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    Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente e pré-candidato a deputado federal: silêncio sobre os crimes no Javari - Foto: Reprodução

anais do descalabro

Escancarou a porteira e foi à urna

Em campanha, Salles ignora crimes no Vale do Javari; PF diz que suspeito confessou assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira

Thais Bilenky | 16 jun 2022_09h03
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O ex-ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, subiu ao palco do autointitulado maior evento conservador do Brasil, o CPAC (Conservative Political Action Conference), no sábado, 11 de junho, ovacionado. Pré-candidato a deputado federal, o público clamou por uma candidatura sua ao Senado, o que o fez sorrir abertamente. “Tem que combinar com o Datena”, provocou, em referência ao apresentador de tevê que é o pré-candidato ao cargo na chapa bolsonarista de São Paulo. Cada um na plateia pagou 47 reais para ingressar no Royal Palm Hall, centro de eventos em Campinas (SP), e assistir a palestras de governistas como Eduardo Bolsonaro, Tarcísio de Freitas e Mario Frias. O público cativo idolatra Salles, demitido do governo um ano atrás por se tornar investigado num esquema milionário de extração e exportação ilegal de madeira da Amazônia.

Em seu discurso, o ex-ministro disse que o Brasil começou a enfrentar “a pauta esquerdista, a pauta nhenhenhém, a pauta mimimi” com a eleição de Bolsonaro em 2018, mas “com muito custo e dificuldade”. A eleição de 2022 seria, na sua argumentação, fundamental para consolidar o projeto, que avançou aos trancos e barrancos. “Na pauta ambiental foi muito difícil o esforço que nós fizemos de mudar o vetor, mudar o sentido em que caminhava a estrutura que estava lá”, afirmou. Segundo ele, a mudança que implementou na área consistiu na atenção dada à população, e não mais exclusivamente à fauna e à flora. 

“Deixar as pessoas em segundo lugar é uma das formas de incentivar a ilegalidade. Você tem que, ao mesmo tempo, criar prosperidade econômica”, discursou. “Se você deixa essa turma na miséria, não tem cuidado com o meio ambiente. É simples.” O discurso ficou deslocado da realidade. A sua gestão no Meio Ambiente chamou a atenção mundial, mas pelo motivo oposto. A destruição da Amazônia se acelerou, afetando a proteção dos povos originários da floresta, alvos de garimpeiros, grileiros e outros piratas.

Fazia seis dias que o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira tinham sumido no Vale do Javari, onde fica a segunda maior terra indígena do Brasil, localizada na Amazônia na fronteira com o Peru. Salles não dedicou nenhum dos quinze minutos de discurso ao caso, apesar de a “turma” do Vale do Javari ter sido “deixada na miséria” durante o governo Bolsonaro. Nas cidades no entorno do território demarcado, não há saneamento básico, o acesso à assistência de saúde é precário e os custos de produtos são altos, dado o isolamento geográfico da região. Indígenas que precisam fazer sua documentação chegam a ficar meses morando em canoas na beira do rio esperando pela burocracia e não são raros os casos de doença e morte infantil. Nas comunidades locais como São Rafael e São Gabriel, as casas são de palafita e o fogão costuma ser a lenha. Dentro do território demarcado, está ameaçada a abundância de caça e pesca para subsistência indígena – é no Vale do Javari onde fica a maior concentração de povos isolados do mundo. A pesca ilegal é financiada pelo narcotráfico e, como os demais crimes ambientais cometidos, não há enfrentamento do Estado para barrar o avanço da violência e depredação.

Nesta quarta-feira, 15, o superintendente da Polícia Federal (PF) no Amazonas, Eduardo Fontes, comandantes do Exército, Marinha, Polícia Militar e de outras forças de segurança no estado deram uma entrevista conjunta em Manaus. Informaram que o principal suspeito do desaparecimento de Dom Phillips e Bruno Pereira confessou ter participado do assassinado da dupla motivado pelas denúncias de pesca ilegal que fazia. Amarildo Oliveira da Costa, conhecido como Pelado, disse que não foi ele quem atirou, mas que ajudou a enterrar os dois – acrescentou que os corpos foram esquartejados e incinerados. Restos mortais foram localizados com ajuda de Pelado e agora serão periciados para confirmar a identidade de Philips e Pereira e também esclarecer as condições da execução. Apesar da brutalidade do relato, os agentes de segurança passaram metade dos quarenta minutos de entrevista elogiando os próprios trabalhos e só mencionaram a participação decisiva de indígenas nas buscas quando indagados. 

 

Ao discursar, Salles ainda não sabia da confissão, mas o sumiço do jornalista e do indigenista já era fato gravíssimo, de repercussão internacional. De todo modo, seu discurso de campanha passa por cima das adversidades. Ele mencionou superficialmente a questão ambiental e logo expandiu a fala para temas como privatizações (“Nós temos que vender as estatais. Quais? Todas elas.”) e doutrinação ideológica (“uma série de coisas vergonhosas que vão sendo incutidas na cabeça da molecada”). É a estratégia do bolsonarismo em 2022: minimizar o que vai mal, maximizar assuntos secundários que distraiam o eleitor. “Temos que ir além, muito além daquilo que a pauta econômica nos coloca. Ela está sendo difícil realmente”, reconheceu no palco do CPAC, vestindo malha de lã e camisa social. “Mas não é só o aspecto econômico que interessa. Interessa também toda a parte moral e ética da vida brasileira.” Procurado pela reportagem, Salles não respondeu às mensagens. 

A terra indígena do Vale do Javari tem 8,5 milhões de hectares, o equivalente a 56 vezes o município de São Paulo. Lá vive o maior número de indígenas isolados do mundo, mas o esforço do Estado para mantê-los preservados se deteriora a cada ano.  

Dos 26 servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) que atuavam na terra indígena em 2010, restam três. Em 2019, primeiro ano da atual gestão, os funcionários da Funai denunciaram oito ataques a balas. Um deles matou o indigenista Maxciel Pereira dos Santos, que chefiava o Serviço de Gestão Ambiental e Territorial do Vale do Javari à época. Ele andava de moto com a mulher e a enteada no final da tarde de uma sexta-feira na avenida mais movimentada de Tabatinga (AM). Dois criminosos se aproximaram em outra moto e dispararam duas vezes em sua nuca. Servidores locais lamentam que as investigações nunca avançaram, e o crime ficou impune. Pior: um diretor da Funai de Brasília foi ao vale e, ao escutar relatos assustados dos servidores de ameaças que continuavam a ser feitas, disse que, se os funcionários não apresentassem materialidade das denúncias, a própria instituição poderia processá-los – foi o que contou à piauí um deles, que pediu para não ser identificado por temer represálias.

O êxodo de servidores da terra indígena era uma das causas que mobilizava o indigenista Bruno Pereira. Colaborador licenciado da Funai, ele comprou muita briga com colegas que queriam fugir da área dado os riscos que corriam tentando manter o território protegido de invasores. Amigos contam que, quando chefe local, ele vetou a remoção de funcionários da Funai, que pediram exoneração por conta disso. Argumentava que a direção da Funai não reporia os quadros de carreira, o que de fato aconteceu. 

Em 2021, fruto do esforço permanente de Pereira e seus colegas, o órgão abriu um processo seletivo para contratar colaboradores temporários durante a pandemia. O edital não impôs critérios de escolaridade para abrir espaço para indígenas locais. Foi a forma encontrada para preservar os povos do contato com gente de fora e tentar conter a Covid-19. Com isso, há hoje cerca de cem pessoas representantes da Funai no Vale do Javari, 95 dos quais indígenas locais, nos quadros do órgão até final de novembro. Depois disso não se sabe se serão renovados nos cargos ou dispensados. É muito mais do que havia, mas ainda insuficiente, inclusive porque as equipes se revezam, em escalas de sessenta dias de trabalho e trinta de descanso. 

Como até hoje a legislação não deu poder de polícia, com direito a porte de arma, aos servidores da Funai, Pereira fazia por iniciativa própria uma articulação com o Ministério Público Federal e forças de segurança para garantir alguma proteção à equipe. O primeiro suspeito preso pelo desaparecimento da dupla, que agora confessou o crime, Amarildo da Costa Oliveira, já estava no radar da equipe do Vale do Javari havia algum tempo. Uma pessoa envolvida relatou que os servidores da Funai elaboravam um dossiê para entregar ao Ministério Público Federal acusando-o de pesca ilegal, já que eles próprios não podiam detê-lo. Oliveira, conhecido como Pelado, é morador de São Gabriel, uma das quatro comunidades no entorno da terra indígena. Em outras duas, São Rafael e Ladário, também moram invasores, e os crimes financiados pelo narcotráfico transnacional só aumentam. 

O Vale do Javari é inóspito, selvagem e geograficamente isolado. Mas operações da Polícia Federal contra crimes ambientais ocorridos lá – e em toda a Amazônia Legal – têm mandados de buscas em todos os estados do país, segundo o Instituto Igarapé, que estuda as investigações policiais de 2016 a 2021. A dispersão geográfica das operações mostra que as organizações criminosas presentes na floresta atuam em todo o país. 

A operação Akuanduba, por exemplo, realizada em maio de 2021, cumpriu 35 mandados no Pará, no Distrito Federal e em São Paulo, inclusive em endereço residencial de Ricardo Salles. Quando era ministro do Meio Ambiente, ele atuou para “causar obstáculos à investigação de crimes ambientais e de buscar patrocínio de interesses privados e ilegítimos perante a administração pública”, segundo o delegado Alexandre Saraiva, em seguida afastado da superintendência da PF no Amazonas. 

 

Depois de ser demitido, Salles passou um período fora dos holofotes, mas agora voltou à carga para tentar se eleger. No mesmo dia em que Salles falava no CPAC, o presidente Jair Bolsonaro estava com uma comitiva de dezenas de servidores federais em Orlando, na Flórida. Almoçou numa churrascaria, fez motociata, participou de um ato em uma igreja evangélica e inaugurou um vice-consulado. Depois de dar a entender que a culpa era de Phillips e Pereira por se “aventurarem” onde não deviam e passar dias inerte até autorizar as Forças Armadas a atuarem nas buscas, deu uma declaração sem sentido sobre o caso. “Os dois desaparecidos, bastante avançadas as investigações, muitos indícios talvez conduzam para o que aconteceu com o cidadão do Reino Unido e com o do Brasil”, afirmou.

Superior hierárquico da Funai, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, viajou para os Estados Unidos com Bolsonaro, e não reservou espaço em sua agenda pública ao desaparecimento nem antes nem depois. Em rede social, ele declarou que tratou do caso com sua homóloga britânica, que cobrou informações sobre seu conterrâneo.

Nos compromissos públicos do presidente da Funai, Marcelo Xavier, tampouco houve espaço para o sumiço da dupla, abordado apenas em entrevistas. Ao programa Voz do Brasil, da EBC (a estatal Empresa Brasil de Comunicação), ele sugeriu que os dois estavam na região sem autorização. “Muito complicado quando duas pessoas resolvem entrar na área indígena sem nenhuma comunicação formal aos órgãos de segurança, nem mesmo à Funai, que exerce sua atribuição dentro dessa área indígena”, reclamou. A Funai até agora não abriu processo interno para formalizar o caso – todas as comunicações foram feitas informalmente por telefone e WhatsApp, de acordo com funcionários ouvidos pela piauí

A postura revoltou os servidores do órgão em Brasília, que fizeram protestos na segunda-feira, 13, na capital exigindo a retratação pública de Xavier e o deslocamento de equipe tática da Força Nacional para o Vale do Javari para proteção dos servidores e indígenas locais. Disseram que entrariam em greve se não fossem atendidos. Ignorados, cumpriram a promessa. Na terça-feira, 14, passaram o dia do lado de fora do Ministério da Justiça reivindicando uma audiência com Anderson Torres. Como ele não estava, pediram que o secretário-executivo do Ministério da Justiça os recebesse. Este mandou dois assessores, que apenas os escutaram, sem se posicionar.

O desmonte da Funai flagrado no Vale do Javari é generalizado no país todo. Em 2020, havia mais vagas abertas do que preenchidas nos quadros do órgão – 2.071 profissionais em atividade, e 2.300 cargos vagos, mostra um relatório produzido pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) e o INA (Indigenistas Associados), formado por servidores da Funai. Os problemas denunciados vão além da falta de mão de obra; o dossiê relata assédio moral e trabalhista, condições insalubres e insegurança na linha de frente.

No ecossistema bolsonarista, porém, tudo vai bem. “Ações e investimentos em proteção foram intensificadas nos últimos três anos no Vale do Javari”, defendeu-se a Funai em nota na terça-feira, 14. “A proteção das aldeias é uma das prioridades na atuação da Funai.”

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