Desiludida com a política, a assistente administrativa passou de eleitora convicta à crescente parcela de indecisos IMAGEM: PAULA CARDOSO/ACERVO PESSOAL
“Me deixe fora desse balaio”
Conheça a rotina e o pensamento de Muniky Moura, a eleitora “nem nem” – que, como 43% do eleitorado, rejeita Lula e Bolsonaro e costuma decidir a eleição
O despertador de Muniky Moura toca algumas vezes até que ela levanta da cama. De pé, arruma-se para o trabalho em menos de 20 minutos. Às 6h30 já está no ponto de ônibus, a um quarteirão de casa. Ela mora no bairro Parque Paulista, em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Dali até o trabalho como assistente administrativa na sede de uma mineradora, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, são 48 quilômetros. Moura embarca no primeiro ônibus da manhã e chega no seu destino, na maior parte das vezes, quatro horas depois. São dezesseis horas fora de casa, todo dia. Entre o deslocamento, o trabalho e os cuidados com a filha de 5 anos, ela tem preocupações maiores do que com a política. Quando é provocada a pensar nas eleições de outubro, tem uma única certeza: não vota nem no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nem no deputado federal Jair Messias Bolsonaro, do PSL. Aos 33 anos, Moura personifica a eleitora “nem nem” – que decide seu voto na última hora, fica fora do radar das pesquisas de intenção de voto e costuma definir os rumos de uma eleição.
Quando somada a seu par masculino, chega a 43% do eleitorado, como mostrou estudo encomendado pela piauí ao Ibope. Nem Lula e nem Bolsonaro, os nomes mais bem posicionados destas eleições até agora, têm tantos eleitores. Os “nem nem” são os mais cobiçados pelos candidatos de centro, por fugirem de radicalismos. E, por só decidirem no último momento, eleitores como Muniky Moura são o maior desafio dos institutos de pesquisa.
A moradora de Duque de Caxias vive uma situação nova. Ela não se considera uma eleitora indecisa. Nas últimas quatro eleições presidenciais, Moura definiu seu voto com antecedência, duas vezes em Lula, duas vezes em Dilma Rousseff. Desiludida com a política, em 2018 ela já não tem ideia de quem escolher na urna. Moura é um exemplo da migração de um eleitor convicto para esta zona cinzenta do eleitorado.
Durante seu longo trajeto diário, Muniky Moura não se dedica a leituras – mesmo se quisesse, ler no ônibus lhe dá tonturas. Também dispensa os fones de ouvido e não gosta de ouvir música ou rádio. Quando não está dormindo, passa a viagem entre uma janela e outra do WhatsApp. De Duque de Caxias ela desembarca no Centro do Rio e, de lá, pega o metrô até o Flamengo. Na volta, para evitar os constantes assaltos que acontecem nesta linha, o número de baldeações que faz é maior, e o percurso, mais longo. Embarca num ônibus para Petrópolis no Terminal Rodoviário Menezes Côrtes e salta na Rodovia Washington Luiz, a dez quilômetros da cidade serrana. É assim todo dia.
Na última sexta-feira, na terceira condução para casa, uma via foi fechada e o ônibus mudou seu trajeto. Poucos quilômetros à frente ela descobriu o motivo: inauguração de uma pracinha, com presença de autoridades. Com bom humor, Moura se deixa soltar: “Políticos. Vontade de tacar um monte de pedra neles!”
Quando chega em casa, à noite, os três cachorros a recebem no portão. Pulam em suas pernas até que possa entrar pela porta da sala – dentro de casa, não. Moura tira os sapatos, abraça e conversa com a filha Mariah. A menina, que passa a maior parte do dia andando de bicicleta pelo terreno de casa e rabiscando as paredes de seu quarto de brinquedos, pede o celular para jogar os games preferidos, Subway Surfers, Roll the Ball e Love Balls.
Moura monta o prato na cozinha, senta no sofá da sala e janta assistindo à tevê. No Jornal Nacional, uma sequência de três reportagens: atentado a uma escola norte-americana em Houston, Texas, a execução não solucionada da vereadora Marielle Franco e o assassinato de Soraia Macedo de Lemos, de 17 anos, a caminho da escola, na Ilha do Governador. A violência emoldura seu dia a dia. Mais um pouco e começa a novela. Noveleira assumida, ela sofre quando chega tarde em casa. Se pudesse, assistiria a todos os folhetins.
O preço do dólar, da gasolina ou da passagem para Miami não fazem parte de suas preocupações principais. Mas estão no seu radar. “Eu só queria que eles [os políticos] fizessem o que têm que fazer, e não roubassem”, resumiu, em tom de indignação, o que espera de um político em qualquer esfera do poder. “É só fazer o mínimo. Nada mais. Este governo mata gente.”
Formada em pedagogia e com pós-graduação em Gestão de Infraestrutura, Moura é assistente no setor de compras da de uma mineradora há três anos e meio. Com renda de quatro salários mínimos, ela sustenta Mariah e ajuda nas contas da casa de quatro quartos, que divide com os pais, a irmã mais nova, três gatos e três cachorros. Na ponta do lápis entram também as aulas de musculação, duas vezes por semana, e de inglês, às sextas-feiras. A mensalidade do colégio particular de Mariah é paga pelo pai da menina.
Moradora do Parque Paulista desde que nasceu, Moura sempre teve uma vida pacata, longe do Centro. De uns anos para cá, as coisas parecem ter perdido o rumo. Ela cita a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora no município do Rio como divisor de águas. Com a polícia concentrada em algumas localidades da Zona Sul, o tráfico se espalhou pelo estado. As facções criminosas Terceiro Comando Puro e Comando Vermelho tomaram conta do Parque Paulista e de seus bairros fronteiriços – Santa Cruz da Serra e Nova Campinas. Os confrontos passaram a ser constantes. “Parque Paulista está esquecido no tempo desde que nasci. Não vou dizer que não tinha criminalidade aqui. Tinha ladrão de galinha, de bicicleta, mas assalto de rua, tiroteio, boca de fumo… Isso nunca teve”, contou.
No início do ano, Moura teve um ataque de pânico. Em guerra, traficantes queimaram vários ônibus em Santa Cruz da Serra. Todas as conduções que poderiam levá-la até em casa depois de um dia de trabalho pararam de circular pelo seu bairro. Ela saltou no meio do caminho e pediu um Uber. No dia seguinte, mais uma vez pediu um carro para conseguir embarcar num ônibus até o Centro do Rio. A situação se repetiu durante uma semana. No primeiro dia, ela se recorda que se prendeu à mesa de trabalho e não conseguia levantar da cadeira. E assim permaneceu por longos minutos. Ela estava tremendo pelo desespero. “Sugeriram que eu pegasse um Uber, mas recusei. Eu sabia que precisava enfrentar aquilo. Andar de Uber não ia adiantar nada. A cena dos ônibus pegando fogo me perturbava. Eu ia ter de passar por lá de novo”, contou.
Assim que se formou em pedagogia, Moura lecionou na escola da qual sua mãe era proprietária. Dentre as crianças que cruzaram sua sala de aula, ela lembra, com a voz embargada, de dois ex-alunos que morreram recentemente, trabalhando para facções rivais. À época em que lecionava, eles tinham a idade de Mariah.
Com muita frequência pensa em deixar o bairro, mas não é uma escolha fácil. Na ponta do lápis, financeiramente, a conta não fecha. Além de outras questões: com quem deixaria Mariah? Como sustentaria a filha numa cidade cara como o Rio? A melhor solução seria se mudar com os pais, mas essa não é uma opção para o casal que se aproxima dos 60 anos – são muito apegados ao terreno e à história que construíram ali.
Perguntada sobre a intervenção militar no Rio, implantada há três meses pelo governo federal, Moura resume sua opinião relatando um episódio que mais parece uma anedota. Pouco menos de um mês atrás, uma blitz, comandada por militares da intervenção, gerou um engarrafamento na Linha Vermelha. A poucos quilômetros do bloqueio, assaltantes aproveitaram para roubar veículos que ficaram presos no trânsito. “Isso diz muito sobre a intervenção para mim.”
Para Moura, a violência é a questão mais importante – seja nos debates e sabatinas eleitorais, seja em seu dia a dia. E é nesse ponto que o discurso de Bolsonaro mais consegue adeptos e mais se aproxima dos anseios da ex-pedagoga. Ainda assim, não foi capaz de fisgá-la.
Moura nunca teve interesse ou gosto profundos por política. Assistia aos debates e lia as propostas de governo por obrigação, apenas para decidir em quem votaria. Nos pleitos de 2002 a 2010, deixou na urna seu voto ao Partido dos Trabalhadores. Na primeira vez, acreditava na mudança encabeçada pelo ex-metalúrgico. Dali em diante, a confiança foi diminuindo até se esvair por completo. Em nenhum cenário atual voltaria a votar em Lula. “Não sei justificar o porquê. Sim, ele foi corrupto, se juntou com outros políticos corruptos para conseguir poder. Mas essa era a única forma?”, questionou Moura, abaixando os olhos e ajeitando a salada de folhas verdes no prato durante o almoço, na última quinta-feira.
Lula chegou ao último mês de seu segundo mandato com recorde de aprovação e popularidade de 87%, mostrou o Ibope. Em abril deste ano, mesmo preso em Curitiba e com uma candidatura incerta, liderava a corrida presidencial com 31% de intenções de voto. Bolsonaro aparecia atrás, com 15% (segundo a última pesquisa Datafolha), mas liderava em um cenário sem Lula (18% de intenções de voto, de acordo com pesquisa CNT/MDA).
Pensar na imagem da faixa presidencial sobre o paletó de Bolsonaro causa calafrios em Muniky Moura. Se alimenta em relação ao petista sua desilusão e desconfiança, nutre asco pelo militar reformado. Discursos racistas, machistas e homofóbicos do deputado do PSL decidiram sua rejeição ao candidato, muito antes que suas propostas e o plano de governo chegassem ao conhecimento de Moura. A entonação de sua voz muda quando fala o nome do parlamentar, sua postura fica mais firme e não dá brechas para meios-termos: “Eu não voto em Bolsonaro nem fodendo. Para votar nele, eu voto nulo.”
Caso Bolsonaro chegue a um segundo turno das eleições em uma disputa com Lula, Moura só considera votar novamente no ex-presidente por medo. “Meu chefe outro dia me perguntou: ‘Você prefere votar no louco [Bolsonaro] ou no ladrão [Lula]?’” Ela deixa escapar um riso nervoso ao contar a história. O mesmo que soltou ao descobrir que, apesar de preso, Lula pode sair candidato. É um hábito comum diante de situações que lhe parecem absurdas. “Por medo, eu tenderia a votar no ladrão. Se bem que o Bolsonaro não conseguiria fazer tudo o que diz…”, pondera, olhando por um momento o engarrafamento sem-fim pela janela do ônibus e depois voltando os olhos à repórter. “Mas, pensando bem, com a bancada evangélica que temos no Congresso, teria gente para dançar música de louco com ele, e isso me assusta.”
A opinião da eleitora “nem nem” sobre os outros presidenciáveis é breve. É do tucano Geraldo Alckmin o seu desprezo. À Marina Silva, da Rede, o descrédito – “ela é uma planta”. O pedetista Ciro Gomes lhe rouba uma risada, mesmo sem saber direito o que o ato espontâneo significa. Recebe os nomes de Guilherme Boulos, do PSOL, e Manuela D’Ávila, do PCdoB, que poderiam ser os herdeiros de seus votos nas eleições passadas, como se ouvisse palavras em outro idioma. Depois de votar em quatro eleições presidenciais, Moura já não consegue mais dissociar um político dos demais: “Hoje em dia parece que todos estão no mesmo balaio.”
Muniky Moura não culpa a desinformação. Pelo contrário, ela acredita que o brasileiro está informado até demais. Depois que a Lava Jato começou a revelar esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro, ela sente como se não conseguisse mais fugir da política. Está em todos os lugares: das manchetes nos jornais aos grupos de família do WhatsApp. Mas não põe fé na operação da Polícia Federal: “Essa Lava Jato vai terminar como tudo no Brasil, em pizza”, comenta Moura.
Em meio a tanta informação, ela não entende o que realmente é relevante para a população, e acredita que a maioria das pessoas também não. Moura relembra a disputa pelos royalties de petróleo no estado do Rio de Janeiro. “A gente não tinha noção de como aquela discussão era importante, e no que poderia interferir na nossa vida. É um jogo de interesses, tudo parece distante da gente.” Responsável por 80% da produção de lubrificantes automotivos e pelo maior processamento de gás natural do país, a Refinaria Duque de Caxias, a Reduc, é hoje a mais complexa refinaria do sistema Petrobras. Localizada quilômetros à frente de um dos pontos de ônibus em que Moura desembarca, na Rodovia Washington Luiz, contrasta com ruas mal iluminadas, construções precárias e improvisadas de seus bairros vizinhos, Santa Cruz da Serra e Parque Paulista. A pergunta de Moura é simples: para onde vai todo o dinheiro que vem dali?
No fim de mais um dia, depois do périplo entre casa e trabalho, Muniky Moura pode finalmente ficar à vontade para retomar a leitura em voz alta de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. No quarto pintado de lilás, que divide com a filha e a irmã, ela vira mais uma página, e Mariah adormece no meio de um parágrafo. Tal qual o principezinho, preocupado em proteger a rosa com quem divide seu mundo, a mãe tem medo, e quer agora cuidar de sua flor. Política ela deixa para depois.
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