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    Rato, um dos proprietários da produtora Love Funk

vultos do crime organizado

Funk “made in PCC”

Investigação da Polícia Federal aponta conexão entre facção criminosa e duas das maiores produtoras do gênero

Allan de Abreu, do Rio de Janeiro | 25 out 2024_14h39
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Márcio Geraldo Alves Ferreira, o Buda, considerado um dos maiores ladrões de banco do país e liderança importante da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), vivia dias agitados em junho de 2023. Naquele mês, uma quadrilha liderada por ele vinha se reunindo no bairro do Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo, para alinhar os últimos detalhes de um ousado plano de resgate do chefe, preso no raio 1 da penitenciária de Presidente Venceslau, Oeste paulista. Buda era acusado de participar do assalto ao Banco do Brasil em Criciúma (SC), em dezembro de 2020, quando criminosos cercaram a cidade, trocaram tiros com a polícia e fizeram moradores reféns, em ação típica do chamado “novo cangaço”, e levaram 130 milhões de reais.

Talvez pela perspectiva de deixar as grades, Buda resolveu pressionar Henrique Alexandre Barros Viana, o Rato, por mudanças na gestão da Love Funk, uma das maiores produtoras de música funk do país. Formalmente, os donos da empresa eram Rato e a mulher, Daniela. Mas a Polícia Federal não tem dúvida de que a produtora é controlada, na verdade, pela cúpula do PCC, Buda incluído.

Para que o recado de Buda chegasse a Rato, Buda o repassou a um colega de cela, Jeferson Otacílio da Silva, o Serafim, que aproveitou a visita de uma das filhas, em 25 de junho, para retransmitir a mensagem. Assim que deixou a penitenciária, a mulher enviou áudios via WhatsApp para um traficante fora da prisão, que, por fim, encaminhou-os para Rato. “Ele tá acompanhando as ideia dos cara lá e se for preciso pro Rato dar um ou dois passos pra trás, que ele dê, entendeu? Mas aí se ele quiser continuar, aí é com ele, entendeu?” Pelo diálogo não fica claro o que seriam os “dois passos para trás”, mas a PF acredita que eles se referiam à Love Funk.

Rato entendeu o recado como uma ameaça velada. Encaminhou os áudios para Moisés Teixeira, o Careca, um dos líderes do assalto ao Banco Central de Fortaleza, em 2005 , e, segundo a Polícia Federal, outro sócio oculto da Love Funk. “Ele [Buda] fica armando tabuleiro / Dentro da cadeia”, reclamou Rato – o termo “tabuleiro” é usado pelos membros do PCC para designar ações violentas contra desafetos. “Fica em paz, mano”, respondeu Careca. “Eu vou falar procê, Careca, antigamente era muito mais fácil de resolver ‘as coisa’, mano. Quando não tinha ‘esses bagulho’ de comando [PCC] aí no meio de tudo, era muito mais fácil”, reclamou Rato.

As conversas constam em um dos celulares apreendidos pela PF na Operação Latus Actio, em março deste ano, que investiga o envolvimento da Love Funk e da GR6, maior produtora de funk do Brasil, com o crime organizado. Buda não conseguiu a sonhada liberdade: o plano de resgate foi descoberto pelo setor de inteligência da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo e acabou frustrado, segundo reportagem do UOL.

Nascido e criado na Zona Leste de São Paulo, Henrique Viana ganhou o apelido de Rato pela baixa estatura e pela fama de ladrão na periferia da capital – são dezenas de passagens policiais por furto e roubo. Em 2019, abriu a Love Funk com a mulher, Daniela, e enriqueceu: a PF encontrou nos celulares do casal vídeos em que eles jogam notas de cem reais e de cem dólares para o alto em sinal de comemoração. De acordo com documento da Receita Federal obtido pela piauí, a Love Funk movimentou 173 milhões de reais entre 2019 e 2022. O dinheiro veio na esteira do boom do funk paulistano, durante a pandemia de Covid (na época, a empresa de Rato foi tema do programa Profissão Repórter, da TV Globo). Atualmente, a produtora diz gerenciar a carreira de duzentos artistas do funk, entre eles MC Paulin da Capital, MC Lipi e MC Paiva.

Além de Buda e Careca, a PF identificou mais dois sócios ocultos do PCC na Love Funk: Gratuliano de Sousa Lira, o Quadrado, que administra uma fazenda de Rato em Cajazeiras, interior da Paraíba, e Ronaldo Pereira Costa, um dos assassinos de Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e de Fabiano Alves de Souza, o Paca, em 2018, no Ceará. A polícia suspeita que a dupla tenha sido  assassinada por desviar dinheiro da facção. O crime provocou um racha até então inédito entre, de um lado, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, maior liderança do PCC e provável avalizador das mortes, segundo investigações ; e, de outro, parte da cúpula da facção, entre eles Daniel Vinicius Canônico, o Cego, que acabaria expulso da organização criminosa. 

Segundo a PF, a Love Funk repassou 230 mil reais a Costa por meio de uma advogada que o visitava na prisão em Fortaleza. “O fato de Rato, por meio de suas empresas do grupo Love Funk, seguir custeando as despesas de Ronaldo com advogados é um indício veemente de que a sociedade entre ambos não se desfez”, afirma a Polícia Federal em um relatório obtido pela piauí.

Quando havia brigas entre Rato, os empresários dos MCs e os próprios funkeiros, o PCC costumava intervir. Em fevereiro deste ano, um desses empresários, chamado de Don, possivelmente ligado à facção, discutiu com o dono da Love Funk pelo WhatsApp. “Ontem tava a final inteira falando de vc”, escreveu Don, em referência à Sintonia Final, que reúne a cúpula do PCC. “Agora nós tá em guerra / Eu tô declarando”, continuou. Rato respondeu. “Vc é otário, manipulador de ideia […] o crime já sabe que nois é na inteligência c[om] vc.” A conversa, no entanto, terminou em tom apaziguador. “Viado nós vai começar de novo a parceria apagando o passado. […] E quero o nosso combinado 2.1 M[milhões de reais], Contrato do [MC] Vittin, os 30% do [MC] WN no contrato com nós”, escreveu Don.

Mas Rato não teria cumprido o acordo, e dias depois voltou a receber ameaças de Don. “Eu já vou te colocar no prazo”, disse esse último. “A final da leste vai te ligar aí”, concluiu, em referência à sintonia do PCC responsável pelo gerenciamento da Zona Leste da capital paulista. Rato não respondeu as mensagens. Não se sabe se o conflito foi ou não resolvido.

Em junho de 2021, a Love Funk ganhou um quinto sócio, dessa vez às claras. Wesley Rodrigo Goes Venceslau investiu 5 milhões de reais para se tornar sócio da empresa, fato que foi noticiado em alguns sites na época. Wesley Alemão, como é conhecido nas redes sociais, tornou-se um influencer popular com base no sorteio de carros de luxo e altas quantias em dinheiro entre seus seguidores – são 8,2 milhões apenas no Instagram. Para a PF, trata-se de uma prática criminosa, classificada como exploração de jogos de azar. Não há indícios de que o influencer seja filiado à facção, mas a Polícia Federal levantou indícios de que as rifas de Alemão são financiadas com dinheiro do crime organizado. À Receita Federal, Wesley Alemão declarou um total de 3 milhões de reais em bens. Uma análise do setor de inteligência do fisco federal constatou discrepâncias entre o seu patrimônio declarado e sua movimentação bancária. Sua defesa disse em nota que ele “é apenas divulgador de sorteios promovidos por empresa de capitalização devidamente registrada na Susep [Superintendência de Seguros Privados], fiscalizada pelo Ministério da Fazenda e auditada por empresas de renome internacional”.

Concorrente da Love Funk, Rodrigo Inácio de Lima Oliveira começou a investir no funk paulistano em 2012, com a empresa GR6, depois de tentar, sem sucesso, uma carreira com um grupo de pagode. Em pouco tempo tornou-se a maior produtora do setor no país, com um catálogo de mais de cem cantores, a maioria do funk, e movimentação financeira de 1,26 bilhão de reais entre 2017 e 2022. Oliveira, nascido em Pernambuco e criado na Zona Norte de São Paulo, tornou-se milionário. Em 2017, declarou à Receita um patrimônio de 8,7 milhões de reais; apenas cinco anos depois, sua riqueza havia crescido 1.200%, com 113 milhões de reais em bens. O empresário comprou por 16 milhões de reais uma casa de alto padrão no Jardim América, um dos bairros mais caros de São Paulo, e gastou 796 mil dólares em uma casa na cidade de Kissimmee, próxima a Orlando, na Flórida. 

Em 2020, o empresário iniciou a abertura de uma empresa offshore nas Bahamas, conhecido paraíso fiscal do Caribe, com a ajuda de Muller Santos de Souza, diretor financeiro da GR6. “Estou constituindo nossa companhia offshore nas Bahamas, fora do país”, escreveu Souza para o patrão em 2020, via WhatsApp. “Essas informações da companhia offshore somente vc deve possuir. Isso é uma blindagem total de patrimônio, ok?” Pelas conversas, não é possível saber se o projeto foi adiante. Para o governo federal, no entanto, Oliveira se dizia pobre: naquele mesmo ano de 2020, consta o seu nome entre os inscritos no programa de auxílio emergencial, voltado para pessoas pobres que perderam suas fontes de renda na pandemia. Desde aquela época, a GR6 está inscrita no Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), do governo federal, que concede incentivos fiscais a empresas ligadas ao setor de eventos, muito afetado durante o auge da Covid-19.

Ainda que, segundo a PF, não exista indício de ligação direta de Oliveira com o PCC, o crescimento assombroso no patrimônio do empresário veio acompanhado de algumas suspeitas. Entre 2017 e 2021, ele movimentou 6,3 milhões de reais em espécie, entre depósitos e saques na boca do caixa (a PF encontrou em um dos celulares dele várias imagens de maços de notas de reais e dólares). Além disso, segundo a PF, o empresário costuma movimentar dinheiro em contas de terceiros, possíveis laranjas. Para isso, recebe a ajuda de Leandro Gomes de Castro, o Pardal, parceiro da GR6 na contratação de shows e antigo affair da cantora Valesca Popozuda. Em 29 de janeiro deste ano, Muller Souza, o gerente financeiro da empresa, informou a Oliveira que Pardal havia repassado 100 mil reais para o caixa da GR6. Em seguida, Souza afirmou que o dinheiro poderia ter origem no narcotráfico. “Que é de droga, pode até ser”, escreveu. A defesa de Souza nega que ele tenha lavado dinheiro para o crime organizado, mas não quis dar mais detalhes, sob o argumento de que a investigação da PF tramita em sigilo. Pardal negou ter relação com o tráfico de drogas. “Sou empresário há mais de 30 anos, compositor de vários hits como ‘Beijinho no ombro’, ‘Hoje eu vou parar na Gaiola’, entre outros, e também  atuo na organização de shows e eventos desde a época da Furacão 2000 com Dj Marlboro”, disse.

Para a PF, outro indício de que a GR6 lava dinheiro do crime organizado surgiu na análise das movimentações bancárias da empresa de Oliveira: em maio de 2017, a GR6 recebeu 150 mil da FWM Produções e Eventos, do narcotraficante Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro, um dos líderes do PCC em Santos. Assim como Ronaldo Costa, Cabelo Duro também participou do assassinato de Paca e Gegê do Mangue em fevereiro de 2018 – o próprio Cabelo Duro acabaria morto em frente a um hotel em São Paulo poucos dias depois. A GR6 também possui negócios com Angelo Marcos Canuto da Silva, um ex-policial militar preso em 2014 por tráfico de cocaína no porto de Santos e próximo de André de Oliveira Macedo, o André do Rap, importante liderança do PCC na Baixada Santista, atualmente foragido.

Outro sócio de Rodrigo Oliveira, Vitor Hugo dos Santos, também promove rifas ilegais nas redes sociais, na companhia do cantor Ryan Santana dos Santos, o MC Ryan, agenciado pela GR6. Para evitar eventual fiscalização policial, a dupla paga propina a policiais civis de São Paulo, conforme diálogos capturados pela PF no celular de Vitor Hugo. “Eles [policiais] queriam 1 milhão e meio [de reais], já baixamos para 800 depois foi para 500, agora eu falei para eles que vão mandar um café lá para eles 50 mil… aí ele falou que ia ficar de conversar com o pessoal dele ia me dar uma resposta até sexta-feira… isso aí é pressão, eles vão querer dar uma pressãozinha… […] porque eles querem é mais dinheiro”, disse Vitor Hugo a Ryan em mensagem de áudio encaminhada via WhatsApp em 28 de fevereiro deste ano. 

No dia seguinte, o MC envia para o amigo uma contabilidade das rifas. Disse ter arrecadado 13,9 milhões de reais na rifa de uma casa, um automóvel Lamborghini e um motocicleta (o período não é especificado), e que costuma pagar 7% desse valor a policiais civis de São Paulo. O percentual corresponde a 970 mil reais, mas naquela ocasião, segundo o próprio cantor, ele obteve um desconto e fechou a propina em 150 mil. 

Dois dias depois, no entanto, policiais civis (não identificados pela PF) ameaçaram pedir à Justiça o cancelamento das contas de Ryan no Instagram, por conta das rifas ilegais. “Ô, viado, e os bagulho da polícia lá queria zoar meu Instagram lá, gay? Vamos trocar umas ideias com esses caras aí, gay, entendeu?”, disse o cantor a Vitor Hugo. No dia seguinte, Ryan disse ao amigo que pagou 100 mil reais a policiais do Centro da capital por meio de um advogado (não nomeado na conversa). “É bom mesmo ser amigos deles, cuzão. Bom ser amigo dessas delegacia, viado. Quando quiser, nois troca umas ideia, dá cinquentinha… melhor do que perder o Instagram onde nois pode fazer milhões”, disse o MC.

Três meses antes, em novembro do ano passado, outro cantor de funk, Silas Rodrigues Santos, o MC Brisola, também disse a Vitor Hugo ter pago 20 mil reais de propina para policiais civis do 6º Distrito Policial de Santo André arquivarem um inquérito contra Brisola por promover rifas na conta dele no Instagram. “Mas você não tá pagando um polícia lá? Não né? Esses caras ficam louco. Você tem que ganhar um dinheiro aí e dar uma sumida. Os caras ficam atrás de dinheiro”, disse Vitor Hugo. “Se desse dinheiro para um e parasse… O problema é que você vai ter que dar dinheiro para um monte.” Procurada pela piauí, a defesa de Vitor Hugo não se manifestou. Nem Ryan nem seus advogados foram localizados pela reportagem. A assessoria da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou em nota que a corregedoria da Polícia Civil “adotará as medidas legais e administrativas cabíveis” tão logo receba da Polícia Federal a documentação do caso.

A investigação da Polícia Federal ainda não foi concluída. Em nota, os advogados da Love Funk negaram que a empresa seja controlada pelo crime organizado ou que esteja envolvida em lavagem de dinheiro de atividades ilícitas. “[A empresa] sempre pautou pela verdade e pela ética, […] não tendo qualquer ligação com os ilícitos que estão sendo noticiados pela mídia que, aliás, encontram-se amparados em ilações levianas desprovidas de credibilidade. […] O que vem ocorrendo hodiernamente no caso em apreço é espetacularização, a superexposição de pessoas inocentes, sinônimo de uma criminalização ao mundo funk e o preconceito enraizado contra as culturas periféricas.”

A piauí enviou seis perguntas à assessoria da GR6, questionando a empresa a respeito das movimentações financeiras suspeitas, da tentativa de abertura de offshore no Caribe e da inscrição de Oliveira no programa de auxílio emergencial. A assessoria, entretanto, limitou-se a enviar uma nota genérica, em que, a exemplo da Love Funk, nega qualquer prática ilícita. “Maior produtora da América Latina e parceira dos grandes selos de música globais, a GR6 está em dia com seus compromissos com a Receita e recolhe mais impostos federais do que a principal empresa de entretenimento listada na Bolsa brasileira.”

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