Ilustração: Carvall
A fome na fila do pão
Em padaria visitada por Bolsonaro durante a pandemia, pessoas pedem alimentos para conseguir o que comer
São sete manhã de quarta-feira e cerca de dez pessoas estão enfileiradas esperando a próxima fornada de pão francês na padaria Pão Dourado, em Brasília, a 4 km do Palácio do Planalto. Tem gente de terno, com roupa de academia, de tênis, de chinelo. Alguns pés batem rapidamente no chão, demonstrando impaciência para levar para casa o pão fresquinho para o café da manhã. Do lado de fora, há oito mesas sobre um deck de madeira à sombra de árvores e palmeiras. Todas estão ocupadas por fregueses que, sozinhos ou acompanhados, tomam café da manhã em trajes sociais. A Pão Dourado costuma ser frequentada por deputados e senadores, já que alguns prédios de apartamentos funcionais da Câmara e do Senado ficam ali na vizinhança. Também já recebeu o presidente Jair Bolsonaro algumas vezes. Uma delas foi no auge da quarentena imposta pela pandemia, em abril de 2020. Sem máscara, Bolsonaro abraçou e tirou fotos com apoiadores, causando grande aglomeração.
No final de agosto, padarias ocuparam de novo a atenção presidencial. Diante dos dados de que 33 milhões de pessoas passam fome no país, o presidente reagiu atacando a candidata do MDB à Presidência, senadora Simone Tebet (MDB-MS), que mencionou o problema: “Essa senadora aí falou besteira aqui. Gente passa mal? Sim, passa mal no Brasil. Alguém já viu alguém pedindo um pão na porta, ali, no caixa da padaria? Você não vê, pô”, afirmou o presidente. Nesta quarta (21), foi o ministro Paulo Guedes que questionou o tamanho da fome no país.
Há mais de um ano Olária Rodrigues de Souza Farias, de 45 anos, dorme na porta da padaria que Bolsonaro chegou a visitar. Ficou em situação de rua depois de ser despejada da casa de parentes. Todas as manhãs, de segunda a segunda, amanhece na porta da padaria, onde fica à espera de comida ou algum trocado. Enrolada num cobertor de flanela cinza que ganhou há algumas semanas, pede ajuda a quem passa: “Ajuda nóis, com um leite, um bolo. Ajuda nóis e Deus abençoe sua vida.”
Nem todos os clientes ajudam. Alguns fingem que nem a veem, mas sempre há alguns que garantem o café da manhã. “Às vezes eu entro na loja e vou pegando coisas que eles deixam eu pegar, eles me dão, e saio com as sacolas. Não são todas as pessoas, mas muitos me ajudam sim, ainda existe bondade”, conta.
“Eu trabalho há mais de um ano na padaria e a vejo todos os dias, não tem um dia que ela não esteja aqui”, diz a atendente da padaria Andreia Falcão, de 32 anos. A presença de Olária na porta do comércio já faz parte da rotina de trabalho. “Ela se dá bem com quem trabalha aqui, brinca com todos e dá até apelidos, tem respeito pelos clientes e não briga com ninguém. Aqui é como se fosse a casa dela”, afirma Andreia.
Olária se sente segura em frente à padaria. Ela escolheu o local para dormir porque percebeu que lá há câmeras, o que lhe garante alguma segurança. Os vigilantes também permitem que ela durma tranquilamente. “Na rua, já fui pega pelos tarados algumas vezes e tenho medo disso. Então à noite eu volto para cá para dormir e fico menos vulnerável aos homens que podem querer me estuprar. Os seguranças gostam de mim, me conhecem e me sinto mais vigiada.”
O medo do estupro, companheiro frequente das mulheres que moram na rua, tem sua razão de ser. Mesmo antes de viver nas ruas, Olária já foi violentada pelo menos duas vezes, uma delas pelo ex-marido, que, além de tudo, ainda a espancava. Os dentes quebrados e tortos são uma das sequelas do período em que foi casada. Durante esse relacionamento, Olária ficou grávida de um filho, que hoje tem 1 ano e meio, e está sob os cuidados de um irmão dela, em João Pessoa (PB). “Eu tenho um filho de uma agressão física que durou um ano e meio. O pai dele me socava a barriga grávida, dava murro no meu olho até ficar roxo”, afirma. Apesar do afastamento, Olária diz que ama muito o filho mais novo e tenta conseguir notícias sobre ele sempre que pode. “Como olhar para meu filho me traz toda essa dor de volta, deixei ele com meu irmão. Mas ele é um menino lindo, já está até andando. Eu amo ele”, conta.
Olária já trabalhou como operadora de caixa e estudou até a sétima série. Interrompeu os estudos, e o relacionamento abusivo interrompeu também qualquer possibilidade de uma vida tranquila. Além do bebê, Olária tem uma filha de 25 anos que, assim como ela, está em situação de rua. Elas raramente passam a noite juntas, já que a filha é casada e acaba dormindo com o marido em outro ponto de Brasília. Ainda assim, elas se encontram todas as tardes para almoçarem juntas perto do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), a menos de 1 km de distância da padaria.
“Tem um amigo meu que tem um churrasquinho ali. Ele sempre me dá duas marmitas e dois sucos. Isso já é garantia para mim e para minha filha”, afirma. A relação entre o churrasqueiro e Olária é bem próxima, e ele até organizou uma festa em comemoração ao aniversário dela. “Ele é meu amigo, sou muito amada por ele. Ele fez meu bolo e minha festa, foi a coisa mais linda. Além das marmitas, ele me dá kit de higiene, me dá roupa, me dá força pra continuar”, conta.
Apesar de receber muita ajuda, há dias em que as doações de dinheiro ou comida não garantem todas as refeições. Olária se vira do jeito que dá para aliviar a fome. Revirar as lixeiras não é coisa rara. “Já comi comida do lixo com ratazana porque não tinha outra opção. A gente rasga o saco de lixo e come o que tem, o que encontra ali no resto das pessoas”, confessa. Olária diz que tem medo de passar mal ou ficar doente por comer comida do lixo, mas o ronco do estômago vazio fala mais alto, e ela acaba se arriscando. “Ali tem rato, ali tem doença, tem barata, tem bactérias… é muito perigoso. Quando você tá com fome, você quer matar ela. Então você só reza para Deus para não ficar doente e come o que acha. É muito triste.”
Os dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) falam em 33 milhões de brasileiros com fome. Os dados mostram ainda que três em cada dez famílias brasileiras relataram incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e estão preocupadas em relação à qualidade da alimentação no futuro. Mais de 125 milhões de brasileiros estão em insegurança alimentar. No Distrito Federal, cerca de 13,1% da população está em situação de grave insegurança alimentar e passa fome. Entre as unidades da federação do Centro-Oeste, o DF tem o segundo pior índice de insegurança alimentar, perdendo apenas para o Mato Grosso, onde 17,7% da população passam fome.
Olária não é a única a pedir comida na porta da padaria. “Não tem ninguém, presidente? Olha eu aqui, sou mais um pedindo na porta da padaria, olha ali a moça que também pede e tem muito mais outros por aí”, afirma Eduardo Silvestre de Aquino, de 35 anos. Ele é um dos pelo menos 200 mil brasileiros que não têm o que comer e moram na rua, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua. Soropositivo e dependente químico, Eduardo intercala períodos de sobriedade e de recaídas. Para sobreviver, cata latinhas de alumínio pela cidade, pede esmola e, durante a noite, trabalha como flanelinha no estacionamento público de um shopping. “Eu durmo embaixo de um pé de jamelão e quando eu não arranjo nada para comer eu vou comendo uma frutinha ali, outra aqui. Já cheguei a arrombar lixeira para comer, não vou mentir. Já estourei o cadeado de um contêiner e peguei um hambúrguer e umas batatinhas”, conta.
Aquino está na fila de espera para conseguir o Auxílio Brasil há um mês e ainda não recebeu nenhum contato do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) desde que fez seu Cadastro Único (CadÚnico). Também procura uma clínica de tratamento que o acolha para tratar o vício em crack. Ele diz que já passou mal de fome algumas vezes. “Já cheguei a ficar fraco de fome, com tontura e imunidade baixa. O quilo do alumínio está 6 reais, então não é todo dia que pego latinha o suficiente para pagar uma marmita de 10 reais. Acabo ficando na dependência da caridade dos outros”, desabafa.
Olária não está na fila de espera do Auxílio Brasil e sequer pode se inscrever em programas de assistência social, pois não tem nenhum documento. Perdeu a certidão de nascimento e a carteira de identidade. Como ela, outras pessoas sem documento nem aparecem na listagem oficial dos 200 mil em situação de rua. “Eu não tenho RG, nem minha filha. Também não temos condições de pagar uma taxa de 50 reais para fazer um documento. Eu não tenho dinheiro nem para comprar uma pomada para passar no pé machucado que rachou de tanto que eu ando”, conta Olária, enquanto exibe no pé direito uma rachadura na pele que vai do calcanhar ao dedão.
“Infelizmente, o que mais tem por aí é gente como eu, passando fome e necessidade. E nada é feito pela gente. Não tem uma cesta básica, não tem oportunidade de emprego, não tem nem cobertor ou onde dormir. O presidente está escondendo a realidade do Brasil e não está vendo a gente”, se indigna Olária. Ela diz que se houvesse mais oportunidades para pessoas como ela, sua situação poderia ser diferente. “Eu queria ter uma perspectiva de mudar. Arrumar meus documentos, arrumar um emprego. Assim eu voltaria a me sentir útil, pagar um aluguel, água, luz, e poder ajudar minha filha. É isso que eu espero da vida.”
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