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    Ilustração: Carvall

questões amazônicas

A floresta sumiu, ninguém sabe, ninguém viu

Desmatamento é recorde na década e ocorre até em áreas de operações militares criadas por Bolsonaro – que custaram ao menos 414 milhões de reais ao contribuinte

Marta Salomon | 26 ago 2021_16h59
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Quando os fiscais do Ibama chegaram à fronteira da Terra Indígena Menkragnoti, em Peixoto de Azevedo (MT), em meados de julho, encontraram no local apenas embalagens vazias de óleo e tambores ainda com resíduo de gasolina. Era o sinal de que, com o auxílio de motosserras, mais um pedaço da Floresta Amazônica havia sido posto abaixo, e não fazia muito tempo. Os fiscais confirmaram o desmatamento ilegal de quase 2,3 mil hectares (23 km²). Nos dois meses anteriores à presença dos agentes do Ibama no local, imagens de satélites haviam detectado o desaparecimento de uma área de floresta equivalente a mais de catorze vezes o Parque do Ibirapuera, em São Paulo, ou mais da metade da Floresta da Tijuca, no Rio.

Uma pista sobre o infrator foi dada pelo dono da fazenda vizinha: ele doara ao filho a área agora autuada pelos fiscais; este, por sua vez, a vendera em outubro de 2020, registrou a equipe em documentos ao Ibama. A piauí localizou o comprador, que informou ter passado adiante a propriedade a um plantador de soja no Pará em maio, antes do início do desmatamento. A área foi embargada e está, portanto, impedida de produzir soja, abrigar pasto ou levar adiante qualquer outra atividade econômica. Mas, em meio ao aquecimento dos negócios com terras na região, o crime segue sem a identificação clara do responsável.

Também em julho, depois de os fiscais do Ibama irem a campo em Mato Grosso, os alertas de desmatamento na Amazônia do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) somaram quase 1,5 mil km², depois de quatro recordes mensais seguidos. Em um mês, a extensão dos alertas foi equivalente à área do município de São Paulo. O volume de alertas em julho, último mês do período de coleta da taxa anual de desmatamento, indica que 2021 terá uma taxa só ligeiramente inferior à do ano anterior, que registrou a maior devastação da floresta desde 2008, de 10,9 mil km².

O tamanho do desastre já estava anunciado quando o presidente Jair Bolsonaro participou, em 22 de julho, da cerimônia de inauguração de uma antena para captar imagens de satélites e supostamente melhorar o combate ao desmatamento. O equipamento foi comprado nos Estados Unidos pelo Ministério da Defesa com dinheiro do Fundo Amazônia e custou mais de 30 milhões de reais. Na cerimônia, o ministro Walter Braga Netto exaltou as três operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que levaram militares à Amazônia para combater o desmatamento em 2019, 2020 e 2021. Um mês depois da cerimônia, a antena instalada em Formosa (GO) ainda não havia começado a operar. Receberá as imagens do polêmico satélite que os militares compraram no final de 2020 da empresa finlandesa Iceye, informou o Ministério da Defesa. 

As três GLOs decretadas por Bolsonaro para o combate ao desmatamento na Amazônia custaram ao menos 414 milhões de reais ao contribuinte no período que registra as maiores taxas de devastação da floresta em mais de uma década. Peixoto de Azevedo é um dos 26 municípios definidos como prioritários para a ação das Forças Armadas neste ano. Mas a autuação do desmatamento na fronteira da Terra Indígena Menkragnoti foi resultado da atuação dos fiscais do Ibama, com base em alertas do Inpe. Não entra na contabilidade dos resultados da Operação Samaúma, a mais recente das GLOs, que marcou a volta dos militares à Amazônia entre 28 de junho e 31 de agosto, numa temporada que será estendida por mais tempo. 

 

Os fiscais do Ibama localizaram Milton Almeida Cruz, filho do dono da fazenda Floresta do Iriri, vizinha à área desmatada em Peixoto de Azevedo, na fronteira da terra indígena de parte do povo Kayapó. Cruz informou aos agentes do Ibama que, em outubro de 2020, vendera por 2,5 milhões de reais parcelados em seis vezes a terra doada pelo pai, ainda com a floresta em pé, para Leandro da Cunha Barboza. Segundo ele, Barboza morava nos Estados Unidos e comprou a terra via procuração, por meio de um corretor. “Achei que fosse para fazer crédito de carbono”, disse Cruz à piauí. Áreas privadas que conservam a floresta podem eventualmente ser convertidas em créditos de carbono, pelo desmatamento evitado. “O que foi feito na terra não me diz mais respeito”, completou.

A piauí localizou Barboza, identificado e autuado pelo Ibama como responsável pelo desmatamento. Ainda não houve definição sobre multa. Por e-mail, ele confirmou a compra e informou que já havia vendido novamente o imóvel em maio, ainda com a floresta em pé, para Gilmar Maximiano, que plantaria soja em Castelo dos Sonhos, distrito de Altamira (PA), município com a maior área desmatada na Amazônia em 2020. Barboza disse que não havia sido autorizado a passar o contato do comprador. Ele tampouco informou o valor do negócio. Maximiano não foi localizado pela piauí.

 A área que mudou de mãos várias vezes em Peixoto de Azevedo e foi embargada por desmatamento ilegal faz parte, de acordo com documentos do Ibama, da gleba Jarinã. Essa área pertencia à União e foi transferida ao estado de Mato Grosso em 2009, para a regularização fundiária. Doze anos depois, a área desmatada não foi identificada como imóvel rural no Sistema de Gestão Fundiária do Incra nem tinha registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Procurada, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso confirmou que a área desmatada não foi registrada no CAR nem tinha autorização para o desmate. A falta de cadastro ambiental da área foi o motivo apontado pela secretaria para não ter autuado o crime remotamente. A secretaria não tinha conhecimento de que o desmatamento já havia sido autuado pelo Ibama no mês anterior. “A Sema informa que recebeu alertas de desmatamento, por meio da plataforma de monitoramento Planet, em área nas proximidades da Terra Indígena Menkragnoti, no município de Peixoto de Azevedo. Será realizada nos próximos dias uma fiscalização in loco”, informou em 19 de agosto.

A área desmatada em Peixoto de Azevedo tem um de seus pontos distante apenas 60 metros do limite da Terra Indígena Menkragnoti, o que daria menos de um quarteirão de distância. Liderança local e relações públicas do Instituto Kabu, Doto Takak-Ire reclama da crescente pressão do agronegócio por terras na região, atribuída parcialmente por ele ao projeto de construção da Ferrogrão, ferrovia planejada para o escoamento de grãos entre Sinop (MT) e o Porto de Miritituba, em Itaituba (PA).

“O agronegócio está aumentando a pressão faz dois anos”, relata, insistindo em que o desmatamento não se limita às bordas do território indígena nem aos plantadores de soja. No interior da TI, há pressão de madeireiros e garimpeiros. O Inpe registrou 3,4 km² de desmatamento dentro da Menkragnoti nos dois últimos anos. A Rede Xingu +, que monitora as áreas indígenas da Bacia do Xingu por imagens de satélites, detectou a abertura de uma estrada que ligaria a área desmatada à aldeia Koróróti, da TI Menkragnoti.

 

A fiscalização que flagrou o desmatamento da área de 23 km² em Peixoto de Azevedo partiu de alertas do Inpe – instituição cujo trabalho tem andado na mira do governo Bolsonaro. Esses alertas chegam diariamente pela manhã ao Centro Nacional de Monitoramento e Informações Ambientais (Cenima), do Ibama. Um programa de computador estabelece níveis diferentes de prioridade dos alertas para a fiscalização. “Não existe fiscalização para atender todos os alertas”, observa Pedro Bignelli, coordenador-geral do centro. Entre os critérios que pautam as prioridades da fiscalização estão, por exemplo, o tamanho da devastação, a distância da base operacional mais próxima do Ibama e se aparecem dois ou mais alertas de desmatamento em áreas próximas. Foi o que aconteceu em Peixoto de Azevedo, já incluído na lista dos municípios prioritários para a fiscalização do Ibama em 2021: os alertas de desmatamento em maio e junho desenharam dois polígonos na fronteira da Terra Indígena Menkragnoti, que poderiam acabar se juntando numa área desmatada ainda maior e, por isso, o desmatamento da área entrou na categoria de prioridade altíssima. 

Os alertas do Inpe são baseados em dados de um conjunto de satélites, a que o instituto tem acesso gratuitamente. O instituto também recebe de graça imagens da empresa americana Planet, cedidas pelo governo norueguês. Essas imagens são mais detalhadas, mas exigem tempo e custo maior de processamento, pouco compatíveis com a detecção rápida dos alertas e com o tipo de eventos de desmatamento na Amazônia, explicou o coordenador do programa de monitoramento da Amazônia e demais biomas do Inpe, Cláudio Almeida, em debate recente. “Mais de 63% dos desmatamentos na Amazônia têm mais de 25 hectares (250 mil m²)”, lembrou. O detalhamento dos alertas do Inpe tem sido suficiente para qualificar desmatamento por garimpo, também em alta na Amazônia. Entre agosto de 2020 e julho de 2021, os alertas por desmatamento nessas áreas alcançaram 126 km², quase 33% a mais do que no período anterior.

As imagens Planet, que o Inpe recebe gratuitamente e o Ibama usa no detalhamento de operações, são objeto de um contrato milionário da Polícia Federal com a empresa americana. O governo pagou 49 milhões de reais pelo uso das imagens durante um ano. O contrato termina em 31 de agosto e está em processo de renovação por mais um ano, informou a PF à piauí, ao custo de mais 56 milhões de reais: “Hoje já utilizam o sistema 96 instituições, dentre as quais diversas instituições de fiscalização ambiental, tanto federais como estaduais”, sustentou.

“Temos acesso às imagens Planet de alta resolução, mas não de forma organizada”, confirmou Bignelli, do Ibama. O custo da renovação do contrato com a Planet equivale a mais de 21 vezes o gasto autorizado no Orçamento deste ano para o Inpe monitorar desmatamento e queimadas na Amazônia e outros biomas (2,6 milhões de reais). Para combater o desmatamento e queimadas nos biomas, o Ibama dispõe neste ano de pouco menos de 385 milhões de reais, quase o dobro do que era previsto inicialmente pelo Orçamento da União. O aumento das verbas ocorreu em maio, depois da Cúpula do Clima convocada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

Ao embargar para a produção a área desmatada em Peixoto de Azevedo, o Ibama anotou que a medida tem como objetivo permitir a regeneração natural da floresta. Seria uma forma de reverter parte da emissão de gases do efeito estufa causada pelo desmatamento. Se o imóvel rural for regularizado, o proprietário terá de recuperar ou compensar 80% da área desmatada. Em recente ação civil pública, o Ministério Público Federal no Amazonas pede uma indenização extra de 44,8 milhões de reais por “dano climático” pelo desmatamento de uma área um pouco maior numa região mais densa de floresta em Boca do Acre (AM).

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