Fazendo a egípcia
Bolsonaro estremece relações comerciais com o mundo árabe e abala, sem querer, o negócio de escovas progressivas brasileiro
A baiana Karla Leite é uma oftalmologista de visão. Em mais uma de suas vinte viagens ao Egito, país que visitou pela primeira vez duas décadas atrás, foi com uma amiga a uma feira de cosméticos para cabelos. Pura curiosidade. As madeixas das 50 milhões de egípcias ainda são inspiradas na reluzente Cleópatra de Elizabeth Taylor, no filme de 1963, em sua moldura negra e muito lisa. Chegando na tal feira, Leite bateu o olho nas embalagens de produtos para alisamento de fios rebeldes, as mal-afamadas progressivas. Invariavelmente, a inscrição era de “queratina brasileira”. Leite se arretou. Com olhar de lupa, viu que as marcas não só não eram brasileiras como não eram de queratina. Era tudo formol. Oxe. A amiga virou sócia, elas procuraram um outro amigo, um químico com 25 anos de atuação na indústria de beleza, e Leite criou, cinco anos atrás, a Flora Brazil, fabricante de progressiva sem formol, sem álcool, 100% made in Bahia, com direito a bandeira verde-amarela no rótulo e tudo. Seu principal mercado: o Egito.
O presidente eleito Jair Bolsonaro usa óculos. Tira e põe as lentes ao longo de seus vídeo-pronunciamentos nas redes sociais. Num assunto não relacionado, quatro dias depois de ser eleito, Bolsonaro deu uma entrevista ao jornal israelense Israel Hayom e declarou que transferiria a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. “Israel é um Estado soberano. Vocês decidem que é sua capital e nós vamos segui-los”, disse o futuro presidente. Horas depois, ele foi ao Facebook, seu canal oficial de comunicação, e ao Twitter, e postou: “Como afirmado durante a campanha, pretendemos transferir a Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém. Israel é um Estado soberano e nós o respeitamos.” Bolsonaro mirou na diplomacia trumpiana que o inspira e acertou em cheio no comércio exterior. Lateralmente, chuviscou ainda nos cabelos lisos e sedosos das egípcias.
A reação à declaração de Bolsonaro foi imediata. No dia 5, o governo do Egito cancelou uma reunião que teria com o atual ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, e empresários brasileiros do ramo de defesa, equipamentos hospitalares, cimento, alimentos. Sete deles, de uma missão de vinte empresários, já estavam no Cairo para o encontro. O governo egípcio alegou “problemas na agenda”. Membros do Itamaraty entenderam como um recado: mexer com uma canetada nas questões entre Israel e Palestina pode representar uma ameaça ao comércio com os países árabes. “Este é um assunto internacional muito melindroso”, diz Karla Leite, que também tem uma clínica de trânsito em Salvador e entende de diplomacia. “O Brasil não tem por que entrar nessa seara.”
Durante toda a campanha presidencial, Bolsonaro mencionou seu apreço por Israel. Na avenida Paulista, na concentração de bolsonaristas em frente ao prédio da Fiesp para a comemoração da vitória nas eleições, além da bandeira brasileira, tremulava uma bandeira israelense. A maior parte da comunidade internacional não reconhece Jerusalém como capital de Israel. Os palestinos reivindicam parte da cidade como pertencente a seu Estado. E os meandros desse conflito não cabem num tuíte.
No ano passado, o presidente Donald Trump anunciou que moveria sua embaixada para Jerusalém. Bolsonaro quer tanto se aproximar de Trump que, além de copiar o movimento, nomeou, na quarta-feira, dia 14, para ser seu chanceler o diplomata Ernesto Araújo, embaixador com 29 anos de carreira e atual diretor do Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores. Em texto que escreveu no ano passado, de título “Trump e o Ocidente”, Araújo defende que o Brasil precisa atuar como uma nação individual, longe de blocos comerciais. E vai muito além. “Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana. (…) Somente Trump pode ainda salvar o Ocidente.” O texto agradou o filósofo-que-quer-ser-embaixador Olavo de Carvalho. E a equipe de Bolsonaro.
Mas o Brasil é muito mais dependente do comércio árabe do que os Estados Unidos. Quando o governo egípcio cancelou a agenda com o chanceler, Bolsonaro estremeceu. Sua primeira reação foi a de abandonar uma entrevista coletiva em que foi questionado sobre o assunto. Horas depois, voltou atrás e disse que, apesar do post nas redes sociais e de suas declarações, aquela não era uma decisão final. O recuo do presidente eleito não foi só por conta das cerca de 3 mil unidades de escova progressiva mensais enviadas por DHL para as egípcias. O Brasil exportou para os 22 países da liga árabe, que inclui o Egito, cerca de 13,5 bilhões de dólares em produtos em 2017. No setor de alimentos, o mundo árabe representa hoje o 2º maior mercado dos produtos brasileiros. Entre os maiores exportadores para o Egito, estão gigantes como BRF Foods, JBS, Copersucar e Minerva.
“A repercussão da mudança da embaixada e, principalmente, o não reconhecimento do estado palestino por parte do Brasil pode atingir toda a região árabe, interrompendo nosso fluxo crescente de exportação para lá”, diz José Flosi, responsável pela área de exportações da empresa de equipamentos médicos Fanem, acrescentando que esse seria um retrocesso nas posições anteriores do Brasil. Cerca de 40% da produção da empresa é destinada a países árabes. A empresa ia mandar um representante para a reunião no Cairo, mas foi avisada a tempo de cancelar a viagem.
Como diz a visionária Karla, esse é um assunto que provoca “melindres”. A comunidade árabe apoia os palestinos e uma mudança de visão do Brasil sobre o tema vai ter consequências. O presidente da Câmara de Comércio Árabe no Brasil, Rubens Hannun, diz que não acredita que haverá uma interrupção abrupta de comércio, mas teme que o crescimento das vendas perca o ritmo. “É uma questão puramente diplomática. Quando há ruído, a tendência é sempre de a outra parte buscar caminhos alternativos, abrindo espaço para a concorrência”, diz Hannun. Nos últimos sete anos, a exportação brasileira para os países árabes cresceu sete vezes. A expectativa é de que chegue a 2020 em 20 bilhões de dólares. Ou era.
Karla Leite teme que, para além das fronteiras egípcias, mercado para o qual tem permissão da Anvisa local para vender por mais oito anos, as de um novo mercado que estava prestes a se abrir possam ser muradas: as do Qatar. A Flora Brazil está prestes a conseguir as licenças para vender seus produtos no país. Leite conta que, para conquistar os mercados árabes, a empresa tomou o cuidado de seguir certos preceitos religiosos, com o uso de queratina de origem vegetal e não animal, além de eliminar produtos químicos como formol. “No Egito, a Flora é a única empresa com licença de grau 2 para a venda de cosméticos”, diz Leite. Esse tipo de licença é para produtos que modificam o corpo ou, no caso, os cabelos. “Este é um mercado que eu não quero perder. Apesar dos véus, as mulheres árabes são super vaidosas, porque querem arrumar marido. Se o país é poligâmico, a vaidade é maior ainda, porque aí a competição pela atenção do marido requer ainda mais cuidados com a beleza.” Taí um ponto de vista que talvez convença Bolsonaro a deixar a embaixada em Tel Aviv.
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