Detalhes do embate de estilos na eleição paulistana Imagens: Bruno Santos/Folhapress (capuz de Datena), reprodução (camisa de Boulos), Ato Press/Folhapress (mão de Marçal) e reprodução (jaqueta de Tábata)
No xadrez do figurino, candidatos não dão ponto sem nó
Boné rebelde, jaqueta boa de briga, 50 tons de azul: nenhuma peça é inocente na corrida eleitoral
Proibido nos tribunais do país, no Congresso Nacional e em muitas salas de aula, o boné se tornou um símbolo da rebeldia, em graus que podem ir da irreverência à afronta. Nos últimos anos, foi adotado por nomes de extrema direita que se colocaram como outsiders da política: o magnata Donald Trump, em geral com o bordado “faça a América ser grande de novo”, e mais recentemente Nayib Bukele, presidente de El Salvador (que não raro deixa a aba para trás).
E virou o acessório mais comentado de Pablo Marçal, o candidato do PRTB à prefeitura de São Paulo. Nos debates, não foi a única prop (adereço), como o pessoal da tevê e do teatro chama os objetos usados em cena: teve também a carteira de trabalho e a mão engessada ou enfaixada após a cadeirada do Datena. Mas o boné azul escuro com a letra M apareceu como o item da disrupção, da mensagem do candidato disposto a bagunçar as regras tão formais e distantes do público, cheias de palavras difíceis e da tal de réplica para lá e tréplica para cá. “É como o Bolsonaro fez, com aquelas coisas das roupas mal ajambradas, falando errado, o leite condensado escorrendo na mesa, todas as imagens que dizem ‘não sou político’”, comenta Thais Farage, consultora de estilo e pesquisadora em moda e gênero pela USP.
Nas últimas semanas, não foi difícil encontrar o item nas ruas de São Paulo, à venda em bancas de jornal ou na cabeça de transeuntes. Em 30 de setembro, uma segunda-feira, uma mulher almoçava na praça de alimentação do Shopping Pátio Higienópolis usando o boné com o M na testa. “Toda vez que algum candidato consegue imprimir um símbolo muito forte, isso reverbera muito bem: o vermelho do PT, a camisa verde e amarela do Bolsonaro… Códigos muito rápidos de serem reproduzidos e muito rápidos de serem entendidos.”
Marçal usou o item no debate do Estadão e do portal Terra e no programa Roda Viva, da TV Cultura. No debate da TV Globo, baixou algumas oitavas no tom e deixou o topete com gel à mostra.
O “boné do Marçal” é vendido na internet pelas redes sociais e em sites de e-commerce. No Facebook, a página “TV Sulanca Caruaru” traz um vídeo onde André Salgado, proprietário de uma confecção na cidade de Caruaru (PE), exibe os tais bonés e avisa que estão disponíveis no atacado e no varejo, com envios para todo o Brasil. Já no Mercado Livre, as ofertas são numerosas, com preços variando de 29 reais a 103 reais a unidade. Alguns enviam como brinde do boné uma réplica da carteira de trabalho impressa – uma folha de sulfite dobrada na cor azul com o brasão da República e o texto “carteira de trabalho”.
A oferta mais cara, anunciada como “Boné Pablo Marçal Premium Top De Linha”, tinha selo de “mais vendido” (até o fechamento desta reportagem). Na área de perguntas e respostas sobre o produto, uma pessoa reclamava que só o frete para enviar para Pernambuco sairia em torno de 90 reais. Outro comentarista fazia troça com os potenciais compradores: “Boa tarde, o boné já vem com cadeirada inclusa, ou tem que tomar por fora?”
Outros itens do figurino dos candidatos ajudam a enxergar parte da estratégia das campanhas.
Logo no começo da campanha, Tabata Amaral, do PSB, virou assunto nas redes sociais com vídeos nos quais ela associava Marçal com o crime organizado. Ela aparecia usando uma jaqueta preta em vídeos cuja estética lembra a de documentários do estilo true crime, o que rendeu o apelido de “Dark Tabata”. A jaqueta, que é da marca Amaro e lembra couro (o site da marca informa que a “Jaqueta Leather Special” é feita de 100% poliéster revestido de poliuretano), emprestou para a paulistana uma imagem de coragem, com inspiração declarada na personagem Carrie Mathison, a investigadora obsessiva vivida por Claire Danes na série Homeland.
Nada está ali por acaso. “A roupa é um meio de comunicação. Quem está em campanha quer ser visto. É o contrário de uma crise”, diz Filipe Coutinho, proprietário de uma empresa de gerenciamento de crises em Brasília. Para ele, as roupas falam tanto que no caso de uma entrevista em um momento crítico, por exemplo, tudo é pensado para não chamar a atenção. “Já em campanha, o candidato está vendendo um sonho. Você escolhe uma avenida para percorrer e a roupa é um caminho nesta avenida.”
Thais Farage concorda que eleições guardam semelhanças com uma ação de vendas. “É como se a gente tivesse vendendo um produto, que tem que ter a ver com a embalagem que ele montou. Fica redondo, é palatável, as pessoas entendem rápido.”
Sendo assim, as escolhas de roupas para os debates contam muito. No caso de Tabata, a candidata tem aparecido usando alfaiataria e cores mais sóbrias, como branco e azul marinho, e detalhes nas roupas que passam mensagens de assertividade. “A Tabata tem uma coisa muito fofa, delicada, muito menina. Nesta eleição ela tá indo pra cima com códigos de força, usando braceletes rígidos, ombros estruturados”, avalia Farage.
Tanto para ela quanto para a consultora de moda Camila Kishimoto, a evolução da candidata é positiva. “Ainda mais por ser mulher, né? Parece que só pelo fato de você ser mulher você já está inadequada [aos olhos de muitos].” Há, porém, um longo caminho a percorrer. “Essa construção já deveria ter começado [antes], até para a própria Tabata se sentir à vontade neste lugar. Ela ainda não incorporou totalmente esta mulher [forte]”, opina Camila, que trabalhou como consultora de estilo para a campanha para presidente de Simone Tebet, atual ministra do Planejamento e Orçamento do Brasil no governo Lula.
“Eu sinto que falta um pouco de personalidade ainda. Fez toda a matemática certa, mas o que é seu de verdade? Quando a gente fala da Erika Hilton, da Anielle [Franco], da Marina Silva, a gente vê uma verdade ali”, diz Farage.
O veredito é parecido para Guilherme Boulos, candidato do Psol. Os consultores de estilo avaliam que Boulos evoluiu. Na eleição para presidente, em 2020, era mais comum ver o candidato de camisa, muitas vezes com as mangas dobradas. “Boulos fez essa virada muito marcante que foi começar a usar paletó. Ele tá pro jogo. E o paletó tem essa função: é uma armadura, uma moldura que diz agora que o negócio ficou sério”, analisa o consultor de estilo André do Val. A equipe do candidato disse à piauí que Boulos passou a adotar o visual do terno quando virou deputado federal, por conta do protocolo exigido no cargo.
Não é difícil imaginar que a estratégia de campanha do candidato tente puxar sua imagem para o espectro mais tradicional, distanciando-o das imagens de ativista pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, o MTST, experiência que é usada como munição pelos seus adversários.
Camila aponta para a falta de “coerência de cor” e materiais melhores para o candidato do Psol. Recomenda peças mais modernas, blazers mais alinhados, com um corte melhor. “Pode ser um linho, algo que tenha mais textura e presença.” Para Farage, falta “intenção” nas escolhas. “Não tem uma pesquisa real sobre os códigos dos quais ele poderia se apropriar para conversar com outros grupos.”
André do Val acredita que Boulos pode melhorar, mas seu trabalho nos “looks” está melhor do que o de Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo e candidato à reeleição pelo MDB. “Ele veio do bagunçado para o arrumadinho, então ele está acertando essa medida ainda. O Ricardo Nunes é sem graça porque ele sempre foi assim, ele não está fazendo nenhum esforço.” André lembra que Nunes também não se empenha tanto porque está tentando “manter a cadeira de prefeito”, então a estratégia é meio que “deixar tudo como está”. “O esforço maior é apresentar a cara dele, porque as pessoas não o conheciam.”
Ao contrário de Boulos e Ricardo Nunes, Datena parece querer se distanciar um pouco da formalidade e tem aparecido nos debates com roupas mais despojadas. Talvez pela combinação da imagem consolidada de apresentador de tevê com o fato de não ter se destacado nas pesquisas, é o candidato que mais experimenta com o visual. Nos debates, Datena aparece ora de paletó, ora usando jaquetas da marca Boss sobre camisas, sem tanta atenção ao caimento.
Já nas imagens de sua campanha nas ruas, ousa ainda mais, desfilando peças de grifes como Gucci combinadas com uma grande variedade de óculos vistosos, às vezes espelhados, além de anéis e relógios dourados. “Ele parece delegado de filme brasileiro”, comenta André do Val. A ostentação talvez esteja ligada a suposição de que o público sabe que Datena é rico, afinal são mais de trinta anos de tevê. “Ele seria um agente provocador nessa eleição. Até chegar o Pablo Marçal. Perto do Marçal, ele virou um senhor de respeito”, avalia André.
Isso não impede Datena de cair outras vezes no clichê e na mesmice das escolhas dos candidatos, especialmente com relação às cores, uma das críticas recorrentes feitas pelos entrevistados desta reportagem e pelo público. É comum que em um debate todos os homens se apresentem usando roupas parecidas, em tons de azul — sempre ele, a cor associada à sobriedade e confiança. No episódio da “cadeirada” durante o debate da TV Cultura, por exemplo, Nunes, Marçal e Datena usavam a mesma fórmula de roupa: paletó azul sobre camisa sem gravata, calça jeans e sapato.
No debate da TV Globo, na última quinta-feira, Nunes e Boulos estavam de paletó e camisa sem gravata. Tabata, de blazer e blusa. Datena apostou num casaco volumoso escuro de capuz com forro vermelho-sangue. “Total Conde Drácula. Só faltam os dentões”, disse em um vídeo nas redes sociais a também candidata Marina Helena, do Novo, que não participou desse debate. A comparação com o vampiro foi repetida na internet, em perfis como Nazaré Amarga.
Marçal surgiu na Globo com discurso mais brando e trajando camiseta preta com gola polo, calça jeans e sapatos sem meias. “Ele está sempre com roupas justas. É o tipo fortinho. Todos os códigos dele vão para o mesmo caminho imagético de bad boy”, diz Farage. “É o red pill escrito”, completa André do Val. “Que nem o Elon Musk, é o homem que passa por procedimento de reafirmação de gênero.” Os ternos marcam o corpo, o mocassim é usado sem meias, relógio e anéis grandes completam os elementos de ostentação. Tudo a ver com as mensagens que o coach passa em suas redes sociais e livros de autoajuda, nos quais aborda temas como masculinidade e enriquecimento.
A comunicação por imagem é tão subjetiva e intrínseca ao ser humano que cada detalhe conta. Camila, por exemplo, relata que recentemente também fez consultoria para um candidato a prefeito de uma cidade satélite de São Paulo que era bem jovem, então tinha o desafio de parecer mais velho para ser percebido pelo público como “mais responsável e experiente”. “Eu recomendei usar um relógio e deixar o cabelo crescer um pouco, deixar mais careta. O relógio é um símbolo muito claro de consistência, pontualidade, uma pessoa que usa relógio é uma pessoa em que você confia.”
Segundo ela, a estratégia deu resultado. “Ninguém vai falar ‘Nossa, ele usa relógio!’, mas aquela imagem vai ficar marcada, assim como a cor, como a frase de efeito, assim como o item que a pessoa usa em todas as fotos”, completa Camila.
É claro que eleição não se decide no figurino. “A roupa não vai ganhar eleição sozinha. Ela pode ajudar ou atrapalhar”, lembra Thais Farage, completando que ninguém conseguirá compensar na roupa uma força política que não existe.
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