Ji Suk Guedes, diretora do Centro de Educação de Jovens e Adultos Professor Paulo Freire, em Manaus FOTO: ACERVO PESSOAL
Faltam só 66
Na volta às aulas, diretora de colégio público percorre as ruas de Manaus para resgatar estudantes que abandonaram a escola durante a pandemia
Manaus retomou esta semana o ensino apenas presencial nas escolas da rede pública, como fizeram outras capitais pelo país. Até o dia 26 de agosto, 80% da população manauara com 12 anos ou mais havia tomado a primeira dose da vacina contra a Covid-19, enquanto apenas 27% tinham completado o ciclo vacinal. No Centro de Educação de Jovens e Adultos Professor Paulo Freire, como em boa parte das escolas brasileiras, o último ano foi marcado pela evasão escolar e por perdas de aprendizado que ainda não foram totalmente dimensionadas. Mais do que outras modalidades de ensino, a educação de jovens e adultos (EJA) é afetada por fatores como o desemprego – já que muitos alunos trabalham – e a perda de interesse dos estudantes. A professora Ji Suk Guedes, diretora do colégio, conta o que ela e sua equipe fizeram para manter os alunos estudando durante o isolamento e como agora estão se esforçando para achar aqueles que largaram a escola. Como no filme Nenhum a menos, em que uma jovem professora luta para não perder seus alunos, Guedes tem corrido atrás dos estudantes para trazê-los de volta à sala de aula.
Em depoimento a Luigi Mazza
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Sou professora da rede pública há mais de vinte anos. Nasci aqui em Manaus, filha de pai coreano e mãe brasileira, e a vida toda trabalhei com a alfabetização de crianças. Até que no ano passado, no meio da pandemia, fui aprovada em um processo seletivo e mudei totalmente de área: virei diretora de uma escola que ensina jovens e adultos – o Centro de Educação de Jovens e Adultos Professor Paulo Freire. A escola, que faz parte da rede estadual, fica no centro comercial de Manaus. Oferecemos aulas para quem não cursou os anos finais do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano) na idade apropriada. São pessoas de várias faixas etárias que, em algum momento da vida, por alguma razão, pararam de estudar e não chegaram ao ensino médio. É um trabalho muito desafiador, mas também apaixonante. Nossos alunos têm de 15 até 70 anos de idade.
Quando assumi a escola, em junho de 2020, as aulas estavam totalmente remotas. Fazíamos tudo pelo WhatsApp. Nós temos 25 turmas, e cada uma delas tem um grupo de mensagens com alunos e professores. Quem administra os grupos sou eu. Gosto de ver os nomes de quem está participando. Quando um deles sai da turma, eu vejo quem foi, tento falar com a pessoa, fazer com que ela volte. Naquela época, foi uma luta para inserir todo mundo nos grupos – alguns alunos tinham trocado o número de telefone, então simplesmente não conseguíamos achá-los. Outros trocaram de endereço. Até hoje, não conseguimos contato com todos os alunos. E, dos que estavam no grupo, só metade participava efetivamente das atividades. Aos poucos, com muito convencimento, fomos aumentando esse percentual.
Em setembro do ano passado, quando a pandemia arrefeceu, passamos para o ensino híbrido, com aulas online e presenciais. Muitos alunos estavam temerosos e não quiseram voltar à escola, assim como alguns professores. Mas conseguimos fechar o ano letivo, entramos no recesso, e estava tudo previsto para voltarmos a ter aulas 100% presenciais no começo de 2021. Foi então que, de repente, chegou a segunda onda da pandemia em Manaus, e tudo foi por água abaixo. Voltamos a falar com os alunos somente pelo WhatsApp.
Há pouco tempo, em junho, retomamos o modelo híbrido. E agora, no dia 23 de agosto, por decisão da Secretaria Estadual de Educação, voltamos ao ensino totalmente presencial em Manaus. No semestre passado, nosso colégio tinha 743 alunos. Neste semestre, estamos com 677 até agora (mas as matrículas continuam abertas, então esperamos aumentar esse número). Estamos lutando muito para trazer todo mundo de volta para a sala de aula.
A evasão escolar sempre foi alta no ensino de jovens e adultos. O aluno precisa estar motivado, precisa ter vontade de aprender, de concluir os estudos. Nunca foi fácil, e tudo piorou na pandemia, ainda mais com a situação que vivemos aqui em Manaus. Até hoje, mesmo com todo o nosso esforço e com o programa Busca Ativa Escolar, adotado pela secretaria, há cerca de trinta alunos com quem não conseguimos nenhum contato desde o começo da pandemia. Não sabemos o que houve com eles.
Como a nossa escola fica no centro da cidade, temos estudantes de vários lugares diferentes. Alguns trabalhavam aqui perto e estudavam no turno da noite, depois do expediente, mas muitos perderam o emprego. Temos várias estudantes de vinte e poucos anos que são mães e chefes de família, e algumas delas não quiseram voltar às aulas por medo de contaminar suas famílias. Uma aluna nossa morava morava em Maués, município do interior do estado, e ficava na casa da tia, aqui na capital, só para poder estudar. Quando veio a pandemia, ela voltou de vez para o interior. Largou os estudos.
Percebo que a evasão tem sido maior entre os jovens, sobretudo os mais pobres. Como muitas famílias ficaram sem renda, eles tiveram que escolher: ou botavam crédito no celular para acompanhar os conteúdos no WhatsApp, ou se alimentavam. Outros tinham que dividir o celular com os pais e com os irmãos, então você imagina a situação… Na semana passada, a mãe de dois alunos que estudam aqui veio conversar com a nossa pedagoga. Nós queríamos saber por que os filhos dela não estavam frequentando as aulas presenciais. Ela explicou que era porque eles não tinham calça para vestir e nem material escolar, além de quase não comerem direito. Como você reage a uma explicação dessas? Nós entregamos para ela o kit escolar, reforçamos que na escola eles teriam acesso à merenda. A calça, claro, é uma formalidade do colégio, não uma obrigação. Mas ela conseguiu doações, e agora eles estão frequentando as aulas. São situações difíceis.
Estamos fazendo o possível para estimular os alunos a virem à escola. No começo do mês, aproveitando a semana do Dia do Estudante, fizemos sorteios. A cada dia sorteávamos dois “ranchos” (cestas básicas), e todos que estivessem no colégio participavam. Também fizemos um bingo para sortear cadernos e canetas. Percebemos que deu resultado, que mais pessoas participaram. Mas ainda é preciso mais. Agora, nos primeiros dias de aula totalmente presencial, só 30% dos alunos matriculados vieram para a escola, em média.
Na semana passada, eu e três professoras fizemos uma carreata no entorno do colégio, passando por várias ruas do bairro Presidente Vargas, que fica aqui perto. Nós fomos a pé, distribuímos panfletos e avisamos a todos sobre a retomada das aulas. Meu marido, que trabalha como motorista, pegou nosso carro – um Chevrolet Agile prateado – e nos acompanhou. Pusemos uma caixa de som no porta-malas, e ele falou no microfone, dando bom-dia e avisando que a escola estava de braços abertos. Acordamos o povo – isso foi de manhã cedo –, tinha gente indo comprar pão. As pessoas reagiram bem, nos receberam para conversar. Só não ficamos mais tempo porque caiu uma chuva daquelas. Também fizemos um anúncio numa rádio FM local convocando os alunos para a volta às aulas.
Temos uma aluna de 66 anos que estava apenas no ensino remoto. Ela não queria retornar à sala de aula. O professor com quem ela tinha mais proximidade a convenceu, e ela veio aqui esta semana. Quando chegou na escola, desmanchou em choro, porque o pai dela havia morrido durante a pandemia – não de Covid-19, mas de câncer. Ela é finalista – ou seja, está prestes a terminar o ensino fundamental e passar pro médio –, então eu disse para ela não desistir. Ela concordou e está frequentando as aulas, seguindo os protocolos.
Quando retomamos parcialmente as aulas presenciais em 2020, havia muito medo, muita contestação devido ao momento que vivíamos. Agora, com o avanço da vacinação – e com os protocolos de saúde, que estamos seguindo rigorosamente –, acredito que estamos mais tranquilos para o retorno. A escola precisa desse contato. Aprendizagem é uma troca diária, e aqui, principalmente, como lidamos com pessoas mais velhas, isso se faz ainda mais necessário. É preciso olhar no olho, falar, tirar dúvidas ao vivo. Pelo WhatsApp nós passamos exercícios, mas não vemos de que forma são feitos, nem as dificuldades que o aluno teve. Alguns alunos se fecham por vergonha. Eles têm medo de fazer perguntas no grupo e todo mundo rir. Na sala de aula, a gente percebe pelo olhar do aluno que ele está tendo dificuldade, e aí nos aproximamos e atendemos individualmente.
Temos alunos de todo tipo. Alunos adolescentes, alunos idosos, alunos com deficiência, alunos que infringiram a lei. Alguns precisam de acompanhamento sistemático, porque ficaram muitos anos sem estudar e não conseguiram ter um bom resultado no ensino remoto. Por isso nós estamos empenhados em fazer com que eles voltem à escola. Queremos fazer, no dia 16 de setembro, uma gincana para comemorar o centenário de Paulo Freire, o educador que dá nome ao nosso colégio. A turma que tiver o maior número de alunos participando vai sair na frente na pontuação. A gente quer mobilizar o aluno para que, através da amizade, ele mesmo ajude a resgatar os seus colegas de classe.
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