música, Palá conta que foi aprovado para o curso de Engenharia Têxtil na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). Mostra à piauí a partitura de Sossego, de Tim Maia. Foi a canção que ele e os amigos da banda filarmônica escolheram para tocar juntos, em homenagem ao amigo Kelvin Gomes Lopes. Palá e outros moradores, no entanto, não têm a intenção de deixar o bairro onde cresceram. Querem continuar a transformá-lo. “Espero que meus filhos e meus netos possam usufruir de tudo que tive aqui. Quero construir minha família, mas não quero sair daqui nunca.”
Jornalista potiguar, vive em Natal. Escreve sobre educação, ciência e direitos humanos.
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