O Ubirajara, único fóssil de dinossauro completo da Bacia do Araripe de que se tem notícia, foi parar no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha Ilustração: Carvall
À espera de Ubirajara
A luta de uma cidade do interior do Ceará para receber de volta um fóssil de dinossauro levado para a Alemanha
Com bancos de madeira, canteiros repletos de plantas e árvores, a Praça Maria Elaíla Paiva, no Centro de Santana do Cariri, no Sul do Ceará, a cerca de 530 km da capital Fortaleza, é uma típica praça de cidades do interior nordestino – a não ser pela réplica de um dinossauro de 4 metros de altura que enfeita um dos canteiros. Foi doada pela Mocidade Independente de Padre Miguel e esculpida pelo carnavalesco Renato Lage. O dinossauro de alegoria é uma homenagem aos primeiros habitantes da região: os animais dos períodos Jurássico e Cretáceo. O sítio paleontológico da Bacia do Araripe, dividida entre o Ceará, Pernambuco e Piauí, é o maior do país e se tornou um dos pontos mais importantes do mundo para a paleontologia, com fósseis que guardam a história da biodiversidade da Terra. Por causa disso, a região se tornou durante muito tempo um mercado aberto de venda de fósseis. A Praça de Santana abrigava uma espécie de feira livre de fósseis, na qual, com lonas e panos estendidos sobre o chão, os santanenses vendiam, trocavam e negociavam fósseis de animais e plantas.
Desde 1942 o Decreto-Lei 4.146 reconhece o patrimônio fossilífero como bem público da União. Para extrair fósseis é necessário ter autorização prévia do Departamento Nacional de Produção Mineral – mesmo assim, pela falta de fiscalização e políticas públicas, a ilegalidade corria solta em Santana do Cariri naquela época. “A lógica era: o que é público, é para ser consumido e é de todo mundo. Todo mundo tinha fóssil”, conta o biólogo Álamo Feitosa, coordenador do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca). Em 1990, o governo brasileiro determinou que a saída de fósseis destinados à pesquisa deveria ser autorizada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).
Em 1995, o fóssil do Ubirajara jubatus, um dinossauro coberto de penas e com 40 cm de altura, que viveu há 115 milhões de anos no Cariri, foi parar no Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha. Nessa época, já havia sido criado o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, inaugurado em 1988 e cedido em 1991 para a Urca (Universidade Regional do Cariri). O esqueleto fossilizado de Ubirajara foi encontrado em uma pedreira de calcário laminado na Formação Crato, entre os municípios de Nova Olinda e Santana do Cariri. As pedras foram extraídas e levadas para o exterior. A autorização que possibilitou a saída das duas caixas de calcário para o museu da Alemanha foi assinada por um funcionário do então Departamento Nacional de Produção Mineral (hoje, Agência Nacional de Mineração) do Crato, do Ministério de Minas e Energia, sem detalhar o conteúdo das amostras. Não houve autorização do MCT para a operação. A sede do DNPM no Crato foi desativada em 2018. À piauí, a ANM declarou que o documento “era sobre fósseis comuns, material com exemplares já descritos e conhecidos”. Segundo a ANM, o contrabando de fósseis do país é atribuição da Polícia Federal, e o órgão tem apoiado os trabalhos de investigação.
Muito antes de 1995 fósseis do Araripe vão parar em países desenvolvidos. Nos anos 1800, o Museu de Munique já contava em seu acervo com coleções saídas do Araripe e levadas por cientistas alemães que passaram pelo Ceará. Em Nova York, o Museu Americano de História Natural também conta com diversos fósseis de peixes da Chapada do Araripe.
Em dezembro de 2020, um artigo descrevendo o Ubirajara jubatus foi publicado por pesquisadores de universidades do Reino Unido, Alemanha e México no periódico Cretaceous Research. O Ubirajara é o único fóssil de dinossauro completo da Bacia do Araripe de que se tem notícia até hoje. Pesquisadores brasileiros, no entanto, não sabiam do fóssil, muito menos participaram da pesquisa. A Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) contestou a revista sobre o artigo, e cientistas iniciaram um movimento online com a hashtag #UbirajaraBelongsToBR (Ubirajara pertence ao Brasil, em tradução livre do inglês), criando também um abaixo-assinado pela repatriação. Diante da (péssima) repercussão na comunidade acadêmica, o artigo foi retirado da versão online da revista. “Foi um feito inédito para a nossa área”, observa Álamo.
Para Alexandre Kellner, paleontólogo e diretor do Museu Nacional, primeiro museu do país, localizado no Rio de Janeiro, a despublicação do artigo foi uma virada de chave. Agora, para ele, a paleontologia se divide entre antes e depois do Ubirajara. “O Ubirajara é um divisor de águas. Estamos diante de um cenário antes e depois dele. Não é apenas mais um fóssil exportado ilegalmente do país. Pela primeira vez, depois de tanto trabalho que diversos paleontólogos tiveram quanto à conscientização dessa sangria, um trabalho foi retirado de publicação, e não por motivos científicos, mas por motivos legais”, observa.
A retirada de peças históricas, arqueológicas e paleontológicas pelos países desenvolvidos, aceita durante anos, hoje é uma prática associada à expropriação material e cultural. Por isso tudo, Ubirajara é personagem central do debate sobre a quem pertencem peças arqueológicas e paleontológicas retiradas de seus países. Além do mais, quando uma peça fóssil importante está longe de casa, os pesquisadores locais acabam sendo privados de estudar e conhecer a história da própria terra onde vivem. Para Kellner, é imprescindível que as peças importantes permaneçam no seu local de origem e que as exportadas ilegalmente sejam devolvidas. “As peças importantes têm muito mais sentido para as pessoas daquela localidade, elas denotam a identidade da região. Sou a favor de que essas peças fiquem no lugar de origem, mas isso não quer dizer que outros pesquisadores não possam estudar. Pode fazer a pesquisa sim, mas venha para cá e devolva. Por que o British Museum é o British Museum? Porque tem fósseis importantes lá”, comenta. Para o pesquisador, até mesmo para pleitear o retorno dos fósseis, o Brasil precisa, com urgência, compreender a importância e ter responsabilidade com esses patrimônios, a exemplo do incêndio no Museu Nacional, ocorrido em 2018. “O Museu Nacional, lamentavelmente, acaba sendo um exemplo negativo do enorme descaso da sociedade brasileira com seu patrimônio cultural, e isso tem que mudar.”
Para reaver Ubirajara, a Universidade Regional do Cariri também entrou em ação – já que os apelos consensuais tentando a devolução não adiantaram. Em 2021, o museu alemão recusou-se a devolver o esqueleto e negou qualquer ilegalidade. Afirmou, em nota publicada em seu instagram em setembro daquele ano, que o fóssil pertencia ao estado alemão de Baden-Württemberg, pois chegou à Alemanha antes da entrada em vigor de uma convenção da Unesco sobre o tema. A convenção é dos anos 1970, mas, em 2016, a Alemanha regulamentou a que peças ela se aplicaria, e estabeleceu que pertencem ao país artefatos que entraram em território alemão até abril de 2007.
Com a comunidade de paleontólogos e o público mobilizados, a causa ganhou uma dimensão inédita. A repercussão do caso foi tanta que, em 2021, após operações da Polícia Federal, quase quinhentos fósseis foram devolvidos ao Museu de Santana do Cariri. Dentre eles, uma coleção de aranhas que estavam com a Universidade do Kansas, nos Estados Unidos. Em julho deste ano, o Ministério de Ciência, Pesquisa e Arte de Baden-Württemberg, estado alemão, propôs a repatriação do fóssil de Ubirajara.
Hoje o Museu de Paleontologia de Santana do Cariri se chama Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens – é uma homenagem ao fundador do local, falecido em 2016. Ex-prefeito da cidade, ao voltar do doutorado na Itália, Plácido criou o museu e enfrentou desde a falta de verba até o preconceito de quem não achava possível um museu de paleontologia no interior do Ceará. A instituição está associada ao Geopark Araripe que, desde 2006, é chancelado pela Rede Global de Geoparques da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) – foi o primeiro parque ecológico das Américas e Caribe a integrar a rede. Com o passar dos anos, as instalações do museu foram se expandindo e, agora, já ocupam uma quadra inteira no Centro de Santana. No sobrado que abriga o museu estão guardados fósseis, maquetes da Bacia do Araripe, pinturas e esculturas que simulam os dinossauros que habitavam os céus e terras do Cariri. Os visitantes são recebidos por crianças e adolescentes alunos da rede pública do município, participantes do projeto educativo do museu, que recebem aulas de inglês, libras, paleontologia, geologia e história da Bacia do Araripe. “O museu tenta estar ao máximo dentro da sociedade, envolto por ela. Os alunos passam por um treinamento específico para receber nossos visitantes”, relata Allysson Pinheiro, diretor do Museu.
O processo de trazer o Ubirajara de volta corre bem, mas ainda não tem data prevista para acontecer, afirma Álamo Feitosa, da Urca. Segundo ele, “o primeiro passo é fazer com que o bonitinho chegue ao Brasil”, mas ainda não se sabe exatamente quando o fóssil vem nem para onde vai. O professor defende que volte ao local de onde saiu, a cidade de Santana. “Quanto mais holótipos, mais importante o museu é. Necessitamos que os fósseis fiquem aqui, somos uma região pequena, estamos no centro do Nordeste, a mais de 500 km das capitais mais próximas. Claro que a Bacia do Araripe é de todos os brasileiros, mas, como eu digo para alguns colegas meus: vocês têm o Cristo Redentor, as praias do Leme ao Pontal, o Museu de Arte de São Paulo, a Paulista, nós só temos o Padre Cícero e os fósseis. Se for repatriado para outro local que não seja o Cariri, verdadeiramente ele não foi repatriado”, afirma Feitosa. Segundo ele, Ubirajara não é o único fóssil a ser repatriado. “Temos cerca de 11 mil peças fósseis sob os cuidados da Urca, mas estimamos que a Alemanha tenha em torno de 90 mil peças daqui da Bacia do Araripe. A gente vem sendo saqueado ao longo de décadas. Essa luta não é de hoje e nem vai se resolver com isso. Preciso de mais duas encarnações”, reflete rindo.
Mesmo quando Ubirajara estiver em casa, a luta não deve chegar ao fim. Em revistas ou leilões virtuais de fósseis, é possível reparar que as peças araripenses integram coleções particulares e são vendidas de forma ilegal por pessoas de todas as partes do mundo por valores milionários. “De nada adianta a luta de toda uma comunidade científica para que esses patrimônios retornem se temos agentes legais agindo ao arrepio da lei. Essas pessoas precisam ser investigadas. O Brasil tem que entender a sua responsabilidade com esse material”, reflete Kellner, do Museu Nacional.
No rastro dos dinossauros, Santana do Cariri vai tentando transformar o museu em um lugar com a marca da inovação. Cientistas da Urca, universidade que gerencia o museu, estão desenvolvendo uma técnica que permite que, a partir do rejeito da mineração de calcário laminado, sejam criadas réplicas de fósseis que possam ser comercializadas pelos artesãos locais. O Museu também é uma espécie de incubadora de iniciativas – e uma delas prevê que turistas, além de se hospedar no museu, façam cursos sobre paleontologia. De tempos em tempos, o museu sai do Centro da cidade e percorre os distritos rurais com atividades para os moradores. “A melhoria das condições socioeconômicas do povo desse território passa por esses patrimônios – especialmente os fósseis, que têm todo esse apelo, essa magia envolvida –, com o potencial de atrair turismo, desenvolvimento, movimentar a economia, dar melhor condição de vida às pessoas daqui”, comenta o diretor. Muitos jovens em situação de vulnerabilidade social passam pelo Museu e tiveram a vida modificada angariando prêmios, bolsas de estudos e oportunidades de trabalho. Enquanto espera Ubirajara, o biólogo Feitosa resume: “Esse museu já salvou gente. É por isso a nossa luta.”
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