Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar – descobrindo o desconhecido
Os desencontros entre o documentarista e seus personagens
Depois de ser exibido na mostra Panorama da Berlinale, em fevereiro, e de participar em abril do Festival É Tudo Verdade, onde recebeu menção honrosa do júri oficial e foi considerado melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, de Marcelo Gomes, chegou quinta-feira passada às telas de dezessete cidades brasileiras – entre outras, Aracaju, Brasília, Curitiba, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.
Além desse circuito de abrangência nacional, Estou me Guardando… teve lançamento simultâneo no VoD da NET, onde pode ser alugado por 48 horas. Pouco divulgado, resta observar até que ponto essa disponibilidade online aumentará o alcance do documentário, e se afetará ou não o resultado da bilheteria.
No Rio, onde está sendo exibido em dois cinemas, cada um com uma sessão diária, três espectadores (contando comigo) assistiram a Estou me Guardando…, no dia da estreia, em uma dessas duas salas.
Neste sábado em que começo a escrever, é cedo para avaliar até que ponto Estou me Guardando… é capaz de atrair número expressivo de espectadores, mas o cinema quase vazio na primeira sessão não foi um bom augúrio. Especialmente levando em conta, além das credenciais do próprio documentário, a carreira de Gomes que inclui, entre outros, o excelente Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), e a farta recepção favorável da imprensa disponível na internet. Na mídia impressa, por sua vez, O Globo dedicou uma página inteira do Segundo Caderno ao filme no dia da estreia, incluindo uma crítica elogiosa com aplausos do bonequinho.
Por ironia, uma explicação simples para a ausência de espectadores, ao menos na sessão em que assisti ao filme, pode ser encontrada na própria narração do documentário, feita em off na primeira pessoa. Ao comentar a recepção que teve ao chegar para filmar a feira de domingo em Toritama, cidade no agreste pernambucano com população estimada em cerca de 44 mil pessoas, também conhecida como a capital do jeans, Gomes diz: “As pessoas se animam com a chegada da nossa equipe. Pensam que somos de uma tevê local e que vamos divulgar a feira. Explico que estamos fazendo um filme sobre o trabalho para ser exibido nos cinemas. Mas isso não desperta nenhum interesse.”
Essa mesma falta de sintonia entre quem chega para documentar e quem será observado pela câmera ocorre com frequência entre o objetivo de documentários ao serem exibidos e o interesse do público. Há outras razões, é claro, para maus desempenhos comerciais, algumas relacionadas à configuração do mercado exibidor, outras aos termos desiguais da competição com a produção estrangeira. Inegável, porém, é que, assim como os vendedores de jeans de Toritama ficaram indiferentes à equipe de filmagem, a maioria dos espectadores de cinema não é atraída por grande parte dos filmes produzidos no Brasil.
O barulho ensurdecedor do maquinário das grandes fábricas de jeans e das chamadas facções de fundo de quintal de Toritama causa ansiedade em Gomes, conforme ele mesmo admite na narração. Seu mal-estar é um sintoma de outro desencontro de perspectiva – a concepção do tempo dos fabricantes e a do documentarista. Para quem mora na cidade, o tempo coletivo é “preenchido por um trabalho sem fim”, enquanto Gomes define sua própria atividade como sendo a de “um fiscal do tempo alheio”.
A incompatibilidade absoluta de Gomes com a atividade incessante e barulhenta que se propôs a registrar é resolvida por um momento na montagem. Exercendo a onipotência própria de todo diretor, ele elimina o som ambiente que o perturba e substitui o ruído por uma trilha musical – nada menos que o arquiconhecido segundo movimento, Largo, do concerto para piano e orquestra nº 5 em Fá menor, de Bach. A angústia de Gomes persiste, porém, provocada pela repetição dos movimentos manuais que o levam a se dizer “tomado pela lembrança” do seu pai.
O concerto de Bach associado à memória da figura paterna remete o espectador ao início do filme. Na abertura, depois dos créditos iniciais, com a tela preta Gomes relaciona em voz off algumas cidades próximas a Toritama, depois relata que seu pai era inspetor fiscal na região e que ele, ainda criança, o acompanhava nessas viagens. Descreve, em seguida, “o mundo rural” daquele tempo com “feiras livres, plantadores de milho e feijão, e criadores de bode, quase nenhum barulho de carro e poucas pessoas na rua”. E conclui: “Esse é o agreste que eu guardo na minha memória de infância.”
Imediatamente após a palavra infância, é feita em corte a passagem da tela preta para a primeira imagem do filme que surge ao som dos acordes iniciais do Largo do concerto de Bach: uma série de travellings passa por gigantescos outdoors publicitários de modelos – homens e mulheres – recortados tendo ao fundo a secura rochosa do Agreste. É uma sequência impactante, sem dúvida, mas em relação à qual é preciso não esquecer que ao som de Bach qualquer imagem fica linda. Efeito fácil como esse leva Estou Me Guardando… a começar com um pequeno tropeço.
Gomes, cineasta pródigo, volta a Toritama “por motivo bem diferente daquele que trouxe” seu pai – vem em busca das suas lembranças bucólicas da infância. Ao chegar, porém, quem o acolhe dando boas vindas à capital do jeans é o outdoor da Victhara, uma das mais de cem marcas locais de roupa de brim. A maioria da população tem atividade fabril intensa em jornadas que podem ir de sete da manhã às dez da noite. Incomodado, Gomes tenta “escapar desse ritmo acelerado”. Percorre a área rural, onde encontra paisagens como as de sua infância. É lá que conhece seu João, “a única pessoa em Toritama que ainda tem tempo para olhar o céu e esperar a chegada da chuva”. A cidade da infância não existe mais e o tom do filme passa a ser o de um lamento nostálgico, acentuado pela cadência pausada do narrador.
À série de desencontros descritos acima que acontecem em Estou Me Guardando…, vêm se somar ainda outros dois. Aparentando contrariar a expectativa de Gomes, uma moradora considera Toritama “uma mãe”, e para outra “a vida da gente não é ruim, não. Quem pensar que a vida da gente é ruim tá enganado, por que não é todo mundo que tem o privilégio de ter saúde, trabalho, ganhar o seu dinheiro […] Gente que eu vejo passando aí, na televisão, na África, morrendo de fome, os países aí fora em guerra e, graças a Deus, aqui onde a gente mora não tem isso. Aí, isso é uma vida ruim? É nada. Ruim é para quem morre.” O que parece perturbar o documentarista é motivo de satisfação para essas mulheres trabalhadoras.
Outra surpresa para Gomes é a tradição local de passar o carnaval à beira-mar. Trabalhadores e trabalhadoras vendem o que for preciso – máquina de costura, moto, geladeira etc. – para juntar o dinheiro necessário à viagem e estadia na praia. Gomes não os acompanha. Deixa o registro em vídeo das férias por conta dos próprios veranistas e fica com sua equipe na cidade vazia, onde nas ruas desertas, sem barulho de carros e máquinas finalmente encontra a Toritama de 40 anos atrás.
“Eu faço cinema para vasculhar o que eu não conheço” Gomes declara no catálogo deste ano do Festival É Tudo Verdade. Em Estou Me Guardando… ele tentou recuperar lembranças da infância que guardara na memória. O que encontrou foi uma realidade diferente e desconhecida.
PS.: Nos quatro primeiros dias em cartaz (11 a 14 de julho), 1746 pessoas assistiram a Estou Me Guardando… em 19 cinemas. Em média, 92 espectadores por sala. Resultado nada animador que confirma a falta de interesse sinalizada no dia da estreia.
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