Ilustração: Carvall
Fim do orçamento secreto é derrota para Lira
STF declara inconstitucionalidade das emendas de relator e reduz poder do presidente da Câmara
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), foi exaustivamente alertado: o uso das emendas de relator-geral para distribuir verbas entre deputados e senadores, dentro do esquema do orçamento secreto, era ilegal e inconstitucional, com afrontas claras aos princípios constitucionais da transparência, da publicidade e da impessoalidade. Os alertas vieram de técnicos do Congresso, de reportagens e do próprio Supremo Tribunal Federal, para quem a insubmissão do Congresso às leis e à Constituição poderia levar ao fim do mecanismo das emendas de relator. Lira não retrocedeu nenhum milímetro. Nesta segunda-feira, conheceu o seu maior revés desde que se tornou presidente da Câmara. Por 6 votos a 5, o Supremo declarou a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Na prática, a decisão estabeleceu que as emendas de relator-geral do orçamento só devem ser usadas para ajustes, correções e para sanar omissões no Projeto de Lei Orçamentária Anual — conforme previsto na Constituição. Não para barganhar apoio político no Congresso, como aconteceu no governo do presidente Jair Bolsonaro.
No fim de 2021, o Supremo Tribunal Federal já havia determinado a divulgação sobre as autorias das indicações de emendas de relator-geral. Lira bancou politicamente a desobediência. Apenas uma pequena fração dos repasses feitos no passado teve a identificação dos padrinhos. O Congresso criou uma regra que permitia o uso de laranjas para esconder os reais autores das indicações, por meio do chamado “usuário externo”. Documento obtido pela piauí comprovou o esquema dos laranjas. Reportagem da revista mostrou ainda como as verbas das emendas eram usadas para bancar fraudes no SUS. A revelação do orçamento secreto foi feita pelo jornal O Estado de S. Paulo em maio de 2021.
No julgamento desta tarde, os votos dos ministros do STF não analisaram o orçamento secreto apenas sob a ótica jurídica — mas também sob as lentes da economia, da administração pública e da ciência política. Quando o julgamento terminou, ficou claro que o poder de Arthur Lira diminuiu. A decisão do Supremo retira dele o papel de primeiro-ministro informal que ocupou no governo Bolsonaro, e seu poder de barganha perante o presidente eleito se torna um pouco menor. Não apenas pela decisão do plenário do Supremo, mas também pela liminar do ministro Gilmar Mendes que autoriza o pagamento do Bolsa Família fora do teto de gastos — um dos pontos que tornava crucial a aprovação da “PEC da Transição”.
Com a derrota no Supremo, parlamentares mais animados até consideram que pode surgir um candidato para bater de frente com Lira em fevereiro, na eleição para a Presidência da Câmara. Mas isso é um tanto improvável.
Como Lira não é de deixar barato, há quem espere que ele prepare uma espécie de troco. Na prática, um dos caminhos que ele poderá tentar para reverter a suspensão das emendas de relator-geral é criar, na própria PEC da Transição, algum mecanismo que garanta os pagamentos. Lira precisa de alguma solução para honrar os compromissos que assumiu com parlamentares e que lhe garantem um controle extraordinário sobre uma folgada maioria de mais de trezentos deputados a cada votação de peso.
A derrota no Supremo não significa, porém, que Lira esteja em posição de fragilidade. Ao contrário, há no Congresso uma restauração das chamadas CNTP, as famosas condições naturais de temperatura e pressão. É nesse contexto que será formada a relação do novo governo, do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, com o novo Congresso. Os atuais presidentes das Casas Legislativas, Lira na Câmara e Pacheco no Senado, seguem favoritos à reeleição. Os dois, aliás, tiveram uma conversa rápida no horário do almoço desta segunda-feira, quando o resultado do julgamento do Supremo já estava cristalizado. Eles são sócios-beneficiários do orçamento secreto, mas Pacheco tem dado sinais de que não confrontará o Supremo pela decisão. De Lira, resta esperar para ver o que fará.
Em uma situação que pode ser um ponto de tensão, o entorno de Lira tem certeza de que o novo governo contribuiu, sim, para o placar no Supremo. Publicamente, o PT tentou se desvincular da decisão. Até votou a favor da nova resolução do Congresso que, mais uma vez, anunciava um aprimoramento nas emendas que não resolveria os problemas centrais do orçamento secreto. A verdade é que o PT queria a decisão do Supremo, mas não queria se queimar com ela, porque precisa de uma relação harmônica com o Legislativo. Lula parou de bater no orçamento secreto publicamente e sinalizou a importância do Congresso no processo orçamentário. O voto do ministro Ricardo Lewandowski, que formou a maioria de 6 votos a 5 para declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto, também foi cheio de deferência ao Congresso, mas no fim veio decisivo: a prática deve ser extinta. De certa forma, o resultado do Supremo restaura certo equilíbrio entre os poderes e reduz o temor de que o poder exacerbado de Lira em algum momento se voltasse contra a própria Corte.
Agora, a questão é ver se o que virá para substituir o orçamento secreto se adequa a padrões minimamente republicanos. Ao comentar a decisão do Supremo, o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse: “Eu entendo que é absolutamente possível construir uma alternativa (ao orçamento secreto) que dá protagonismo (ao Congresso), respeitados os princípios constitucionais. Eu acredito que, a partir de hoje, começa uma nova etapa de relacionamento.” Haddad ainda acrescentou: “O presidente Lula não tem a menor intenção de retirar a participação do Congresso Nacional na condução dos interesses nacionais. Mas vamos encontrar o caminho de fazer isso com a transparência que o orçamento público exige.”
Quem acompanhou o orçamento secreto em todas as suas temporadas sabia desde o início que ele era uma anomalia a ser corrigida. O esquema persistiu enquanto o Supremo não tinha condições de comprar a briga com o Legislativo e o Executivo ao mesmo tempo. Agora, porém, com a mudança no Planalto, o Supremo passou a ter as condições políticas de encerrar a prática. É como se o jogo, entre os três poderes, estivesse 2×1 para manter o orçamento secreto. Agora ficou em 2×1 para acabar.
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