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    Projetos criados em Heliópolis e no Complexo da Maré podem inspirar uma nova forma de fazer políticas públicas ambientais no Brasil Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

questões urbanas

Este clima está bom pra você?

Como a ciência de dados cidadã e a participação social podem contribuir para a adaptação climática no Brasil

Cristiane Gomes Lima, Gabriela Alves, Juliana Miranda Mitkiewicz, Kamila Camilo, Rian de Queiroz Cunha, Sabrina Oliveira Santos e Vitor Stalmann | 23 ago 2024_12h38
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Na era da informação digital, a participação cidadã é uma ferramenta crucial para a formulação de políticas públicas. Como diz a líder indígena e ativista Txai Suruí, ecoando um lema que nasceu na luta pelos direitos das pessoas com deficiência (PcD): “Nada sobre nós, sem nós.” Quando se trata de enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas, os dados gerados por quem vive em áreas mais necessitadas têm um papel imprescindível, pois oferecem uma perspectiva detalhada dos impactos locais da nova realidade ambiental. Apesar disso, são muitas vezes negligenciados por instituições públicas e privadas.

Não é porque a produção desse conhecimento ocorre fora da academia que ela não se caracteriza pelo rigor científico. A geração de dados cidadã possibilita uma coleta massiva de informações em tempo real sobre ocorrências como enchentes, secas e incêndios florestais. Tudo isso por meio das pessoas que estão na linha de frente, e em congruência com os chamados “hard data” (dados factuais e mensuráveis). Essas informações não apenas aumentam a consciência pública sobre o meio ambiente como também oferecem subsídios valiosos para o desenvolvimento de políticas de adaptação mais eficazes e inclusivas.

O Brasil tem se destacado como um exemplo inovador no mundo, produzindo iniciativas comunitárias que ajudam a construir soluções para lidar com essa nova realidade planetária. Ao capacitarmos as comunidades e incentivarmos sua colaboração na coleta e análise de dados, podemos desenvolver políticas mais robustas e adaptadas às necessidades reais de cada território.

Vejamos a seguir cinco casos exemplares de ciência de dados cidadã: Observatório De Olho na Quebrada, Redes da Maré, Mutirão Paulo Freire, Perifa Sustentável e Parque Morro Grande. 

 

O Observatório De Olho Na Quebrada é um coletivo de pesquisa fundado em 2018 para atender à necessidade da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas). Seu objetivo é fundamentar projetos, serviços, atividades e reivindicações por meio da criação de políticas públicas baseadas em dados – demográficos, econômicos, sociais – da população daquela que é, hoje, a maior favela de São Paulo. Essa demanda surgiu por vários motivos. O primeiro: a indisponibilidade de dados “oficiais” sobre o território nos portais dos governos municipal, estadual e federal, que tendem a oferecer uma visão geral da cidade, alheia às especificidades locais e às experiências dos moradores. O segundo: a forma como essas informações, quando disponíveis, são apresentadas. Frequentemente, são organizadas de modo confuso, numa linguagem técnica e complexa, e tendem a reforçar estigmas e preconceitos. Um exemplo disso são os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre favelas e comunidades urbanas, que até 2024 eram classificadas como “aglomerados subnormais”, um termo com conotação pejorativa.

Além disso, a coleta de dados em territórios vulnerabilizados enfrenta o problema da subnotificação. Isso ocorre porque, em primeiro lugar, os moradores têm acesso limitado aos serviços públicos responsáveis pelo registro de dados, como os Centros de Referência da Assistência Social (Cras), as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e as escolas. Em segundo, porque existe uma dissonância entre as bases cartográficas dos censos, que muitas vezes não levam em conta passagens estreitas, becos e vielas sem nomes, e os mapeamentos feitos pelos próprios habitantes, que consideram critérios históricos, sociais, afetivos e culturais. Grande parte dos dados públicos, por isso, está em descompasso com o momento atual da comunidade.

A princípio, o Observatório seria composto exclusivamente por economistas, demógrafos e estatísticos formados em instituições de ensino parceiras, reconhecidos por sua avançada capacidade técnica na coleta, análise e interpretação de dados. A Unas, no entanto, logo percebeu a necessidade de ir além da linguagem técnica (não raro hermética) do mundo acadêmico. A entidade, além disso, considera importante contratar pessoas familiarizadas com cada uma das “quebradas”, bem como com as famílias que nelas residem. Se não o fizesse, esse processo de inserção no território exigiria mais tempo, já que os pesquisadores demorariam a estabelecer uma relação de confiança com os moradores. Os habitantes da comunidade contam também com uma sólida compreensão das dinâmicas locais, algo que um pesquisador de fora teria dificuldade em captar. Assim, surgiu a ideia de integrar ao coletivo jovens de diferentes idades e contextos, que vivem, estudam e compartilham suas experiências – ou parte delas – em Heliópolis, cada um trazendo consigo um olhar contextualizado e autêntico sobre as potencialidades e desafios do território.

Com o passar dos anos, os jovens assumiram o papel de “detetives” de sua própria comunidade e começaram a diagnosticar uma série de desafios que há anos enfrentam, como a falta de acesso à internet, a repressão policial aos bailes funk, a falta de pavimentação, as ruas mal iluminadas ou sem iluminação, os sinais de trânsito que não funcionam, as unidades de saúde distantes, o esgoto a céu aberto, a falta de coleta de lixo… Suas pesquisas rapidamente convergiram para um tema comum: o impacto das mudanças climáticas sobre as juventudes das favelas e comunidades urbanas – e como elas têm percebido essas transformações. 

Duas dessas pesquisas desenvolvidas por eles repercutiram de maneira significativa: Do muro pra lá: O retrato do racismo ambiental em Heliópolis e Estresse térmico em Heliópolis.

Em fevereiro de 2023, São Paulo foi castigada com uma série de tempestades intensas. A favela de Heliópolis, situada entre o bairro do Ipiranga e a cidade de São Caetano do Sul – áreas com metro quadrado valorizado –, também foi afetada. As consequências, ali, foram particularmente devastadoras: as chuvas, que duraram mais de uma semana, sobrecarregaram o sistema de drenagem, incapaz de lidar com o excesso de água acumulado nas ruas. Os rios, córregos e diques da área transbordaram. As barreiras de concreto e as comportas de metal, construídas pelos próprios moradores para proteger suas residências, não resistiram à força das águas. Muitas casas foram danificadas pelas enxurradas, que destruíram móveis, documentos, medicamentos, alimentos e veículos. Muitas famílias ficaram sem recursos imediatos para lidar com a situação.

Coincidentemente, no dia 7 de fevereiro – o mais chuvoso do mês –, aconteceu o De Quebrada: Encontro de Observatórios e Laboratórios Periféricos. O evento foi organizado pelo Observatório de Heliópolis com o objetivo de reunir jovens engajados na geração cidadã de dados. Os poucos participantes que venceram a chuva e conseguiram chegar ao encontro discutiram pela primeira vez os conceitos de “racismo ambiental” e “justiça climática”. Esse debate foi crucial para a partilha de histórias e memórias que destacaram como os eventos climáticos têm, há décadas, impactado a todos – sendo as populações pobres e periféricas as mais expostas aos riscos. A partir disso, os participantes deram início a um levantamento sobre as enchentes, inundações e alagamentos de Heliópolis – e de que maneira os moradores estavam sendo afetados, em especial as mulheres.

Ao comparar o mapeamento do GeoSampa, o portal de dados georreferenciados da cidade de São Paulo, com o que foi realizado pelos moradores de Heliópolis, notaram-se algumas discrepâncias. O levantamento dos moradores, que levou em consideração o estudo do relevo, dos cursos d’água, das construções e do tráfego de automóveis em dias de chuva intensa, revelou que a favela tem muitas áreas alagáveis e inundáveis que não são registradas no mapeamento governamental. Verificou-se também que o sistema do GeoSampa inclui uma grande parte de São Caetano, que está fora dos limites do município de São Paulo. O contraste entre os dois trabalhos provocou questionamentos: se todas as evidências indicam a existência de um problema ambiental grave em Heliópolis, por que isso não é refletido nas fontes do governo? Por que São Caetano é mapeado, enquanto Heliópolis, que faz parte do município de São Paulo, não recebe a mesma atenção?

Além das investigações sobre as chuvas, os jovens exploraram os efeitos da retenção de calor do concreto e do asfalto em Heliópolis, que está se tornando cada vez mais verticalizada e menos arborizada em comparação com o restante da cidade. Nesse contexto, surgiu a ideia de coletar, em parceria com o Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro, do Insper, dados primários de temperatura e umidade de diferentes tipologias habitacionais da favela, considerando que cada uma de suas oito quebradas (gíria usada pelos jovens para falar do lugar em que vivem e ao qual pertencem, que é associado a territórios populares, sejam eles nos centros ou nas periferias da cidade) apresenta características únicas em termos geográficos, históricos, construtivos e socioeconômicos. O objetivo da pesquisa era determinar se as comunidades que residem em ilhas de calor sofrem desproporcionalmente com um maior desconforto térmico, agravado pelas mudanças climáticas. Hoje, é fundamental entender até que ponto os níveis extremos de temperatura colocam em risco a saúde não só dos mais de 200 mil moradores de Heliópolis como também de todas as favelas em São Paulo.

Em função dessa parceria, o Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro disponibilizou ao longo de um ano educadores para capacitar os jovens, bem como dataloggers – isto é, registradores de dados que monitoram com exatidão os dados históricos de um ambiente, em tempo real ou a longo prazo. Enquanto isso, o Observatório De Olho na Quebrada forneceu para a pesquisa os próprios jovens, conhecedores da comunidade e comprometidos com a instalação dos equipamentos disponibilizados para as medições. A fim de estabelecer uma colaboração bem-sucedida entre o território e a academia, foi oferecida uma série de oficinas centradas em justiça climática e conforto térmico, de modo a construir pontes que conectassem os jovens de Heliópolis ao mundo universitário. Esses workshops se basearam na produção e comunicação de dados técnicos e científicos, tudo sob a ótica da importância do advocacy. Isso serviu, em especial, para que os jovens se sentissem capacitados e motivados para enfrentar as injustiças que sofrem.

Essas duas experiências, que não são as únicas do Observatório, ilustram como os projetos de ciência cidadã podem ir além do âmbito científico, englobando também aspectos socioambientais e educacionais. No caso de Heliópolis, ambas as pesquisas reivindicaram práticas que beneficiem a saúde dos moradores do bairro, ao mesmo tempo que aumentaram a conscientização dos participantes sobre questões climáticas. Elas também promoveram um senso de responsabilidade ecológica, fortalecendo a confiança na ciência e a compreensão da importância da autogestão e da participação direta dos cidadãos na definição de políticas públicas. Ao longo dos anos, ficou evidente para os jovens de Heliópolis que políticas padronizadas, impostas de cima para baixo sem considerar o contexto local e a própria voz dos moradores, tendem a fracassar.

Se antes os jovens se questionavam sobre a natureza da produção do conhecimento, ou seja, quem detém a “autoridade” para produzi-lo e quem o legitima, hoje eles têm a capacidade de disputar narrativas, sempre integrando saberes populares, experiências de educação não formal e ações de incidência política. É com base nessas experiências que afirmam a importância de apoiar a capacitação das juventudes, principalmente das mulheres periféricas e faveladas, que hoje são maioria no Observatório. Com a criação de espaços seguros para trocas, compartilhamentos e desenvolvimento, é possível ampliar a busca por soluções decoloniais para a crise ambiental, o que diz respeito às gerações presentes e futuras.

 

O projeto Respira Maré surgiu em 2023 no Rio de Janeiro, a partir da constatação de que problemas respiratórios vinham atingindo cada vez mais a população daquele conhecido conjunto de favelas – sem contar os apagões frequentes na rede elétrica. O Complexo da Maré, onde vivem 139 mil pessoas segundo um censo feito pela Redes da Maré, é cercado pelas três principais vias expressas da cidade: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela (essa última atravessa diretamente o território). Devido a essa geografia, os moradores são expostos a altos níveis de poluição.

Entretanto, as estações oficiais de monitoramento do estado, que fornecem dados para o planejamento de políticas ambientais, estão situadas longe do Complexo e são incapazes de captar informações em nível local. Foi para solucionar isso que a Redes da Maré, com apoio financeiro do Instituto Clima e Sociedade, lançou o projeto Respira Maré. A ideia era realizar um diagnóstico da qualidade do ar e das ilhas de calor nas dezesseis favelas que compõem a Maré, buscando dados locais precisos e relevantes.

O projeto surgiu por tripla necessidade. Primeiro, porque era essencial transformar a percepção da piora da saúde respiratória em algo tangível e mensurável. Segundo, por ser imprescindível ter dados que respeitem a diversidade territorial e os diferentes usos de solo característicos de cada local. Em terceiro lugar, porque era importante integrar o conhecimento e a vivência da população na elaboração da metodologia e na coleta dos dados.

Durante sete meses, os mais de 4 km² da Maré foram palco de uma coreografia rigorosamente executada por cinco jovens moradores. Quase todos os dias eles captavam os dados atmosféricos por meio de um aparelho portátil em três turnos nos 25 pontos de medição cuidadosamente distribuídos pelo território. Além da coleta, os jovens participaram de formações sobre temas socioambientais e de reuniões periódicas para discutir a localização dos pontos de medição. Dos cinco jovens, dois sofrem com problemas respiratórios, e os outros três convivem, em seus lares, com parentes que têm doenças respiratórias.

Os resultados indicaram que a Maré tem ilhas de calor internas: algumas de suas favelas apresentam temperaturas 1,9°C mais altas do que outras. Quando comparada com os resultados da estação meteorológica do Galeão – aeroporto distante 4,5 km do conjunto de favelas –, a pesquisa mostra uma variação entre 4°C e 6°C. A falta de áreas verdes, a concentração de materiais que acumulam calor e a impermeabilização excessiva do solo estão entre os motivos para esse fenômeno. As áreas mais quentes não resfriam à noite, o que preserva as altas temperaturas mesmo quando não há incidência solar. Isso exige o uso de aparelhos e alternativas artificiais para atenuar o calor, o que causa sobrecarga na já precária rede elétrica e gera apagões duradouros. Curiosamente, as maiores temperaturas da Maré estão em áreas planejadas ou em seus arredores, como no caso do conjunto habitacional Nova Maré, construído na década de 1990 no âmbito do programa Morar Sem Risco.

Quanto à qualidade do ar, foram encontrados valores elevados de PM2,5, PM10 (material particulado) e NO2 (dióxido de nitrogênio, subproduto da queima de hidrocarbonetos), além de alta concentração de CO2 (gás carbônico), o que constitui uma ameaça à saúde da população. O NO2 é especialmente problemático. A exposição crônica a esse gás pode acarretar problemas de saúde mais sérios, como doenças cardiovasculares e câncer, além de agravar condições preexistentes como asma e bronquite. Alguns estudos sugerem que a exposição ao NO2 durante a infância pode estar relacionada a um menor desempenho cognitivo. Na Maré, a situação se torna ainda mais preocupante quando se constata que a área com maior concentração desse gás está em um complexo de escolas recentemente construído, próximo à Linha Vermelha, ilustrando o risco que representa o fluxo intenso de veículos nas rodovias que margeiam a região.

A escala de magnitude dos efeitos das mudanças climáticas se amplia, enquanto o intervalo entre seus impactos é cada vez menor. É urgente pensar em maneiras mais sensíveis de capturar essas mudanças. As estações oficiais não indicam o nível de poluição ao qual a população da Maré está exposta, tampouco que seus moradores precisam se adaptar a altas temperaturas. Ao desenvolverem, com participação popular, uma rede de monitoramento de dados atmosféricos – que pode ser aplicada, com adaptações, em todas as favelas do Rio –, projetos como o Respira Maré dão margem para que se discuta mais profundamente a relação entre técnica, geração de dados e incidência em políticas públicas ambientais.

 

De volta a São Paulo: no Mutirão Paulo Freire, localizado na Zona Leste da capital, a ciência cidadã também está transformando a vida dos moradores. Com o apoio do Instituto Pólis, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU/SP) e da Energy Transition Fund (ETF), a comunidade abraçou em 2023 a energia solar através de um coletivo autogestionário.

Os habitantes participaram de oficinas e cursos gratuitos, onde aprenderam a instalar e manter sistemas fotovoltaicos. Agora, cem famílias desfrutam de energia limpa e custos menores do que tinham antes. A iniciativa, chamada Coletivo Solar Paulo Freire, não só proporciona autonomia energética como também inspira políticas habitacionais e movimentos semelhantes.

A ela se somam outros dois exemplos: o Perifa Sustentável e o Movimento em Defesa do Parque Morro Grande. Antes de apresentá-los, cabe aqui uma breve contextualização.

Está prevista para 2026 a inauguração de mais uma linha de metrô em São Paulo – a Laranja. Ela trará mobilidade para diversos pontos, alguns deles periféricos. Uma das novas estações se chamará Brasilândia e ficará próxima de outra entrega pública: um parque, que irá rodear a estação e conectar o Morro Grande com o verde e o transporte. Mas o que acontece quando um metrô chega a um bairro da periferia?

Há quem pense que as políticas de adaptação climática se resumem ao pós-entrega de equipamentos públicos. Mas é mais do que isso: todo tipo de construção precisa ter como eixo central a sustentabilidade e o meio ambiente. A entrega de uma estação metroviária é um sonho de parte considerável da população paulistana, mas é importante levar em conta que a inauguração de uma obra dessa natureza muda significativamente a dinâmica social, habitacional e econômica da região em que se encontra. Será que no rol de preocupações com entregas públicas, para além do verde e da adaptação climática, não é preciso pensar na participação social?

O projeto Muçurana quis justamente entender isso no contexto da entrega da estação Brasilândia e do parque, reivindicado há quase vinte anos. O Muçurana foi idealizado pelo Instituto Perifa Sustentável (organização cujo objetivo é mobilizar e articular uma juventude racializada nas favelas para uma nova agenda sustentável e climática), em parceria com o Movimento em Defesa do Parque Morro Grande (coletivo que há mais de dezoito anos se empenha pela implantação de um parque urbano e pela proteção de um conjunto de patrimônios históricos na periferia da Zona Norte de São Paulo).

Tendo como fio condutor principal a participação dos moradores, o Muçurana, lançado no início de 2024, quer fomentar discussões e sintetizar as soluções cocriadas no Plano Urbano Climático Integrado com uma linguagem acessível e inclusiva. O objetivo é analisar os impactos dessa obra além do deslocamento em si – e torná-la também uma questão política e uma ferramenta de transformação social

Para garantir a participação da comunidade, a metodologia foi dividida em três etapas, sendo a primeira de conceituação e levantamento de informações territoriais. Todas as análises, que ainda estão em curso, serão registradas em um banco de dados e descritas em um relatório, acompanhado de mapas temáticos que destacam as áreas de intervenção prioritárias nos territórios contemplados pelo Muçurana. Os estudos estão sendo conduzidos em colaboração com a ETH Zurich, da Suíça, que selecionou a Brasilândia como campo de pesquisa, com o objetivo de desenvolver com os alunos um masterplan em torno do Pátio Morro Grande e da Estação Brasilândia, além da instalação de uma estação meteorológica para análise das ilhas de calor no território. A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) investigará a mesma região no contexto da disciplina de Habitação.

A segunda etapa foi estruturada de maneira colaborativa para que o território pudesse ser pensado em eixos temáticos que dialogassem com as entregas previstas. Para essa conversa direta com a comunidade e para que haja uma articulação com os alunos-pesquisadores, criou-se um conselho, dividido em subgrupos: história do bairro e patrimônio, cultura, plano diretor e habitação, meio ambiente e ilhas de calor, economia e jurídico, esportes, educação, saúde e mobilidade. A ideia é que sejam debatidos e analisados, em encontros quinzenais, os impactos contínuos na região decorrentes da chegada do metrô, buscando-se soluções mitigadoras e conectando-as com a chegada do parque. Por meio desse diálogo colaborativo serão sempre estabelecidas diretrizes que integrarão o plano climático. Nessa fase, os alunos vão elaborar projetos técnicos específicos para o território a fim de compor o Plano Urbano Integrado Climático (Puic).

Pensando na democratização de todo esse conteúdo, a terceira etapa do Muçurana foi concebida em forma de evento. Ficou decidido que seriam aproveitadas três datas especiais deste ano: 11 de agosto, o Dia do Morro Grande (evento incluído no calendário oficial da cidade por uma reivindicação comunitária do Movimento em Defesa do Parque Morro Grande); e 17 e 18 de agosto, em função da Jornada do Patrimônio, realização do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura do Município de São Paulo. No Dia do Morro Grande foram feitas diversas atividades, como uma cartografia afetiva dos patrimônios culturais e lugares de memória da região, trilhas dentro do perímetro do parque, apresentações musicais das rodas de samba locais, e o mais importante: mesas temáticas dos subgrupos do conselho.

Esse trabalho com a memória constitui uma “bandeira de luta”, promovendo um senso de identificação da comunidade com os patrimônios locais e fomentando uma consciência coletiva sobre a importância de protegê-los. Por meio de um ativismo fundamentado na educação ambiental e patrimonial, estabeleceu-se um diálogo intergeracional que pleiteia mudanças por meio dos grandes projetos que estão chegando ao território. O Muçurana, com a elaboração coletiva de um plano climático integrado, quer botar em foco o meio ambiente e a identidade do Morro Grande, estabelecendo diretrizes para uma governança comunitária antes, durante e depois das obras. O que se propõe é que a comunidade ganhe protagonismo através de uma gestão participativa e de longo prazo.

Como se pode notar, a ciência cidadã é uma poderosa ferramenta no movimento contra as mudanças climáticas, principalmente em contextos urbanos e periféricos. Os casos aqui apresentados demonstram que a participação ativa das comunidades na coleta e análise de dados é capaz de fornecer informações essenciais para a formulação de políticas públicas eficazes.

Nada para nós, sem nós.

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