O ano começou muito bem com a estreia, em 4 de janeiro, de O melhor está por vir, infeliz tradução do título original do filme de Nanni Moretti – Il Sol Dell’ Avvenire (O sol do futuro, em tradução literal) –, referência aos versos de Fischia il vento (Sopra o vento), de Felice Cascione, canção difundida a partir de 1943 para festejar a resistência italiana na Segunda Guerra Mundial: “…Sapatos quebrados mesmo assim é preciso ir/Conquistar a primavera vermelha/Onde nasce o sol do futuro…”. Em sua extensa filmografia, Moretti tem o raro dom de, com maestria, combinar inteligência, senso de humor, questões pessoais e empenho político.
Mathieu Amalric (Pierre) e Nanni Moretti (Giovanni), em O melhor está por vir (Crédito: Divulgação)
No final de janeiro, outro lançamento marcante foi o de Anatomia de uma queda, produção francesa dirigida por Justine Triet, premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 2023, e que pouco depois, confirmando as previsões, ganhou Oscar de Melhor Roteiro Original, de autoria de Triet e Arthur Arari. Definido pela própria diretora como “um filme feminista”, Anatomia de uma queda obteve amplo reconhecimento crítico e grande sucesso comercial, um feito incomum. Até o momento, rendeu na bilheteria dos cinemas cerca de 36 milhões de dólares, mais do que cinco vezes seu custo de produção.
Daniel, que interpreta um pré-adolescente com deficiência visual em Anatomia de uma queda (Crédito: Divulgação)
Em meados de fevereiro, Zona de interesse, também premiado em Cannes no ano anterior, afinal estreou no Brasil. Escrito e dirigido por Jonathan Glazer, o filme recebeu o Grande Prêmio atribuído pelo júri oficial e o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema – Fipresci. Foi coberto de louros em diversos festivais e ganhou, no início de março, o Oscar de Melhor Filme Internacional. Embora os créditos informem ser baseado em A Zona de interesse, de Martin Amis, o filme guarda, na verdade, apenas relação tênue com o romance que trata a barbárie nazista de modo explícito, enquanto uma das virtudes de Glazer é seu enfoque implícito. A principal locação do filme é a casa da família Höss, separada apenas por um muro alto do campo de concentração e extermínio de Auschwitz, do qual Rudolf Höss é o comandante. A filmagem, feita em parte com múltiplas câmeras ocultas, realça, desse modo, o viés documental do filme.
O jardim aprazível da família Höss em Zona de interesse (Crédito: Divulgação)
Amanhã, de Marcos Pimentel, estreou no final de fevereiro, após ter participado do Festival É Tudo Verdade, em abril de 2023. Confirmava-se, assim, a tendência dominante há tempos e que continua a prevalecer até hoje de documentários brasileiros levarem quase um ano para chegarem ao circuito comercial em lançamentos semiclandestinos, forçosamente fugazes, sem condições mínimas de se tornarem conhecidos e serem vistos.
Além de Amanhã, o documentário sobre o fabuloso Dorival Caymmi, Dorival Caymmi – Um homem de afetos, de Daniela Broitman, exibido na mostra competitiva do Festival É Tudo Verdade, em 2019, e outros, cada um com seus méritos e suas deficiências, mas dotados de certo interesse, mais transitam pelas telas com poucas sessões por dia, em horários exóticos, do que são, propriamente, lançados.
Júlia, uma das crianças que protagonizam Amanhã (Crédito: Divulgação)
Foi preciso chegar a julho para podermos assistir a um dos grandes filmes do ano – Rapito (Sequestrado, em tradução literal para português do título original italiano), de Marco Bellocchio – ao qual foi dado, no Brasil, o infeliz título de O sequestro do papa (sugerindo que o papa é sequestrado). Sem ser um grande sucesso comercial, Rapito vale, porém, pela relevância de seu tema e excelência de sua feitura, a começar pelo roteiro. Em destaque, a atuação de Enea Sala, menino de 8 anos, em 2023, no papel de Edgardo Mortara, que, quando criança, foi sequestrado por ordem do Papa. Antissemitismo e intolerância religiosa servem para Bellocchio exprimir, conforme declarou, solidariedade com o menino – vítima de um ato de extrema violência.
A família Mortara em Rapito, filme baseado em eventos reais que aconteceram em 1858 (Crédito: Divulgação)
Werner Herzog ser o diretor é o que diferencia O fogo interior: Um réquiem para Katia e Maurice Krafft deVulcões: A tragédia de Katia e Maurice Krafft, de Sara Dosa, ambos feitos, em grande parte com o mesmo acervo de imagens filmadas pelo casal de vulcanólogos franceses. Atraído por essas filmagens que julgou nunca terem sido vistas antes, Herzog disse pretender “celebrar a maravilha das imagens” que ambos nos legaram. Ao contrário do filme de Sara Dosa, um documentário biográfico usual, O fogo interior…, conforme o título indica, é um réquiem para Katia e Maurice. Segundo Herzog, “cada vez mais atraídos pela magnificência e o mistério do interior da Terra fluindo para a superfície… [os Krafft] não são mais vulcanólogos. São artistas que nos levam, a nós espectadores, para um reino de estranha beleza”.
Cena de O Fogo interior (Crédito: Divulgação)
Atualíssimo, Prisão nos Andes, de Felipe Carmona, nos chegou do Chile em setembro, após ter sido exibido, no ano passado, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A legenda na abertura do filme indica de modo preciso o trauma comum a alguns países da América do Sul, mas que recebeu tratamento diferente, de um lado, na Argentina e no Chile, e de outro no Brasil, onde predominou impunidade por crimes contra direitos humanos cometidos durante a ditadura militar de 1964. Prisão nos Andes esclarece no início, em legenda branca sobre fundo preto: “Quarenta anos depois do golpe de Estado de Pinochet [em setembro de 1973], os homens responsáveis por crimes contra a humanidade na ditadura chilena cumprem penas de prisão de séculos no sopé da cordilheira dos Andes.” Nossa chamada Lei da Anistia, de agosto de 1979, acomodou mal uma situação que parece, inclusive, estar na raiz da mais recente tentativa golpista feita no final de 2022 e início de janeiro do ano seguinte.
Passado meio século desde o período repressivo mais duro da ditadura, filmes brasileiros, em geral, lidam pouco e mal com essa questão, falha que compromete o país como um todo e o cinema brasileiro em especial.
Os protagonistas presos de Prisão nos Andes (Crédito: Divulgação)
A lamentar é não termos ainda uma gravação integral de Não me entrego, não!, monólogo escrito e dirigido por Flávio Marinho, em que Othon Bastos, o inesquecível Corisco, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, e memorável Paulo Honório, de S.Bernardo, evoca passagens biográficas e a sua trajetória como ator. Após o sucesso consagrador da longa temporada teatral no Rio de Janeiro, deveria ser apresentado em outras cidades. O que sabemos por ora é que o espetáculo vai virar documentário, conforme noticiou Lauro Jardim em sua coluna no jornal O Globo. O filme terá roteiro de Marinho e direção de Pietra Baraldi, e deve incluir imagens de bastidores, ensaios e cenas a serem filmadas na Bahia.*
O texto de Não me entrego, não evita ser nostálgico, autocomplacente e hagiográfico (Crédito: Divulgação)
Riefenstahl: Cinema e Poder, de Andres Veiel, merece ser visto, não tanto pelo documentário em si, que é trivial, mas por trazer a público gravações e fotografias inéditas do acervo pessoal de Leni Riefenstahl (1902-2003), a longeva cineasta “capturada pela força magnética” de Adolf Hitler, como ela mesma admite. Ela dedicou sua vida, após a Segunda Guerra Mundial, à tentativa frustrada de passar a limpo sua proximidade com os líderes nazistas e a resguardar a fama de seus dois filmes mais famosos, O Triunfo da vontade, premiado como Melhor Documentário Estrangeiro no Festival de Veneza da Itália fascista, em 1935, e Olympia, que ganhou, em 1938, a Copa Mussolini, principal prêmio na época. Com o passar das décadas, Riefenstahl foi se tornando uma personagem patética, sem nunca deixar de ser uma cineasta e personalidade de interesse.
Hitler e Leni Riefenstahl (Foto: Library of Congress/Corbis/VCG via Getty Images)
Não faltam catástrofes mundo afora, na Ucrânia, em Gaza, na Síria etc., para manter a relevância de Paisagens do fim, de Carlos Alberto Mattos, que nos mostra um mundo em ruínas, no qual as mais diversas encenações ficcionais ganham um sentido imprevisto e nos mantêm alertas para o que nos aguarda em um futuro próximo. Produção independente de livre acesso, disponível no Vimeo, Paisagens do fim demonstra ser possível fazer cinema de valor com meios modestos, sem considerações comerciais. Não é vertente exclusiva, mas é crucial que exista por permitir abranger temas e formas sem quaisquer restrições.
Cena de Alemanha ano zero (1948) resgatada no vídeo-ensaio Paisagens do fim (Crédito: Divulgação)
Terá faltado dizer algo sobre Retrato de um certo Oriente, além do que Consuelo Dieguez escreveu na piauí de dezembro? Em princípio, creio que não. O artigo parece esgotar o assunto e chego a pensar que, de fato, não há nada a acrescentar. Mas, pensando bem, talvez haja um detalhe que deva ser enfatizado sobre uma das inúmeras virtudes raras do filme de Marcelo Gomes, baseado no romance Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, com roteiro de Gomes, Maria Camargo e Gustavo Campos.
Gomes parece indicar de modo deliberado a pista para perceber qual foi a estratégia que adotou ao passar do relato de Hatoum para o seu retrato. Trata-se, como é evidente, de transpor a narrativa literária, verbal, para a narrativa do cinema, audiovisual, na qual se agrega à palavra e realça o som e a imagem. Por óbvio que isso seja, não é comum nos depararmos com filmes de beleza visual equivalente à de Retrato de um certo Oriente, devida, além de ao diretor, à direção de fotografia, a cargo de Pierre de Kerchove, e à direção de arte, pela qual respondem Marcos Pedroso e Caterina Pepe. Nossa experiência usual é ver filmes com imagem e som neutros, sem valor conotativo em si mesmos, resultando incapazes de criar magia equivalente à do filme de Gomes.
Emilie (interpretada por Wafa’a Celine Halawi) ao lado do irmão Emir (Zakaria Kaakour), em uma das cenas de Retrato de um certo Oriente (Crédito: Divulgação)
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Estarei de recesso nas próximas semanas. A coluna voltará a ser publicada em 8 de janeiro. Até lá.
* O texto foi atualizado às 14h50 de 18/12/2024 para incluir a informação de que o monólogo Não me entrego, não!, de Othon Bastos, será tema de um documentário.