Baby do Brasil e o proprietário da D-Edge, Renato Ratier, dão início ao culto. Foto: Karime Xavier / Folhapress
“Estou com o dono da balada”
Templo da música eletrônica, D-Edge se transforma em culto evangélico com louvor de Baby do Brasil e pastor que defende “cura” após deixar prostituição e renegar homossexualidade
O culto evangélico realizado no D-Edge na noite de segunda-feira, 10 de março, causou discussões antes mesmo de começar. A boate localizada na Barra Funda, em São Paulo, aberta há 22 anos, é um templo hedonista e um dos principais palcos da música eletrônica do Brasil – e do mundo. O estabelecimento aparece com frequência na lista das melhores casas noturnas da revista DJ Mag, referência internacional no segmento. Em pouco mais de duas décadas, já recebeu DJs como Gui Boratto, Mark Farina, Marky e Steve Aoki, entre outras estrelas da cena eletrônica.
O D-Edge é lindo. Seu cenário e sistema de iluminação têm 790 metros de luzes LED multicoloridas, 40 metros de painéis de alta definição e quatro andares, sendo duas pistas, um lounge e um terraço, com capacidade para mil pessoas. Foi, desde sempre, um lugar para a “jogação”, para usar uma gíria da noite, com consumo de drogas lícitas e ilícitas por parte dos clientes. No after do D-Edge, nas manhãs de domingo, dezenas de pessoas visivelmente agitadas lotam a calçada da Alameda Olga para fumar, beber e paquerar.
Mas o ambiente visto na última segunda-feira destoava do original. Quem chegava à boate encontrava uma balada convertida em igreja por uma noite. O estranhamento começava pela iluminação branca, típica de consultório odontológico. O público era diverso: havia desde mulheres segurando bolsas Louis Vuitton e Gucci até um homem com uniforme da St. Etienne, conhecida rede paulistana de padarias. A maioria das pessoas aparentava ter entre 30 e 60 anos. A pista principal estava lotada, com todas as 150 cadeiras disponíveis para a ocasião ocupadas, esperando a entrada do DJ e empresário Renato Ratier, dono da boate, e Baby do Brasil, cantora e compositora convertida ao cristianismo evangélico nos anos 1990. O evento era gratuito.
Por volta das 19h30, Renato Ratier apareceu para começar o culto. Vestia uma calça da Y-3, linha de roupas da Adidas criada em parceria com o designer japonês Yohji Yamamoto, um tênis Nike e uma camiseta da grife Hobo com a palavra “Aleluia” estampada nas costas. As suas mãos têm tatuadas a palavra “Amém”, com uma letra em cada dedo. Segurando uma Bíblia, ele começou seu testemunho refutando as críticas que sofre nas redes sociais de que ser DJ e dono de boate seria uma incongruência com a pregação religiosa. Em seguida, explicou os motivos de sua conversão. Primeiro, aceitou Jesus, sozinho, e sentiu estar sendo levado e orientado a um novo caminho. Depois foi batizado, há três anos e meio, na Igreja Pura Fé, que tem apenas uma unidade, localizada no Pacaembu. “[O fato de ter me convertido] Não quer dizer que deixei de ser DJ, de dançar. Hoje, sou muito mais leve tocando. Antes eu estava tenso, parecia nervoso. Estou mais tranquilo, mais leve, sorrindo. A minha relação com as pessoas está mais leve.” Ratier passou em quase todas as cadeiras para recepcionar as pessoas, estava visivelmente feliz.
Depois, Baby do Brasil tomou a palavra. A ex-integrante dos Novos Baianos, banda que oxigenou a música popular brasileira na década de 1970 unindo rock’n’roll a ritmos populares (samba, bossa nova, frevo, baião, afoxé), abriu seu repertório de canções gospel. Cantou Ruja o Leão, da compositora Talita Catanzaro (Sobre o trono de justiça/Eternamente Haverá um Rei/Ele voltará para governar/As nações em amor). Só no canal de Catanzaro no YouTube, o clipe dessa faixa soma 64 milhões de visualizações. Boa parte do público presente sabia a letra de cor.
Após a performance, Baby contou que, antes do culto, encontrou um “trabalho” na calçada do D-Edge, em alusão ao termo utilizado para simbolizar oferendas feitas nas religiões de matriz africana. Ela contou o episódio fazendo uma analogia às adversidades enfrentadas por aqueles que percorrem o caminho de tornar-se cristãos, mas ressaltou que “todas elas são vencidas porque Ele fortalece e dá forças ao longo da jornada”. “Quem sabe aquele rapaz que passou aqui fazendo isso, [um dia] vai estar aqui com a gente. Jesus vai laçar”, afirmou a cantora, que celebrou em êxtase a companhia de Ratier: “Eu estou com dono da balada.” Ainda durante sua pregação falou do poder do perdão e que, no caso de um abuso sexual na família, o ideal seria a vítima perdoar.
A interação entre a cantora e o empresário seguiu. Com o microfone em mãos, Ratier ignorou o racismo religioso da artista para se mostrar inclusivo. “Não é sobre religião, aqui é sobre o amor. Todos são bem-vindos.” Usou como exemplos a presença de sua mãe, que se converteu tardiamente ao cristianismo evangélico após passagens por igrejas do gênero, e a de um funcionário palestino que aderiu ao cristianismo recentemente.
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Baby do Brasil, então, falou sobre milagres capazes de serem vistos e sentidos através de Sarah Cardoso. Há nove meses, Cardoso – mulher de Ratier – sofreu uma parada cardiorrespiratória no pós-operatório de uma refação de uma cirurgia de lipo LAD, como são chamadas as lipoaspirações de alta definição usadas para definir a barriga. Sarah tem dado sinais de recuperação e não precisa mais do auxílio de aparelhos para respirar. Baby contou que ela tem respondido a comandos para piscar os olhos, sorrir e mexer os pés. “Ela está em processo de reabilitação”, disse Ratier à piauí, com os olhos marejados.
Ratier e Sarah se casaram em maio do ano passado no Surreal Park, em Camboriú, Santa Catarina, com a presença de quinhentos convidados. Baby do Brasil cantou na festa, onde o noivo também discotecou e banda Gipsy Kings foi outra atração. O local do casamento pertence ao Grupo Ratier, que além de boates, tem negócios nos segmentos de moda e pecuária. O avô de Ratier, José Antônio Pereira, fundou a cidade de Campo Grande. A D-Edge nasceu na capital sul-mato-grossense, para depois abrir unidades em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O evento, na segunda-feira (10), teve um começo inclusivo. Cultos evangélicos, sejam os pentecostais (Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil) ou neopentecostais (Lagoinha, Renascer, Universal), têm a tradição de louvores individuais ou em bandas. Baby do Brasil, uma das vozes mais célebres do país, cantou não só músicas religiosas. Entoou também No Woman, No Cry, de Vincent Ford e famosa na voz de Bob Marley. Até aparecer o pastor Pedro Santana.
Santana é um sujeito baixo, não ultrapassa 1,60 metro. Usava uma camiseta listrada branco e cinza, que realçava a sua barriga, calça jeans e um bigode saliente. Sua pregação tem um roteiro conhecido: mostra a história de alguém que tem a vida dominada por pecados, mas que, graças a um milagre divino, encontra a luz na religião. O arco da vitória e a redenção fazem parte do discurso de muitos líderes religiosos.
Santana contou que vivia na prostituição, atendia diversos clientes por semana, até que sofreu um problema grave de saúde – um “corrimento”. Ao sair de uma consulta no Hospital das Clínicas, em que a médica teria dito que seu problema era “incurável”, ele decidiu dar cabo de sua vida. Usou drogas e tentou se suicidar. Ao contar a história, durante a pregação, disse que pensou em pular do Viaduto do Chá, no Centro paulista. Depois mencionou a ponte Eusébio Matoso, na Zona Oeste, que atravessa o Rio Pinheiros, e, por fim, afirmou que planejava “se jogar” no Rio Tietê, na Zona Norte.
Apesar das imprecisões geográficas, Santana diz que estava em cima de uma ponte quando uma mulher intercedeu a mando de Jesus e o levou para uma reunião evangélica, onde tudo mudou. Ele disse ter sido transformista, com o nome Michele, ter usado silicone e feito programas nas ruas Augusta e Frei Caneca. Ao aceitar Jesus, enfim, se libertou dos pecados. “Deus me curou”, afirmou. Ele até fez uma piada. “Mona não morre, vira purpurina. Mas Jesus me pegou pelas mãos.” Hoje, é casado e pai de Saulo, também pastor. Uma fiel ali presente, que já esteve em duas reuniões com o pastor Santana, disse já ter ouvido o mesmo discurso de que ele é um egresso da prostituição e de sua vida como Michele, mas que a parte do problema de saúde era uma novidade. Antes de encerrar, Santana lembrou de mais uma história. “Eu já me hospedei ao lado do D-Edge e colocava as mãos na direção daqui dizendo: ‘Jesus, salva esses jovens.’”.
O discurso adotado por Santana, que se diz um ex-gay, já foi adotado por outros pastores. Mas ouvi-lo ali, no centro da pista de dança do D-Edge, tinha outro significado. A casa de música eletrônica sempre foi inclusiva. Às sextas, dia das noites Freak Chic que tinha Ratier no comando das pick-ups, havia toda sorte de público LGBTQIA+: gays, bi, lésbicas e trans. Era um ambiente onde essas pessoas se sentiam aceitas e podiam se expressar com segurança. Ver um pastor falar em “cura” no centro de uma boate que faz parte da memória afetiva de parte dessa população não deixa de ser frustrante. Depois do culto, foi servido um jantar para cerca de 25 convidados na segunda pista de dança. O cardápio teve salpicão de frango, alcaparras, peixe branco com leite de coco, filé mignon com molho roti e batatas rústicas. Para beber, refrigerante, suco e água. Nada de álcool.
Procurado pela piauí no dia seguinte ao culto, Ratier informou que Pedrinho, como o pastor Santana é chamado pelos amigos, não foi convidado para pregar – ele estava ali porque o seu filho iria ministrar a palavra. “Não tenho de fazer julgamento sobre a vida das pessoas. Quando me tornei evangélico, sempre olhei o Jesus que anda com todo mundo, que era próximo de Maria Madalena, que entrava em todos os lugares e que não tinha preconceito com nada. Esse é o Jesus pelo qual me apaixonei. Agora, generalizar para todo homossexual, acho que não cabe”, disse Ratier.
A palavra “cura”, ressaltou o empresário, pode se referir às questões da alma. “Ele se sentia doente pela situação de prostituição, independente da orientação sexual. É mais profundo a pessoa se sentir doente. Tenho certeza que existe muito pastor doente, doente por dinheiro, por exemplo, e que precisa de cura também. Não tenho controle sobre o que ele [Pedro Santana] falou. Jesus Cristo que ama a todos é o meu norte.”
Ratier tem ido todos os dias visitar a sua mulher no hospital. Durante o culto, ele relembrou o momento em que soube que ela havia sofrido uma parada cardiorrespiratória: “Foi como se eu tivesse tomado um murro do Mike Tyson na ponta do meu queixo. Para eu ficar de pé, foi muito difícil. Quando eu acordava, eu chegava a tremer de nervoso, um medo de encarar tudo isso. A fé que eu tenho hoje tem me transformado.” O empresário acredita na plena recuperação de Sarah e diz não recorrer a remédios para dormir. Ele afirmou que o D-Edge pode vir a ser palco de cultos uma vez por mês, a depender da demanda.