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    Na foto, Chet Baker, que esteve no Brasil em 1985 para tocar na primeira edição do Free Jazz Festival Foto: João Pires/ Estadão Conteúdo

anais do showbiz

Escarro, sumiço, jazz e muito pó

As memórias de David Hadjes, que produziu grandes festivais de música no Brasil e presenciou momentos pouco edificantes de Chet Baker e Miles Davis

Julio Maria | 07 mar 2024_09h30
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Ele era pequeno, 1,57 metro de altura quando não usava as botas que o aumentavam em até sete centímetros, e esse fato colidia fortemente com o gigante que via quando encarava a própria imagem no espelho. Prince Rogers Nelson chegou ao Brasil em meados dos anos 1980 crente de que, mesmo habitando o planeta em que vivia Michael Jackson, era o único rei. Ele veio participar do lançamento de Purple Rain, álbum e filme que o tornariam um fenômeno planetário, mas que ninguém sabia ainda como iriam repercutir fora dos Estados Unidos. Sua produção avisou a David Hadjes, o brasileiro que representava os empresários do artista no Brasil, que Prince era um homem de muitos talentos, que tocava com igual destreza todos os instrumentos que via pela frente e que dançava tal qual um profissional da Broadway. Ninguém mencionou, porém, suas peculiaridades menos inspiradoras.

Assim que chegou a uma festa produzida pela gravadora WEA em sua homenagem, na boate Hippopotamus, em Ipanema, Prince estrilou: “Eu só entro aí se arrumarem um sósia. Ele vai pela frente e eu vou pela escada de incêndio.” Mas não havia sósia nem escada de incêndio. Só a entrada principal. Meio a contragosto, Prince adentrou a boate. Enquanto isso, Hadjes recebia um aviso do manager, Steven Fargnolli, para que não dirigisse nenhuma palavra ao artista. “Deixe que ele fale com você.” Hadjes seguiu o conselho. Em dado momento, Prince tomou a iniciativa, se aproximou dele e fez um pedido, olhando fixamente para a pista de dança: “Eu quero aquela mulher.” Aquela mulher era a atriz Maitê Proença. “Não, não posso fazer isso”, respondeu Hadjes. “Ela está com o marido.”

Prince, contrariado, não fez escândalo. Atravessou o resto da noite sem sósia e sem satisfazer seu desejo machista. Hadjes, por sua vez, manteve o emprego. Hoje, prestes a completar 70 anos, se entretém contando essa história na sala de seu apartamento, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Em suas décadas de show business, ele se acostumou a estranhos caprichos e histórias folclóricas envolvendo grandes artistas.

Homem de confiança do jornalista e produtor Roberto Muylaert, seu grande mestre, e aprendiz do musicólogo, jornalista e curador Zuza Homem de Mello, morto em 2020, Hadjes foi assistente de produção e de coordenação do Festival Internacional de Jazz de São Paulo, também conhecido como São Paulo-Montreux, nos anos de 1978 e 1980, e do Rio Jazz Monterey Festival, em 1980. Foi, além disso, produtor de casas de show no Rio, como a People, a Mistura Fina e a Jazzmania. Sua boa reputação fez com que, mais tarde, se tornasse representante no Brasil da Cavallo Rufallo & Fargnolli Management, empresa responsável pela carreira de artistas como Earth, Wind & Fire, Weather Report e Prince.

Hadjes viu o trompetista Dizzy Gillespie chegar dos Estados Unidos e passar pela alfândega do Aeroporto de Congonhas com maconha escondida no próprio cachimbo; viu Miles Davis enfurecido no Theatro Municipal do Rio ao perceber que só havia brancos na plateia; atendeu ao pedido de Etta James por uma gilete para preparar suas fileiras de cocaína (sem isso, ela não subia ao palco); dividiu um baseado enrolado em jornal ensopado de saliva com Dexter Gordon; vingou-se do desconfiado violonista Al Di Meola pagando a ele o cachê de mais de 5 mil dólares com notas de 2 dólares; ajudou a achar Ana Maria, mulher de Wayne Shorter, pelas quebradas do Rio de Janeiro; e flagrou Chet Baker acessando uma veia do pescoço para injetar cocaína diluída no banheiro do Jazzmania.

Hadjes também viveu histórias próprias. Como a vez em que, mergulhando em Ilha Grande, tentou capturar um badejo. Frustrado, mirou o arpão em um robalo. Mas o robalo conseguiu desviar, e o disparo atingiu uma lata que descansava no leito do mar. Hadjes voltou à terra firme, puxou a corda do arpão, abriu o recipiente e sentiu a fragrância de uma maconha quinhentas vezes mais poderosa do que a vendida nas bocas do Rio de Janeiro. Aquela era uma das cerca de 15 mil latas despejadas por traficantes do navio Tunamar (também chamado de Solana Star), que precisaram se livrar da carga para não tomarem um flagra da polícia marítima. O episódio ficou conhecido no Rio de Janeiro como Verão da Lata. 

 

Filho de mãe psicóloga e pai industrial que ouvia Bill Evans, Charlie Parker e Tom Jobim antes mesmo de os três se conhecerem, David Hadjes nasceu na Copacabana pré-bossa-nova, em 1954. Queria ser diplomata, mas se apaixonou por música. Com apoio dos pais, que tinham boas condições financeiras, foi estudar guitarra em Boston, na conceituada Berklee College of Music. Em pouco tempo, porém, começou a duvidar do próprio talento musical ao ver seu colega de quarto, Ricardo Silveira – que viria a se tornar um dos grandes instrumentistas brasileiros –, treinando escalas na guitarra. “Eu treinava o dia todo e não conseguia chegar aos pés do que ele fazia”, relembra Hadjes. “Minhas mãos doíam, eu passava uma pomada e seguia treinando.”

Em agosto de 1977, uma tragédia familiar o fez retornar ao Brasil. Seu irmão Mario foi atingido na cabeça pela vela do próprio barco enquanto velejava na Lagoa Rodrigo de Freitas. Caiu na água e desapareceu. Seu corpo só foi encontrado três dias depois. A morte do grande parceiro devastou Hadjes, e seu pai carregou um sentimento de culpa pelo resto da vida – foi ele quem presenteou Mario com o veleiro. A embarcação fora batizada de Blackbird.

Em 1978, Hadjes já tinha desistido de ser músico. Passou então a trabalhar do outro lado do balcão. Um velho amigo, Toca De Lamare, havia sido convidado para a equipe de produção do que viria a ser o primeiro grande festival de jazz internacional do Brasil, mas não se sentiu seguro para desempenhar a função. Como Hadjes havia acabado de sair de Berklee, cheio de informações sobre o que realmente importava no mundo do jazz contemporâneo, o amigo o indicou para o seu lugar. Deu certo. Depois de ser entrevistado por Roberto Muylaert, Hadjes assumiu a assistência de produção do festival e pôde aprender de perto com Zuza Homem de Mello, produtor responsável por cuidar das atrações vinculadas ao jazz tradicional, como Dexter Gordon, Dizzy Gillespie e Stan Getz.

Depois dessa experiência, vieram outras. Mais seguro de si, Hadjes sugeriu artistas menos óbvios para o lineup do segundo Festival de Jazz em São Paulo e do Rio Monterey Festival. Recebeu carta branca de Muylaert para fazer o que bem entedesse. Assim, trouxe para o Brasil o guitarrista Pat Metheny e o grupo Weather Report com a formação estelar que incluía Joe Zawinul nos teclados, Wayne Shorter no saxofone e Jaco Pastorius no baixo. Em seguida, Hadjes criou um supergrupo brasileiro chamado BR1, que tinha Marcio Montarroyos no trompete, Nivaldo Ornelas no sax e na flauta, Robertinho Silva na bateria, Jamil Joanes no baixo e Ricardo Silveira na guitarra. O elenco desses festivais teve ainda Chick Corea, George Duke, Larry Coryell, John McLaughlin, Ahmad Jamal, Etta James, e por aí vai.

Hadjes guardava fotos, cartas e cartões postais trocados com muitos desses artistas. Tudo se perdeu em uma enchente que devastou a cidade de Angra dos Reis (RJ) no dia 1º de janeiro de 2010, deixando 53 mortos. As águas inundaram o chalé onde Hadjes armazenava sua memorabilia.

 

Antes de tudo, antes mesmo de ir a Berklee, David Hadjes assistiu a um concerto de Miles Davis no Theatro Municipal do Rio, em maio de 1974. Era a primeira vinda do trompetista ao Brasil. Foram agendados cinco shows em sequência, alguns deles no Teatro Municipal de São Paulo. Hadjes pôde acompanhar a apresentação da coxia, próximo ao artista.

“Ele tocava se curvando para cheirar algo que parecia cocaína e escarrando no palco o tempo todo”, relembra, a respeito do comportamento de Davis no teatro. “Fez o show inteiro de costas para a plateia, só deve ter virado de frente uma ou duas vezes. Ao sair do palco sem se dirigir ao público, esbravejou. Estava puto porque só tinha brancos nas cadeiras.”

Na página 104 de sua autobiografia, escrita em colaboração com o jornalista Quincy Troupe, Davis anotou: “Por mais que eu adore Dizzy [Gillespie] e adorasse Louis Armstrong, sempre detestei a forma como eles riam e sorriam para o público. Sei por que eles faziam isso, para ganhar dinheiro e porque eram artistas além de trompetistas… Venho de um contexto e de uma classe social diferente de ambos: sou do Meio Oeste e eles eram do Sul. Então, vemos os brancos de maneira diferente.” Ele reconhecia que Dizzy e Louis, pertencentes a uma geração anterior, tiveram de sorrir para serem aceitos pela indústria e pela crítica. Mas não queria imitá-los. “Eu não ia fazer isso só para que um filho da puta branco, racista e que não sabia tocar pudesse escrever coisas simpáticas a meu respeito.”

Dizzy veio ao Brasil em 1978, para o I Festival Internacional de Jazz de São Paulo. Tinha 61 anos de idade. Ao chegar a São Paulo, foi recebido no Aeroporto de Congonhas pelo jovem David Hadjes, que presenciou o drible dado por ele na alfândega. O trompetista deixou o aeroporto, com maconha e tudo, sem ser incomodado pelas autoridades. Ao entrar no táxi, conduzido por um garboso e diligente chofer, enrolou um grande baseado. Foi tragando até chegar ao Hotel Eldorado. Subiu com Hadjes para o quarto, fechou portas e janelas, e acendeu mais um. Uma nuvem espessa tomava o ambiente quando um camareiro apareceu na porta. “Tive de dar um dinheiro pra ele não contar pra ninguém”, relembra o produtor.

Dizzy se afeiçoou a Hadjes e o chamou para o café da manhã do dia seguinte. Na mesa do hotel, relembrou os tempos em que quis ser presidente da República dos Estados Unidos, em 1964. Sua candidatura simbólica, em tempos de Guerra do Vietnã e conflitos raciais, prometia uma equipe de governo sui generis: Miles Davis seria diretor da CIA; Louis Armstrong, o ministro da Agricultura; Malcolm X, o procurador-geral; e Duke Ellington, o secretário de Estado. A Casa Branca, dizia Dizzy, seria rebatizada de Casa do Blues.

 

Sammy Davis Jr., ator e dançarino nascido no Harlem, esteve no Brasil em 1987, três anos antes de sua morte. Veio participar das gravações do filme Moon Over Parador [Luar sobre Parador], uma comédia dirigida por Paul Mazursky sobre um sósia de ditador que assume o comando de uma república latino-americana fictícia. O roteiro é capenga, mas o elenco era brilhante, com Richard Dreyfuss, Raul Julia e Sônia Braga. Hadjes, contratado para produzir a trilha sonora, pediu ao trompetista Márcio Montarroyos que fizesse os arranjos para o bolero Besame Mucho, que apareceria em versão instrumental. Mas Sammy a ouviu e se inspirou: “Se colocarem no meu tom, eu canto como se fosse o Pavarotti”, disse a Hadjes.

O produtor tomou aquilo como uma missão. O problema é que as filmagens ocorriam em Ouro Preto (MG), e Montarroyos, única pessoa capaz de transpor a tonalidade de seus próprios arranjos, morava no Rio. Apressado, Hadjes entrou em um carro da produção e pediu que o motorista o levasse até o Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, onde embarcou no primeiro voo com destino ao Rio levando a fita de Besame Mucho na mochila.

Montarroyos refez os arranjos para o tom de Sammy Davis em tempo recorde. Antes de voltar a Ouro Preto, Hadjes ainda passou em um batalhão do Exército no Rio para que a banda dos militares gravasse a nova base melódica de forma desafinada, tosca, como o roteiro pedia. A canção, incluída no filme, foi uma das últimas gravadas por Davis Jr.

 

Hadjes recorda mais uma história. 

 

Sua voz fica baixa e seu tom, reticente. “Por favor, eu não posso dar muitos detalhes sobre isso”, diz, e prossegue a falar com cautela, medindo as informações. A portuguesa Ana Maria Patrício foi casada com o saxofonista Wayne Shorter de 1970 a 1996. O casal veio ao Brasil nos anos 1980, conta Hajnes, quando Shorter foi escalado para o Rio Monterey Festival. Tudo ia bem, até todo mundo perceber, certa hora, que Ana tinha desaparecido.

Depois de muita procura, o produtor faz-tudo da gravadora CBS, Arlindo Coutinho, acionou seus contatos na Polícia Federal e conseguiu mobilizar uma equipe de agentes para as buscas. No Hotel Cesar Park, em Ipanema, Hadjes tentava tranquilizar Shorter. “Ele estava desolado.” O músico confidenciou que aquela não era a primeira vez. Como explicou o percussionista Peter Erskine no documentário Wayne Shorter: Zero Gravity, Ana gostava de “dar umas sumidas”. 

Hadjes, mesmo passado tanto tempo, prefere manter sob discrição as informações sobre como e onde Ana foi encontrada. Sabe-se, por outras fontes, que o local era uma sauna simpática a atividades ilícitas, como o consumo de cocaína. A esposa de Shorter morreu em um acidente aéreo, em 1996, a caminho de um show do marido. O avião, saindo de Nova York para Paris, explodiu sobre o Oceano Atlântico, numa área próxima às Ilhas Moriches.

 

Chet Baker esteve no Brasil em 1985. Era uma das principais atrações da primeira edição do Free Jazz Festival, uma das maiores e mais longevas marcas ligadas ao jazz no país. Depois de sua apresentação, a produção o encaminhou para o Jazzmania, casa de jazz do Rio que vivia naquele momento a sua melhor fase e tinha Hadjes como diretor artístico.

Ao chegar, Chet parecia estranho, agitado. No camarim, viu alguns músicos consumindo drogas. Alguém lhe ofereceu cocaína, ele recusou, mas guardou o pó embrulhado em um papel. Pouco depois, se levantou e avisou que iria dar um passeio pela praia de Ipanema.

“Eu acabei me esquecendo dele e a noite seguiu”, conta Hadjes. Tempos depois, um funcionário da casa notou que a porta do banheiro estava fechada havia muito tempo. Acionado para resolver o problema, Hadjes foi até lá e forçou a abertura. Viu que um homem segurava a porta para que Chet pudesse aplicar cocaína diluída em uma veia do pescoço. Não tinha passeio na praia. Ele havia saído da casa para comprar uma seringa.

 

Depois da primeira história, vem uma avalanche de recordações e causos. Hadjes enviou ao repórter uma série de mensagens em áudio. “Tem uma muito engraçada, sobre quando estávamos com o pessoal do Earth, Wind and Fire no Rio”, disse, em uma delas. “Estávamos hospedados no Hilton e a relações públicas do hotel era muito amiga minha.” A colega o avisou de que haveria uma batida policial naquela noite, e que seria prudente alertar a banda. Os músicos eram caretas, relembra Hadjes, mas o “pessoal dos metais” tinha drogas. “Eles jogaram tudo fora. Quando a polícia apareceu, não havia mais nada.”

Acometido por um enfisema pulmonar que torna qualquer esforço um tanto mais difícil, sem contar os problemas renais que o levaram a fazer doze intervenções cirúrgicas, Hadjes lamenta ter vivido pouco. “Eu poderia ter feito muito mais coisas se não fossem esses problemas. Queria ter feito algo com Milton Nascimento, com Stevie Wonder, com tanta gente. Mas, enquanto trabalhei, eu sei que botei pra quebrar. Não posso reclamar da vida.”

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