Ilustração de Carvall
Escola pública, lição em casa
Na pandemia, estudantes de escolas privadas migram para redes estaduais; só no Rio Grande do Sul, total de transferências cresceu vinte vezes
Durante dois anos e meio, Anita de Moura Silva frequentou uma escola particular de referência em Novo Hamburgo, voltada para a educação profissional de ensino técnico integrado com o ensino médio. Mas a animação da estudante com o projeto de mecânica não resistiu à pandemia em pleno terceiro ano do ensino médio. Ela considerou as aulas na modalidade online desorganizadas e, com o Enem chegando, passou a se preocupar com seu desempenho no exame. “A gente imaginava que eles iam ter uma organização diferente, mas não. Foi bem decepcionante”, contou Eunice Vieira de Moura, enfermeira e mãe de Anita. Além disso, os interesses da aluna pelo curso foram se desfazendo. “Algumas matérias não tinham nada, então realmente não estava valendo a pena a gente seguir pagando uma escola. Ela não iria usufruir do curso técnico e também não estava tendo a matéria como deveria”, afirmou Eunice. Além disso, as despesas mensais escolares com Anita eram em torno de mil reais; mesmo com a pandemia, em nenhum momento a escola ofereceu desconto às famílias. A combinação da desorganização das aulas à distância e da questão financeira fez surgir a ideia de transferir a jovem para uma escola estadual. No final de junho, Anita pediu transferência e, no início do mês seguinte, já estava matriculada na nova escola pública em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre.
Anita foi um dos 20 mil estudantes, de ensino fundamental e médio, que migraram do ensino privado para a rede pública estadual do Rio Grande do Sul no ano da pandemia – um aumento de 1900% em relação a anos anteriores, mostram dados da Secretaria Estadual da Educação obtidos pela piauí. De acordo com a Seduc-RS, em anos considerados normais, anteriores ao período da pandemia e de suas consequências econômicas e sociais, havia cerca de mil transferências. Atualmente, a rede estadual conta com cerca de 820 mil alunos matriculados.
Para Eunice, a questão financeira não foi determinante na escolha, mas pesou no orçamento e ajudou a família a tomar a decisão. Ela trabalha em um hospital em Porto Alegre e, apesar de a unidade não ser referência na Covid-19, também passou momentos de estresse e preocupação. De tão cansada, abriu mão de realizar horas extras no hospital e, consequentemente, diminuiu a renda mensal. “A gente não cortou nada do orçamento [além da mensalidade escolar], mas compramos apenas o básico.” O pai de Anita, Mauro Valadão, também é enfermeiro, mas está afastado pelo INSS, pois é transplantado de rim.
A família cogitou continuar a formação na escola privada até o final do ano, mas foi impossível. Anita acabou saindo antes. A transição gerou, no primeiro momento, um certo estresse na estudante, como quando deixou os grupos de redes sociais nos quais mantinha contato com os colegas.
O rendimento escolar da filha é um fator que preocupa Eunice. “O ensino do terceiro ano é só para dizer que tem um diploma, porque acho que ela aprendeu mesmo cerca de 20% [do conteúdo]”, revelou a mãe. No antigo colégio, algumas matérias não tiveram aula, e Anita não conseguiu migrar as notas – que não existiam – para a rede estadual. De acordo com Eunice, as aulas online pelo estado estão mais organizadas que pelo colégio privado.
Devido ao grande número de novas matrículas no estado do Rio Grande do Sul, a Secretaria da Educação reiterou que, para absorver a demanda, foram realizados ajustes no número de turmas conforme cada região e disponibilidade das instituições de ensino. Além disso, afirmou que o acréscimo do número de estudantes ocorre dentro das possibilidades e que tem trabalhado para garantir estrutura física e virtual das aulas remotas e presenciais. Em 2021, com a volta dos estudantes às aulas presenciais, a realidade será outra, o que pode gerar problemas para absorver a alta demanda de alunos nas salas de aula.
Outros estados brasileiros também vivem o crescimento das transferências de alunos de escolas privadas para públicas. São Paulo registrou um aumento de 29% em relação ao ano passado. De janeiro a agosto de 2020, 14.093 alunos migraram da rede privada para a estadual, do primeiro ano do ensino fundamental à terceira série do ensino médio; já no mesmo período de 2019 foram 10.916, segundo dados da Secretaria da Educação de São Paulo. A rede municipal da capital paulista apresenta um pequeno aumento, de 17%, nas matrículas decorrentes de escolas privadas: em 2019, dos 420.586 alunos matriculados no Ensino Fundamental, 4.254 vinham da rede particular. Em 2020, das 471.653 matrículas, 4.994 são oriundas da rede privada.
O Rio de Janeiro apresentou um aumento menos expressivo, de 20%, mas ainda segue a mesma tendência. De março a setembro, foram identificadas 1.582 inscrições de alunos do sexto ano do ensino fundamental à terceira série do ensino médio que migraram da rede privada para a estadual. Nesse mesmo período no ano passado, foram 1.320 estudantes. O mesmo patamar foi registrado na Bahia, onde a Secretaria da Educação registrou, nas escolas estaduais, 13.063 matrículas de estudantes oriundos da rede particular. No ano anterior, 11.061 – um crescimento de 18%.
Além do rendimento, outro fator que preocupa as famílias é a evasão escolar. De acordo com pesquisa Juventudes e a Pandemia do Coronavírus, do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), 3 a cada 10 jovens pensam em abandonar a escola. O estudo obteve respostas de 33,7 mil jovens de todos os estados do país em maio de 2020. A aflição das famílias é real, e as projeções se concretizam em uma escola da rede estadual do Rio Grande do Sul.
O professor de Língua Portuguesa Felipi Fraga, diretor da Escola André Leão Puente, em Canoas (RS), disse que a unidade viu a evasão escolar – que já existia nos outros anos – crescer em 2020. No turno da manhã, período que concentra o maior número de estudantes, a evasão aumentou cinco pontos percentuais, chegando a cerca de 6%. À tarde e à noite, foi de 20% e 30%, respectivamente. Com as transferências de jovens oriundos de escolas particulares, o número total de estudantes acabou se mantendo em torno de 1.100 alunos.
Para Anita e tantos estudantes, a mudança de escola foi mais uma dificuldade num ano marcado pela pandemia. Ela sabe que o aprendizado deste ano deixou a desejar, e a família já cogita uma preparação pré-vestibular em 2021. Anita quer cursar Arquitetura ou Medicina. Independentemente do colégio em que esteja estudando, da pandemia ou da distância dos amigos, sonha grande e vai batalhar por sua vaga na universidade.
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