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    "Manas é um filme sobre violências e silêncios. Sobretudo o silêncio que perpetua a atuação do abusador." Foto: Divulgação

questões cinematográficas

Ficção contra o silêncio

Diretora escreve sobre a pesquisa e os dilemas que resultaram em Manas, filme que retrata a violência contra mulheres e meninas da Ilha do Marajó

Marianna Brennand, especial para a piauí | 26 out 2024_08h33
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Em depoimento a Amanda Gorziza.

 

Soube pela primeira vez do que se passava na Ilha do Marajó em 2013. Eu estava em São Paulo, lançando o documentário que dirigi sobre meu tio-avô, o artista plástico Francisco Brennand. Em um encontro com a Fafá de Belém, ela me contou dos casos de exploração sexual contra crianças e adolescentes que vivem às margens do Rio Tajapuru. Meu primeiro ímpeto como documentarista, ao ouvir esse relato, foi querer fazer um filme de denúncia.

Ao me aprofundar no assunto, porém, percebi que seria impossível filmar um documentário. Eu jamais poderia colocar diante das câmeras mulheres e crianças que haviam sofrido traumas tão profundos. Pedir a elas que recontassem os abusos seria expô-las a mais uma violência. Percebi, além disso, que a ficção me daria a oportunidade de abordar o assunto com mais profundidade. Meu desejo era fazer um filme contundente, capaz de gerar empatia no espectador e, se possível, alguma transformação.

Manas conta a trajetória de Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem de 13 anos que vive na Ilha do Marajó junto ao pai, Marcílio (Rômulo Braga), à mãe, Danielle (Fátima Macedo) e três irmãos. À medida que Tielle (como ela é chamada) vai amadurecendo, ela se vê presa entre dois ambientes abusivos, a casa e a balsa – isto é, as embarcações onde a meninas da região vendem produtos e frequentemente são exploradas sexualmente. Encurralada, ela decide confrontar o ambiente violento de sua família e da comunidade onde mora. O título do filme é uma expressão muito corriqueira no Pará, usada com afeto. A gente não quis que ele fosse traduzido ao ser lançado em outros países. Manas tem um certo borogodó, e também um significado muito particular.

No final de 2014, inscrevemos o projeto do filme em um edital de desenvolvimento de roteiro. Ele foi aprovado, e dois anos depois fizemos a primeira viagem de pesquisa ao Marajó. Eu estava acompanhada da roteirista Antonia Pellegrino e da pesquisadora Laura Liuzzi. Lá, nós entendemos que a exploração sexual nas balsas era somente parte do problema. Muitas meninas marajoaras sofriam também abusos de parentes, em casa. 

Tendo em mãos a primeira versão do roteiro, retornei à ilha mais algumas vezes, para aprofundar a pesquisa. Esse processo durou, ao todo, quase oito anos. Montamos uma sala de roteiro da qual participaram os roteiristas Felipe Sholl e Marcelo Grabowsky, além de mim e da Carolina Benevides, produtora do filme. Foi um período de muitas trocas e muita escuta, que exigiu uma grande disponibilidade emocional dos integrantes da nossa equipe.

Nesse meio tempo, o Marajó virou alvo de muitas fake news sobre abuso infantil. Uma discussão sobre direitos humanos básicos se transformou num debate político-partidário. Isso não apenas dispersa o foco do poder público, como também estigmatiza a população local. Tentamos retratar o problema com ética e delicadeza.

A irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante e o delegado Rodrigo Amorim, ativistas dos direitos humanos que atuam na Amazônia, deram contribuições fundamentais ao filme. Eles foram o nosso farol ao longo da pesquisa e inspiraram a personagem Aretha, interpretada pela Dira Paes. Contamos também com a colaboração de psicólogos, conselheiros tutelares e consultores de diversos assuntos. Submetemos o roteiro a uma psicanalista, para que ela nos ajudasse a entender as consequências do trauma no comportamento de uma pessoa. 

Em 2020, o projeto foi selecionado para participar do Jerusalem Sam Spiegel International Film Labs, um laboratório de cinema que nos deu a oportunidade de explorar novas camadas emocionais dos personagens e lapidar a estrutura narrativa do filme. O roteiro amadureceu. Recebemos, nesse laboratório, o prêmio Emerging Filmmaker (cineasta emergente, em tradução livre). Sentimos que estávamos finalmente prontos. As filmagens começaram em setembro de 2022 e duraram oito semanas. O roteiro, por sua vez, continuou vivo até o último minuto, passando por ajustes.

Era muito importante, para mim, que o filme transmitisse verdade – não só por meio do roteiro, mas também visualmente. Eu queria que o espectador tivesse a sensação de estar vendo a vida se desenrolar à sua frente. Optamos por não filmar no Marajó por motivos de logística e segurança, então tivemos que recriar as locações em ilhas próximas a Belém, como Ilha Grande e Ilha do Murucutum. Um trabalho detalhista, conduzido pelo nosso diretor de arte, Marcos Pedroso, a figurinista Kika Lopes e o diretor de fotografia, Pierre de Kerchove, que trouxeram veracidade à obra.

Parti da premissa de que era fundamental trabalhar com atores e atrizes não profissionais. Isso nos permitiu captar atuações mais naturais. Fizemos um longo processo de casting, liderado pela Anna Luiz Paes de Almeida. Ela e a Amanda Ribeiro, uma produtora local, selecionaram nosso elenco infantil. Todas as crianças que aparecem no filme são de Belém e das regiões ribeirinhas do entorno da cidade. Nenhuma delas tinha atuado até então. 

A Jamilli, que interpreta Marcielle, chamou nossa atenção desde o primeiro momento. Seu olhar é forte, profundo. Sua capacidade de concentração, de se colocar com firmeza diante de um universo desconhecido, era impressionante. Ela tinha somente 13 anos. Foi sua primeira experiência como atriz e a minha primeira como diretora de ficção. Recebi o apoio de atores experientes como Dira Paes, Fátima Macedo e Rômulo Braga. Vê-los mergulhar de forma corajosa em personagens tão complexos, depositando sua confiança em mim durante todo o processo, foi uma das experiências mais especiais da minha vida.

 

A conexão entre os atores que compõe a família de Marcielle foi fruto do trabalho do René Guerra, nosso preparador de elenco. Foram necessárias oito semanas de ensaios em Belém, conduzidos de forma cuidadosa. Informamos aos pais das crianças o tema do filme e o perfil de cada personagem, mas em nenhum momento as meninas leram o roteiro. Antes de cada filmagem, eu passava a cena com elas, lia os diálogos e filmávamos em seguida. Meu objetivo era preservar a naturalidade e a espontaneidade da atuação. Além disso, eu queria que o processo fosse leve, para preservar a integridade emocional do nosso elenco infantil.

Tentamos ao máximo filmar em ordem cronológica, para ajudar a Jamilli a navegar pelas emoções que vão se acumulando. Quando a história começa, Marcielle é cheia de vida e inocência. Ao longo do filme, ela manifesta física e emocionalmente as consequências das violências que passa a sofrer. Incorporamos à filmagem a variação das marés como um elemento narrativo. Nas primeiras cenas, antes dos abusos, a maré aparece cheia. Quando os abusos começam a acontecer, a maré aos poucos se retrai, revelando troncos e galhos.

Manas é um filme sobre violências e silêncios. Sobretudo o silêncio que perpetua a atuação do abusador. Vejo o filme como uma oportunidade de contar uma história sobre o feminino pela perspectiva de uma mulher. O maior desafio foi tecer a história de Tielle com delicadeza, mas sem perder a pungência. Recorremos a elipses para não retratar cenas de violência sexual, o que só foi possível graças à montagem rigorosa feita pela Isabela Monteiro de Castro. A ficção me permitiu tratar de um tema violento sem expor a violência.

Optei por não utilizar trilha-sonora. Queria causar uma imersão sensorial no espectador por meio do desenho de som, trabalhado pela Miriam Biderman. No início, o som é bastante realista. Ouv-se barulhos da floresta, da água, o craquelar da madeira. Mas ele se torna mais subjetivo, menos literal, à medida que o mundo interior da Marcielle se transforma. 

O filme foi selecionado para o Festival de Veneza, especificamente para a mostra Giornate degli Autori, que dá espaço a novos talentos do cinema. Na nossa sessão de estreia, em 2 de setembro, Manas foi ovacionado. Vencemos o prêmio de melhor direção da mostra. O júri presidido por Joanna Hogg, diretora e roteirista inglesa, ressaltou a importância da história que contamos no filme, porque ela é brasileira, mas ao mesmo tempo universal.

Na véspera da decisão, soubemos que a deliberação do júri seria transmitida ao vivo. Combinamos de assistir juntos, no meu quarto no hotel. Mas fomos surpreendidos: por volta das nove da manhã, no dia 6, recebemos a informação de que a sessão, marcada para dali a poucos minutos, seria aberta ao público. Corremos até lá, atrasadas, e chegamos no momento exato em que os jurados deliberavam sobre o Manas. Foi emocionante. Além de levar o prêmio para casa, tivemos o privilégio de saber por que razões havíamos vencido.

Manas trata da exploração e abuso sexual infantil no Marajó, mas esse é um tipo de violência que não reconhece fronteiras – está em todas as partes do mundo. O abuso intrafamiliar, sobretudo, está ao nosso lado. É por meio do cinema que consigo lançar luz sobre um tema que, para mim, é uma missão de vida. Espero que Manas possa encorajar mulheres a quebrarem os silêncios que cercam todo tipo de violência que nos é imposta.

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