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Free Solo – alpinismo e cinema

Documentário ganhador do Oscar expõe o dilema de filmar alguém sob risco de morte – e os sofismas usados como justificativa

Eduardo Escorel | 27 fev 2019_12h38
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Quando o documentário Free Solo estreou nos Estados Unidos, inicialmente em apenas quatro cinemas, no final de setembro de 2018, a escalada vista no filme da formação rochosa mais célebre do mundo – El Capitan, ou El Cap para os íntimos –, situada no Parque Nacional Yosemite, na Califórnia, foi descrita como “um dos maiores feitos atléticos” jamais realizados.

O autor da façanha de escalar pela primeira vez o gigantesco granito com 914 metros de altura sem corda ou qualquer outro equipamento de segurança, o solista livre (free soloist) Alex Honnold teria estabelecido um novo patamar de excelência, definido pelo alpinista profissional Tommy Caldwell, ídolo de Honnold, como “ganhar a medalha de ouro olímpica ou morrer”.

Passados cinco meses, tendo sido ampliado o circuito exibidor para 483 salas, Free Solo acumulou cerca de 19 milhões de dólares de bilheteria – mais de 16 milhões nos Estados Unidos, e o restante no Reino Unido, Holanda, Austrália, Noruega, Nova Zelândia e Islândia.

No domingo – depois de ter ganho, há duas semanas, o prêmio de Melhor Documentário da Academia Britânica de Arte Cinematográfica e Televisiva –, o filme dirigido pelo casal Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin confirmou seu franco favoritismo ao ganhar também o prêmio de Melhor Documentário de Longa-Metragem na cerimônia de entrega do Oscar.

No Brasil, a estreia de Free Solo será em 9 de março, às 21 horas, no canal National Geographic. A lamentar é o lançamento estar previsto apenas na televisão, uma vez que a alta qualidade da cinematografia do filme, uma de suas grandes virtudes, seria melhor apreciada na tela do cinema.

Nos primeiros dois minutos de Free Solo, é estabelecido o vínculo entre a busca do desempenho perfeito e a possibilidade de morrer diante da câmera, elo que ganha importância crescente no decorrer do filme. Na abertura, há planos notáveis da escalada de El Cap, iniciados com a câmera se deslocando da esquerda para a direita, próxima da superfície da rocha, em um movimento difícil de imaginar como pôde ser feito. A imagem descortina do alto o precipício a perder de vista, e Honnold, de cima e de longe, subindo agarrado à face de granito. Em seguida, a apresentadora de um programa de entrevistas apresenta o alpinista como “um solista livre fenomenal” e declara não entender uma coisa: “Um erro mínimo, um pequeno escorregão, você cai e morre.” “É. Você parece ter entendido bem do que se trata”, ele responde com simplicidade, sem demonstrar surpresa ou emoção.

Cena de Free Solo


O tema central de Free Solo vem a ser exatamente o fato de a filmagem afetar e, em alguns casos, pôr em risco a vida do personagem, dilema básico do cinema documentário, debatido na campanha de lançamento e usado como uma das principais estratégias de marketing do filme.

Cinco semanas depois da estreia de Free Solo, a seção Op-Docs do jornal The New York Times publicou declarações dos co-diretores Vasarhelyi e Chin, acompanhadas de um vídeo de 10 minutos no qual fica patente a dificuldade da escalada, a complexidade da filmagem, considerada por si só uma façanha, e os altos riscos a que Honnold e a equipe se expuseram. O título da matéria não deixa dúvida: ‘E se ele cair?’

Vasarhelyi e Chin começam perguntando: “O que acontece se a pessoa sobre a qual você está fazendo um documentário está tentando uma das proezas mais perigosas imagináveis? […] Quando partimos para captar a escalada do sr. Honnold, sabíamos que, apesar do seu preparo, era possível que ele morresse enquanto fazia a tentativa. E isso levantou uma série de questões éticas: a escalada seria mais pura sem câmeras? Câmeras o distrairiam? No cerne de tudo estava aquele medo indizível: e se ele morresse quando nós estivéssemos filmando? Ao longo da história, documentaristas lutaram com os limites indefinidos da sua responsabilidade para com seus assuntos. Nós estávamos apavorados com a possibilidade que nossa presença pudesse colocá-lo em situação de risco toda vez que ligávamos as câmeras.”

O próprio Honnold aborda a questão perto da metade dos 100 minutos de duração do filme: “Olha. Eu também não quero cair e morrer aqui, mas é prazeroso desafiar a si mesmo e fazer alguma coisa bem-feita. Essa sensação é ainda mais intensa quando você tem certeza que está encarando a morte. Você não pode errar. Se você está buscando a perfeição, solar livre é o mais perto que você pode chegar. E faz muito bem se sentir perfeito por um instante. Meus amigos aqui deixam transparecer: ‘Ah, seria terrível…’. Se eu me matar em um acidente, eles dirão: ‘Que pena!’ Mas a vida continua, como você sabe. Eles ficarão bem.”

Mesmo admitindo os riscos envolvidos na escalada e na filmagem, Vasarhelyi e Chin, de comum acordo com Honnold, não hesitam em afirmar, na mesma matéria do New York Times, que “apesar dos meses de tensão, nós faríamos o filme de novo. Agora há um registro da realização do sr. Honnold. (Se uma árvore cai em uma floresta e ninguém está lá para filmá-la, será que aconteceu?) É raríssimo captar em filme uma façanha tão notável, que abrange viver uma vida com um objetivo; agilidade mental e atlética; coragem de superar medos inatos; e empurrar a si mesmo o mais perto possível da beira sem, literalmente, cair.”

Esse argumento de Vasarhelyi e Chin para levar o filme adiante soa pueril se for levado em conta o perigo existente, tanto para o solista livre, quanto para a equipe de cinegrafistas, todos alpinistas profissionais. Uma suposta dúvida quanto à escalada do El Cap ter sido realizada, caso não tivesse sido filmada, seria justificativa suficiente para expor a vida dos envolvidos a tamanho risco?

A verdadeira questão, porém, é outra, abordada no encontro de Honnold com Peter Croft, solista livre que escalou a rocha Astroman, no Parque Nacional Yosemite, em 1987. Para Croft, “era extraordinariamente importante escalar em solo livre por uma razão correta”. Em resposta, Honnold diz acreditar ainda estar fazendo tudo por razões corretas, “mas sinto que quem observa de fora dirá: ‘Ah, você tem uma equipe de cinema.’ É evidente que essa é uma razão errada.” E Croft conclui: “O pior de ter uma equipe de cinema é isso alterar sua maneira de pensar.”

Ao incluir esse breve diálogo no filme, os realizadores põem em dúvida a legitimidade da sua própria decisão de filmar a escalada de El Cap. Na montagem, em posição confortável de quem sabe que não houve nenhum acidente, eles se permitem o luxo de parecer magnânimos ao demonstrar terem levado em conta a dubiedade da situação. Mas não podem evitar o corolário do diálogo de Croft e Honnold – se há razões corretas e erradas para escalar em solo livre, também há razões corretas e erradas para filmar a escalada.

Resta implícita a mudança de natureza do alpinismo praticado em solo livre, assim como de outros esportes individuais, sem oponente. Para poderem existir, essas atividades vêm sendo transformadas há décadas em espetáculos de consumo de massa. Com isso, perderam a essência de sua beleza originária, resultante de serem práticas solitárias, desinteressadas, feitas para satisfação própria e não de uma multidão de terceiros.

Não havendo novidade alguma nisso, as declarações de Vasarhelyi e Chin sobre seus tormentos éticos soam no mínimo ingênuas, uma vez que o risco de vida de Honnold e da equipe era real e vem sendo explorado para induzir espectadores a irem ao cinema e assistirem ao filme sentados na beira da poltrona.

Em princípio, não há motivo para duvidar das boas intenções de Vasarhelyi e Chin. Ao mesmo tempo, cabe assinalar que o casal de realizadores – e também Honnold – dissimulam o verdadeiro dilema em questão. De um lado, a impossibilidade de praticar um esporte pelo simples prazer de praticá-lo, sem qualquer objetivo ulterior. E, de outro, os sofismas aos quais se é levado a recorrer para justificar a filmagem de alguém que pode morrer diante da câmera.

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