Ilustração: Carvall
A escola fora do lugar
Professor conta como foi censurado por um colégio particular depois de propor para redação temas como democracia, racismo e assassinato de Marielle Franco
Algum tempo hesitei em contar sobre a censura que sofri quando ocupei, durante um ano e meio (de junho de 2020 até dezembro de 2021), o cargo de professor de redação em uma escola particular numa grande capital brasileira. Quem se interessaria? Talvez o sindicato. O Judiciário também poderia apreciar, dado que a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação asseguram a liberdade de cátedra ao professor. Os episódios poderiam, ainda, figurar em um romance distópico. Entretanto, como a distopia e o noticiário estão tão irmanados no Brasil dos últimos anos, decidi contar minha história nesta revista.
Há outras razões que justificam a escolha. O processo judicial, conquanto pudesse me render algum lucro, seria desgastante e me obrigaria a rever pessoas para cujas faces eu nunca mais gostaria de olhar. Outra inconveniência seria o fechamento de oportunidades em outras instituições de ensino. Além disso, ao publicar este relato justamente em um ano de eleições, quando o movimento Escola sem Partido completa dezoito anos, talvez eu encoraje colegas que dividem as trincheiras da sala de aula a relatarem experiências semelhantes.
Em setembro do ano passado, ao enviar à coordenação as propostas de redação para a prova final da disciplina no bimestre, fui orientado a repensar as avaliações para o segundo e terceiro anos do ensino médio. A primeira proposta era sobre as ameaças à democracia nos dias atuais; a outra, sobre a volta do Brasil ao mapa da fome, temas que a coordenadora da área em que eu lecionava julgou inapropriados. A primeira porque havia críticas implícitas ao governo federal presentes na coletânea de textos que compunha a prova. A segunda por causa de uma citação que dizia que o Brasil deixara de figurar no ranking da fome durante o governo Lula. O e-mail enviado pela coordenadora terminava com um pedido de reformulação das propostas, após ela recorrer a um contorcionismo retórico para justificar a censura.
As primeiras sensações que tive ao ler isso foram raiva e tristeza. A razão é muito simples: a constatação de que eu trabalhava em uma escola que desprezava o conhecimento acadêmico nas humanidades. Ora, a proposta sobre ameaças à democracia continha reflexões de Steven Levitsky, cientista político e professor na Universidade Harvard, da historiadora Lilia Schwarcz, professora da USP, e de Lucas Azevedo Paulino, doutor em direito constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Esses autores escreveram os textos por mim utilizados nas provas após anos de estudo e pesquisa. Seriam, sim, passíveis de contestação, desde que feita por pares que, após considerável tempo de pesquisa, lançassem mão de argumentos igualmente bem fundamentados. Certamente não poderiam ser contestados por lunáticos que pensam que a Terra seja plana, que não existe racismo no Brasil ou que negam a existência de uma sangrenta ditadura no país entre 1964 e 1985. Como professor, não posso colocar no mesmo patamar o produto do conhecimento produzido por pesquisadores sérios de renomadas universidades e o de pessoas sem nenhum lastro que decidiram tratar de temas acerca dos quais não têm conhecimento. Seria um insulto à formação que tive em uma universidade pública.
Além disso, a atividade docente é composta por muitas horas de trabalho não remuneradas. A atuação em sala é apenas uma minúscula parte do trabalho, que também envolve preparação de aula, confecção de provas, correção de atividades e preenchimento de documentos escolares. Trabalha-se exaustivamente. Portanto, ao ser censurado dessa forma, restou em mim a impressão de que o tempo, a energia e o investimento afetivo feitos nessas atividades haviam sido inúteis, pois a própria instituição escolar me impedia de acender uma centelha de pensamento crítico nos estudantes, desconsiderando a legislação em torno da liberdade de ensino.
Após todas essas ponderações, domei minha raiva, formulei duas outras propostas de avaliação, mas não me furtei em tentar replicar, dentro do espaço que eu julgava ter.
Primeiramente, manifestei minha surpresa, pois a sugestão sobre as ameaças à democracia havia sido elogiada no ano anterior. Depois, ponderei que, de fato, não existiam temas neutros e que minhas propostas de redação tinham por foco estimular o debate. Destaquei, ainda, que as universidades estaduais paulistas vinham formulando temas de redação bem politizados.
A título de exemplo citei provas da Fuvest e outras que trataram de temas como a importância do conhecimento de história e a relevância do conhecimento científico. Frisei que, se a proposta da escola era a preparação para o vestibular, ao esvaziar politicamente as redações ela estava cometendo um desserviço.
Desta feita, não recebi nenhuma réplica às minhas ponderações por escrito, mas a coordenadora me encontrou no corredor e comentou que, de fato, elogiara a proposta sobre ameaças à democracia no ano anterior, mas que, em 2021, o clima político havia recrudescido e agora havia pais dos dois campos na escola.
Talvez tenham sido pais um tanto inclinados às tendências autoritárias e anticientíficas do governo federal que também tenham ficado irados com uma lista de livros que passei aos estudantes no primeiro semestre. Como o repertório de cultura geral das turmas do ensino médio era muito diminuto, no começo do ano fiz a tal lista, com obras que lhes permitissem entender melhor o país e o mundo em que viviam, escritos por autores como Eric Hobsbawm, António Lobo Antunes, José Saramago e George Orwell. Com o objetivo de estimular a leitura das obras indicadas, eu disse que iria atribuir até 1 ponto nas provas aos alunos que produzissem resenhas sobre capítulos e/ou livros inteiros.
Era uma lista modesta, passível de ampliação, e muito introdutória. Mas houve pais que ligaram para a coordenação do ensino médio, argumentando que aquilo era uma doutrinação comunista – e Karl Marx nem estava dentre os autores arrolados.
Antes de formular a lista, eu tinha comentado com a coordenadora que produziria esse material e havia recebido um aval positivo. Entretanto, não submeti as obras à apreciação da escola, pois julguei que eu teria liberdade para escolher as que me parecessem mais adequadas. Recebi uma reprimenda por isso. A coordenação frisou que, antes, eu deveria ter enviado a relação para ser aprovada pelo colégio, mas que, pior ainda, era o fato de eu insistir no mesmo ponto: a política. Respondi que política não era um assunto homogêneo ou monolítico e que aquelas eram obras que refletiam sobre o Brasil e o mundo sob muitos vieses.
A coordenação explicou aos pais que, até o final do bimestre, a lista seria mantida, em respeito aos alunos que tivessem feito a atividade. Também aconselhou que eu conversasse com os professores de história, geografia, sociologia e filosofia, para que eles fizessem suas contribuições, e que toda decisão fosse submetida à instituição. Não decidi levar a lista adiante, até porque, dos cerca de 180 estudantes, apenas um produziu uma resenha. O episódio me fez sentir na antessala do autoritarismo, em que livros viram objeto de censura.
As censuras finais que sofri na escola versavam sobre as três últimas propostas de redação que apresentei à coordenação. A primeira nem tinha sido formulada por mim, mas pela Fundação para o Vestibular da Universidade Estadual Paulista (Vunesp) e questionava sobre a conveniência da publicação de imagens chocantes em veículos jornalísticos. A segunda abordava as formas de manifestação do racismo na sociedade brasileira. A terceira tratava das dificuldades da Justiça em solucionar assassinatos no país. Fui chamado à sala da coordenadora novamente.
O pedido, agora, era para que eu terminasse o ano de “forma mais leve”. Por isso, a minha primeira proposta (a das imagens chocantes) era inconveniente. A segunda (do racismo brasileiro), muito política, pois poderia ensejar críticas da parte dos pais. Já a terceira tinha um sério problema: um dos textos motivadores da prova mencionava o assassinato de Marielle Franco, em 2018.
Novamente fiquei chocado. Quando eu mencionei a execução da vereadora, na terceira proposta, o fiz para dar um exemplo de um crime que, apesar da enorme repercussão, não foi elucidado. A ideia era que, a partir desse caso, os estudantes pensassem em outros, igualmente sem solução.
Dessa vez, ponderei que não haveria tempo hábil para formular outras propostas em decorrência do excesso de trabalho. Era evidente que eu não tinha a intenção de modificar as propostas, mas dizê-lo abertamente poderia implicar uma demissão. Por isso, pisando em ovos, recorri a outro argumento, igualmente verdadeiro.
Após esse diálogo, a coordenadora levou o caso a instâncias superiores e me foi pedido que, ao menos, a proposta sobre as imagens chocantes na imprensa, feita para o primeiro ano do ensino médio, fosse trocada. Como era a de que eu menos fazia questão, aceitei sem reclamar. Mesmo com a diplomacia de que lancei mão, ao fim do ano fui demitido, com a justificativa de que a instituição estava reestruturando o quadro de funcionários.
É sintomático que esse relato seja publicado no Brasil de 2022, que marca o fim do mandato do governo Bolsonaro e os dezoito anos do movimento Escola Sem Partido. Ambos causaram um estrago na educação difícil de mensurar. Afinal, ao permitir a censura ao professor e desrespeitar explicitamente a legislação, corre-se o risco de perpetuar mais violência, preconceito e exclusão social.
Aqui, aliás, convém fazer uma ponderação: quando se menciona liberdade de cátedra, o professor não está pedindo para ensinar o que lhe vier à cabeça. Há um currículo, também regulamentado pela legislação, a ser seguido. Ele tampouco pode propalar discursos de ódio, pois estes são punidos pela Constituição Federal. Não se trata, portanto, como algumas pessoas podem pensar, de um vale-tudo que vai tolerar a disseminação de toda a sorte de absurdos. Os especialistas em absurdos, aliás, não são, normalmente, os professores, mas alguns políticos e influenciadores digitais que, sob o guarda-chuva da liberdade de expressão, se sentem à vontade para disseminar preconceitos, notícias falsas e teorias sem comprovação científica.
Fico a imaginar que outros professores tenham passado por situações correlatas (e até mais difíceis) nos diversos rincões do Brasil. Embora eu não tenha a pretensão de angariar simpatias com este texto – que assino sob pseudônimo, por temer represálias da instituição em que trabalhei –, espero que ele ao menos acenda o alerta para o grau de violência a que a atividade docente tem sido exposta nestes tristes trópicos de ideias fora do lugar.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí