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    Mulheres e crianças de uma comunidade de trabalhadores rurais fotografadas durante uma invasão de terra, em 1959, no município de Santa Fé do Sul (SP) Foto: Folhapress

questões políticas

O futuro está na terra

Na era digital, a questão territorial volta a ser um vetor essencial da economia e da democracia

Philip Yang e Otaviano Canuto, especial para a piauí | 27 set 2024_09h04
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O mercado é um mecanismo eficaz, mas, como todos os mecanismos, não tem consciência e tampouco misericórdia.

Octavio Paz

 

A revolução digital acarreta uma transferência dramática de poder, do trabalho para o capital. Qual seria o impacto dessa transformação sobre a terra como fator de produção?

Capital, trabalho e terra, desde os primórdios, foram identificados como os três fatores de produção essenciais para a criação de riqueza. Historicamente, no entanto, o grande debate nas ciências sociais esteve centrado na oposição entre capital e trabalho. A terra, embora um fator de produção fundamental, muitas vezes foi colocada em segundo plano em discussões econômicas.

Na era industrial, a importância da terra como recurso físico diminuiu em muitos setores, menos dependentes de recursos naturais e mais apoiados em inovação e tecnologia. Em economias modernas, o setor de serviços – que passou a responder por parcela majoritária do produto total – retirou ainda mais o protagonismo da terra por ser ainda menos dependente de territórios, em comparação com a agricultura e a manufatura. Na era digital, a importância da terra em relação ao capital e ao trabalho muda mais uma vez, mas deverá interromper a tendência de declínio relativo verificado em épocas anteriores.

A verdade é que a terra nunca deixou de ser um fator central em qualquer economia. A defesa de territórios foi e continua sendo a razão existencial de qualquer aparelho de Estado. A proteção da propriedade fundiária e imobiliária segue como objeto fundamental de qualquer ordenamento jurídico e prioridade no uso da força policial. No contexto da revolução digital em curso, resta observar os contextos em que a terra ganha ou perde importância e refletir sobre possíveis ações capazes de conter ou mitigar os efeitos colaterais negativos que tais mudanças possam gerar.

A revolução digital não acontece num vazio histórico. Ela se desenrola num quadro de confrontação ou de conluio entre forças de mercado e forças de governo. Dependendo do poder de mercado que as companhias forem capazes de exercer, a transição digital terá impactos distintos sobre as distribuições de renda entre o capital, o trabalho e a terra, bem como sobre a distribuição de renda dentro do próprio capital. E a transição digital avança num momento da história marcado pelo agravamento de quatro grandes crises cujos efeitos se entrelaçam: internacional, ambiental, democrática e distributiva.

 

No âmbito internacional, a revolução digital se desenrola num contexto de desglobalização marcado pelo agravamento de rivalidades econômicas e conflitos de natureza militar. Os acontecimentos de agora revertem as tendências de impacto sobre a terra verificadas em décadas anteriores, no período da chamada hiperglobalização, que se estendeu aproximadamente de 1990 a 2010.

A hiperglobalização pode ser definida como a intensificação sem precedentes dos fluxos de bens, serviços, ideias e capitais. O período foi ensejado pela queda do Muro de Berlim – evento que à época se imaginava ter encerrado o conflito Leste-Oeste –, pela integração comercial da China e pela liberalização geral do comércio mundial. Essa fase de hiperglobalização implicou uma certa desterritorialização das relações internacionais, uma perda da importância relativa do fator terra em comparação ao capital e ao trabalho. A produção de bens e serviços foi pulverizada em cadeias de valor situadas em diferentes lugares do mundo, com suas diversas partes fabricadas em múltiplos países antes de se tornarem um produto final. Esse método produtivo enfraqueceu a conexão entre produção e território nacional à medida que empresas multinacionais buscavam os locais mais eficientes e rentáveis para cada etapa da produção, independentemente das fronteiras nacionais.

A importância da terra como base de poder econômico e político, assim, declinou. A capacidade dos Estados de controlar e regular as atividades econômicas dentro de suas fronteiras foi enfraquecida. A liberalização dos mercados e a pressão por políticas neoliberais resultaram na transferência de poder das autoridades nacionais para mercados financeiros globais, corporações transnacionais e organizações internacionais. A superacumulação de capital levou a declínios no preço do capital: ou seja, taxas de juros reais menores. Por sua vez, o dinamismo macroeconômico global levou a uma forte elevação da demanda por produtos intensivos no uso de recursos naturais, inclusive a terra, particularmente em países da parte de baixo da pirâmide global de renda.

Embora o superciclo de preços de commodities viesse a desvanecer depois de 2010, o fato é que o preço relativo de recursos naturais teve uma evolução na direção contrária à do trabalho e do capital, e acabou exercendo pressão sobre os preços da terra. Mesmo com o aumento da produtividade e a disponibilidade mundial de terras subutilizadas, a expansão das fronteiras agrícolas e a globalização dos mercados geraram forte aumento nos preços das terras rurais. Em várias regiões do Brasil, um dos países que mais se beneficiou do boom das commodities, o preço médio por hectare da terra agricultável aumentou mais de dez vezes entre 1990 e 2010.

Essa valorização mercadológica da terra não foi acompanhada por uma preocupação quanto ao valor geopolítico do território. Essa hiperglobalização e desterritorialização começou a ser revertida após a crise do subprime em 2008, que inaugurou o período de desglobalização que vivemos hoje. Em 2010, o Brasil passou a adotar, por meio de parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), uma interpretação mais restritiva quanto à possibilidade de estrangeiros comprarem e cultivarem terras no país. Nos Estados Unidos, discussões nas esferas federal e estadual também têm abordado potenciais riscos à segurança nacional que a propriedade estrangeira de terras próximas a infraestruturas críticas e bases militares pode representar. Essas preocupações levaram a uma onda de atividade legislativa em vários estados, incluindo Flórida e Dakota do Norte, onde leis foram aprovadas para limitar a propriedade estrangeira em áreas consideradas sensíveis.

Em paralelo, o acirramento da rivalidade entre países ocidentais e a China, bem como o aumento de medidas protecionistas por diversos governos, reforçam essa tendência à reterritorialização, exacerbada por vários fatores que formaram uma “tempestade perfeita”: a pandemia, a eclosão de guerras regionais na Ucrânia e no Oriente Médio que reavivam a tensão Leste-Oeste e manifestações mais intensas e frequentes da mudança climática.

Nações começam a se retrair das cadeias globais de produção e comércio, e agentes econômicos passam a atribuir ênfase crescente à autossuficiência, ou à dependência exclusiva de nações amigas e leais, o chamado friendshoring. Esse movimento traz de volta o valor da terra na medida em que o controle sobre os recursos naturais e o espaço físico se torna central nas novas estratégias de desenvolvimento e segurança.

Com o avanço da transição digital, a segurança mineral torna-se imperativa. A exploração de minerais como lítio, cobalto e terras raras tornou-se crucial para a produção de componentes tecnológicos, o que colocou as áreas ricas nesses minerais sob um foco intenso de interesse geoestratégico. A concentração geográfica desses minerais (China detém 95% da produção mundial de terras raras; Chile, Bolívia e Argentina concentram 68% das reservas de lítio, enquanto a República Democrática do Congo controla 70% da produção mundial de cobalto) mobiliza países e corporações ansiosos por assegurar o acesso a esses recursos, o que faz com que a terra retome o seu papel balizador das possibilidades de conflito e cooperação entre Estados.

O valor geopolítico do território é acentuado pelo fato de que a indústria de microchips de alto desempenho – semicondutores com dimensões de processo de 5 nanômetros ou menores, caracterizados por alta densidade de transistores, eficiência energética e capacidades avançadas de processamento – também está concentrada em poucos pontos do planeta, alguns dos quais estrategicamente sensíveis, como é o caso de Taiwan. Embora não seja uma operação intensiva em terra, a fabricação de semicondutores, por ser uma atividade absolutamente essencial da revolução digital, contribui para a reterritorialização das relações internacionais.

Essa reterritorialização, claro, não é um vetor absoluto e deve ser vista por ora como uma tendência apenas, dado que o grau de interdependência entre as grandes potências é enorme. Tal fato impede a formação imediata de uma ordem econômica configurada em blocos antagônicos estabelecidos por critérios de friendshoring. A liberdade plena de escolher amigos não está aberta a ninguém, nem mesmo às superpotências.

 

No plano da crise ambiental, a revolução digital também ocorre num contexto de deslocamento de poder para a terra. Ao mesmo tempo em que acentua a fricção entre usos da terra para fins energéticos, alimentares e ambientais, a transição digital impulsiona a centralidade da terra, tanto pelo que as novas tecnologias demandam quanto pelo que as ferramentas digitais oferecem para a renovação e otimização dos processos de uso da terra.

A transição digital é marcada pelo avanço de atividades que exigem uma quantidade cada vez maior de energia elétrica, dada a proliferação de dispositivos eletrônicos, data centers, clusters computacionais para inteligência artificial, a mineração de criptomoedas e carros elétricos.

Devido à pressão exercida pela geração convencional de energia sobre o meio ambiente, a demanda por energia limpa intensifica os conflitos pelo uso da terra. No Brasil, por exemplo, se a área ocupada pelas plantações de cana-de-açúcar usadas na produção de etanol fosse coberta por painéis solares, teríamos uma capacidade total instalada suficiente para suprir cerca de dez vezes a nossa demanda total de energia elétrica. Da mesma forma, se a área total hoje utilizada nos Estados Unidos para o cultivo de milho transformado em etanol fosse convertida numa grande fazenda solar, a capacidade total instalada supriria o equivalente a três vezes a demanda total de energia elétrica do país. (O cálculo relativo aos Estados Unidos foi feito pela pesquisadora Hannah Ritchie, entrevistada recentemente em um podcast do The New York Times.)

Os imperativos da geração energética limpa, da segurança alimentar e da sustentabilidade trazem variáveis que se entrecruzam e envolvem dilemas, escolhas políticas e comportamentais que nem sempre são simples de serem feitas. Hoje, a agropecuária cobre metade da superfície habitável total do planeta, definida como a área total da Terra menos superfícies congeladas e desérticas. Desse total, apenas um quarto é usado para o cultivo de plantações; os três quartos restantes correspondem a áreas de pastagem, ocupadas predominantemente por gado, numa atividade que, como se sabe, contribui enormemente para as mudanças climáticas.

Mais do que nunca, o fundiário se torna um recurso vital, e as ferramentas digitais poderão apoiar as escolhas difíceis que temos diante de nós. Numa perspectiva mais otimista, tecnologias digitais impulsionam, pelo lado da oferta, inúmeras soluções capazes de otimizar e proteger o solo, tais como: (a) o monitoramento em tempo real, que possibilita o acompanhamento constante da terra, permitindo assim intervenções mais rápidas e eficazes tanto em queimadas – tema central num Brasil em chamas – como em plantações e desmatamentos ilegais; (b) a rastreabilidade das cadeias de suprimento via blockchain, desde a origem até o consumidor final; (c) a agricultura de precisão, que permite otimizar o uso de água e insumos, aumentando a produtividade e reduzindo o impacto ambiental, entre tantos outros exemplos de aplicação.

No caso brasileiro, temos o desafio adicional de examinar quais usos da terra poderão ser privilegiados para que as florestas tropicais sejam preservadas. As ferramentas acima mencionadas constituem apenas alguns dos exemplos em que o universo digital poderá alavancar exponencialmente as atividades de conservação de ecossistemas e a captura de carbono.

Em paralelo, plataformas digitais podem promover a fruição de locais remotos, estimulando o turismo rural e a geração de emprego e renda para comunidades locais. À luz das transformações trazidas pelo mundo digital, as cidades amazônicas podem ser repensadas de forma a serem transformadas em pilares da manutenção da floresta em pé, no bojo das transformações urbanas que a revolução digital em curso provoca, conforme veremos a seguir.

 

É no contexto das crises de representação democrática e de distribuição de renda que a terra apresenta potencial de mudança mais relevante em seu peso relativo, quando comparado ao capital e ao trabalho.

A revolução digital tem alterado profundamente o uso da terra nos locais mais densamente populados do planeta – as cidades. Um verdadeiro reordenamento espacial e funcional dos centros urbanos vem se desdobrando. Essa mudança radical de como ocupamos e utilizamos os solos urbanos na era digital abre perspectivas renovadas para buscar a superação daquele que certamente é o principal marcador emocional das sociedades hoje: o ressentimento, motor central das crises da democracia e da desigualdade.

Como sabemos, o ressentimento nas cidades se agrava devido a diversos fatores. A desigualdade econômica e social, exacerbada pela concentração de riquezas e oportunidades em áreas urbanas específicas, deixa muitos cidadãos à margem, sentindo-se crescentemente excluídos, desvalorizados e ameaçados. O ritmo acelerado das mudanças tecnológicas cria um sentimento crescente de insegurança e desorientação. Muitos trabalhadores urbanos enfrentam a obsolescência de suas habilidades e a precarização do trabalho, num quadro que abre um ciclo de frustração e impotência. A vida urbana moderna também pode levar ao isolamento social, mesmo em meio a grandes populações, devido à fragmentação da vida comunitária e à crescente dependência de interações digitais superficiais em detrimento de conexões humanas mais profundas e significativas.

O aumento do custo de vida nas grandes metrópoles força populações de baixa renda a se deslocarem para periferias, onde os serviços públicos e oportunidades são mais escassos. Dados agregados, atinentes às grandes metrópoles ocidentais, mostram uma supervalorização dos imóveis urbanos no pós-pandemia. O aumento vertiginoso da concentração de renda combinado com o velho uso dos imóveis como reserva de valor gera uma tendência de alta de preços. Boas cidades como Norfolk, São Francisco ou Barcelona atraem não só trabalhadores qualificados com altos salários como também turistas, que lotam unidades oferecidas pelo AirBnb. Tais fenômenos vêm agravando a crise habitacional em inúmeras cidades mundo afora. O problema não tem solução fácil. Afeta não apenas a população de baixa renda; condena uma parcela grande de toda uma geração de jovens que está sendo privada da capacidade de adquirir um imóvel próprio se assim desejar.

Entre tantos casos e exemplos, o contraponto desenhado pelas situações de Londres e Viena oferece referências para reflexão.

A capital inglesa vive há décadas uma grave crise habitacional, exacerbada por aluguéis exorbitantes e uma oferta insuficiente de moradias acessíveis. Muitas famílias gastam até metade de sua renda em aluguel, frequentemente em condições inadequadas. O aumento de 22% nos aluguéis no período de 2021 a 2023 deixou muitos sem opções, o que levou a um crescimento da população sem-teto e a um aumento no registro de furtos em lojas e supermercados.

Uma infinidade de fatores explica esse quadro dramático. Entre eles, salta à vista a política do Right to Buy – introduzida pela primeira-ministra Margaret Thatcher nos anos 1980 –, que, na tradição liberal inglesa reforçada pelas medidas que marcaram o seu governo, determinou a venda de mais de 1 milhão de unidades do estoque de moradias públicas. Uma decisão que substancialmente subtraiu do poder público a capacidade de atenuar a crise que se agravou nos anos seguintes.

Viena, por contraste, vem praticando políticas de subsídio ao aluguel que hoje abrangem 60% da população, por meio de um estoque imobiliário público e cooperativo que contribui para a estabilidade de preços. Na capital austríaca, o preço médio do aluguel (9,1 euros/m2) é significativamente menor que em outras grandes cidades europeias como Londres (26,6 euros/m2), Barcelona (25,7 euros/m2) e Madri (21,5 euros/m2). O sistema não se limita a atender pessoas de baixa renda, mas também uma ampla classe média, o que contempla o benefício adicional de evitar a segregação socioterritorial.

A tradição dessa política remonta aos anos 1920, quando os Gemeindebau (complexos habitacionais públicos) começaram a ser construídos, a partir de projetos concebidos com o objetivo de promover a interação entre os moradores em espaços compartilhados, como lavanderias, playgrounds e centros comunitários, e assim favorecer a construção de um senso de comunidade.

Os casos de Londres e Viena retratam situações-limite nas quais medidas liberalizantes e intervencionistas tiveram impactos importantes no resultado obtido hoje. Longe de merecerem ser condenados ou reverenciados, oferecem parâmetros importantes para aqueles que quiserem observar e aprender com acertos e erros presentes em ambas as situações.

Há evidentemente uma dimensão espacial nesse poço de emoções negativas que tomam os centros urbanos. As grandes transformações geoeconômicas vividas a partir dos anos 1980 acabaram exercendo forte impacto no ordenamento territorial das cidades do Ocidente. A hiperglobalização foi precedida e fundamentada pela transferência de grande porção das atividades industriais dessas cidades para a China, depois das reformas promovidas por Deng Xiaoping em 1978, que transformaram o país na grande fábrica do mundo.

Do ponto de vista econômico, a ascensão da China como potência industrial implicou em uma forte aceleração do processo de desindustrialização e na queda dos níveis de emprego e de renda do setor secundário em virtualmente todas as cidades do mundo ocidental. Há uma provável relação de causa e efeito entre a redução da pobreza na China e a estagnação da massa salarial no Ocidente. De 1980 para cá, 800 milhões de chineses saltaram a linha da pobreza, enquanto o crescimento dos salários médios dos trabalhadores nos Estados Unidos e em vários países europeus foi limitado e muito aquém do aumento da produtividade do trabalho. O fenômeno está na raiz do descontentamento social e dos movimentos anti-imigração e de extrema direita em vários países.

O declínio industrial das cidades ocidentais implicou o esvaziamento de zonas industriais inteiras. Diversos bairros centrais e ricos em infraestrutura tornaram-se ociosos, e desde então passaram a abrir espaços para projetos de requalificação urbana. Essas transformações no espaço ocorrem em duas etapas distintas, cada uma impulsionada por diferentes fatores tecnológicos e socioeconômicos: a fase da desindustrialização que se inicia há cinquenta anos, e a fase digital, mais recente.  

Na primeira, cidades como Sheffield, St. Louis e São Paulo, assim como Montreal, Manchester ou Milão, viveram esvaziamentos semelhantes, diretamente associados à desindustrialização. Nessas e em outras cidades, grandes áreas industriais ficaram ociosas, criando vastos terrenos centrais abandonados que, até hoje, estão sendo desenvolvidos. A fase digital começou a se manifestar mais claramente nas últimas duas décadas, impulsionada pela digitalização da economia e, mais recentemente, acelerada com vigor pela pandemia. A popularização do comércio eletrônico levou ao fechamento de muitas lojas físicas, especialmente aquelas que não conseguiram adaptar seus modelos de negócios para incorporar uma presença online. Com o fechamento de lojas físicas, muitas áreas centrais enfrentam um aumento na vacância, o esvaziamento e o aumento da insegurança. Uma caminhada pelo Centro do Rio de Janeiro, por exemplo, mostra que a ociosidade de 45% de seus espaços comerciais registrada em 2020 custa a regredir.

Diferentes iniciativas vêm sendo desenvolvidas para a ocupação desses espaços. Uma lista de projetos exemplares, que combinam mistura inovadora de usos com medidas de inclusão social, inclui o Rotterdam Makers District (Roterdã), o Scalo Farini (Milão), o Hub Criativo do Beato (Lisboa) e La Samaritaine (Paris). Os três primeiros casos se referem à requalificação de antigos armazéns e áreas industriais, enquanto o exemplo parisiense se origina de um edifício histórico no centro, que abrigou uma antiga loja de departamentos. Traço comum a esses quatro exemplos é a preocupação com a inclusão social e a mistura de usos. La Samaritaine chama atenção pelo fato de combinar hotel de luxo e moradia social, além de comércio e espaços culturais.

Essa reconfiguração de áreas urbanas, inicialmente provocada pelo fechamento de lojas físicas, recebeu novo abalo com a subsequente adoção do trabalho remoto e híbrido, que vem contribuindo para a desertificação de diversas áreas centrais e distritos comerciais. Centros de cidades como o Rio de Janeiro, Tóquio, Londres, Cidade do México, São Francisco, Paris ou Buenos Aires ainda sofrem com a diminuição ou quase desaparecimento e declínio qualitativo do comércio de rua e com o esvaziamento de lajes corporativas. Tomando Nova York como referência, o índice de vacância de escritórios é 22,8%, mais do que o dobro da taxa de 11% que prevalecia antes da pandemia, segundo a Avison Young, firma global de serviços imobiliários. Já o índice de inadimplência, que era de 0,57% em janeiro de 2023, saltou para 6,28% em janeiro de 2024, segundo a CoStar, empresa que monitora dados imobiliários.

Apesar das perdas consideráveis e da degradação de certas áreas urbanas, essa mudança radical de tendências nos usos da terra em centros urbanos desencadeou uma oportunidade para a utilização da terra como fator de mitigação das desigualdades e da segregação socioespacial – objetivo necessário e imperativo das democracias. A ociosidade não será eterna, e o varejo de rua não está totalmente morto. Espaços vacantes, cedo ou tarde, continuarão a ser buscados por agentes de mercado capazes de fazer sobreviver o varejo convencional ou de reinventar novas funções imobiliárias. No entanto, a vacância, quando muito persistente, deve ser objeto de políticas públicas voltadas para uma maior justiça espacial, uma distribuição mais equitativa de recursos, oportunidades e direitos no espaço urbano.

Disruptivas como têm provado ser, essas transformações apresentam desafios, mas também inúmeras oportunidades para a criação de ambientes urbanos mais inclusivos, sustentáveis e resilientes.

 

Capital, trabalho e terra constituíram os fatores de produção e vetores essenciais de poder que sustentaram os diferentes modos de produção ao longo da história e formaram o tripé sobre o qual se assentou a vida social. A revolução digital, ao reduzir a utilidade do trabalho e adicionar poder ao capital, desestabiliza esse conjunto de forças. Vitorioso na interação com o trabalho, que subjuga por meio da robotização avançada e ferramentas de inteligência artificial, o capital busca agora submeter a terra ainda mais à sua lógica.

Nesse contexto, distinguir as dinâmicas da terra urbana e rural é crucial. No campo, o avanço do capital tende a encontrar menos resistência, uma vez que a lógica neoextrativista e a expansão agrícola seguem sendo forças dominantes, muitas vezes apoiadas por políticas públicas que favorecem a acumulação de capital, a concentração fundiária e a exploração intensiva de recursos naturais. A mecanização do campo e o controle de vastas áreas por grandes conglomerados econômicos reduzem o espaço para resistências locais, exacerbando desigualdades e impactos ambientais. Por outro lado, nas cidades, a terra urbana concentra uma dinâmica mais complexa, onde o enfrentamento a interesses e impactos negativos gerados pelo mercado é organizado, alimentado por movimentos sociais, demandas por justiça social e ambiental.

No âmbito rural, a prevalecer a lógica mecanicista de acumulação do capital – o que não é improvável dada a configuração de forças hoje em curso no mundo –, a terra, sobretudo quando pensamos as novas fronteiras de exploração do Sul Global, será objeto de novos ciclos de empreendimentos, que trarão em seu bojo preocupações econômicas e socioambientais: desmatamento e degradação de ecossistemas, impactos sobre comunidades tradicionais e povos indígenas – depositários de conhecimento valioso para a construção de métodos de manejo sustentável e produtivo de ambientes naturais, que a revolução digital pode potencializar.

Primeiro, importa observar se as ferramentas digitais (e nossa capacidade de aplicá-las) avançarão numa velocidade suficiente para interromper ou ao menos atenuar os impactos negativos do extrativismo – tanto os ambientais quanto os sociais. A segunda questão é de natureza geopolítica: o neoextrativismo reforçará a excessiva dependência econômica dos países do Sul Global a uma pauta primária de exportações? Ou, ao contrário, fortalecerá o poder de barganha ante as demandas crescentes por segurança alimentar e ambiental em todo o mundo?

No caso do Brasil, ainda que detenhamos tal poder de barganha, seremos capazes de exercê-lo para buscar uma rota de desenvolvimento menos dependente do setor agropecuário? Diante da fragmentação interna, que resulta da captura das instituições públicas por interesses particularistas e da incapacidade do governo de identificar e definir quais seriam vetores unívocos de interesse nacional, parece improvável que seremos capazes de usar nossa base de poder territorial como barganha ou de contribuir para uma nova ordem menos assimétrica.

O caso na negociação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE) ilustra os dilemas e a complexidade para a definição dos interesses de parte a parte. De um lado, os agricultores franceses, secundados por um forte lobby agrícola, resistem ao acordo por temerem a concorrência de produtos primários sul-americanos, cuja produção, no caso do Brasil, é considerada mais eficiente e competitiva. Essa resistência se soma à preocupação sobre a segurança alimentar e os padrões de qualidade que, na visão de consumidores europeus, podem ser comprometidos com a entrada de produtos que não atendem a rigorosos critérios ambientais e de produção. Por outro lado, essas preocupações são compartilhadas por diversos consumidores brasileiros, que também se opõem a práticas que possam prejudicar o meio ambiente.

Assim, a negociação do acordo se torna um campo de batalha entre interesses conflitantes: enquanto os agricultores franceses se opõem a produtores brasileiros, consumidores europeus e brasileiros comungam interesses comuns e pressionam por padrões mais elevados e proteção ambiental. Essa tensão revela um panorama complexo, onde as necessidades de desenvolvimento econômico e a urgência de proteção ambiental precisam ser equilibradas, refletindo as contradições que permeiam as negociações internacionais contemporâneas.

Para o Brasil, vale defender o livre comércio e a redução de barreiras comerciais para a expansão do mercado exportador? Ou é melhor concordar e colaborar com a imposição do governo francês de padrões voltados para a descarbonização e a proteção da biodiversidade que, afinal, também são de interesse da população brasileira, mas encontra resistência em determinados segmentos do agronegócio?

Parece natural que a disputa pelo uso da terra venha requerer algum tipo de arbitragem política, dado que o equilíbrio determinado meramente pela dinâmica de mercado tenderá a produzir externalidades graves capazes de colocar a sobrevivência da espécie humana em risco. Nesse caso específico da interação do Brasil com a Europa, é plausível que uma hipotética convergência de interesses entre consumidores brasileiros e europeus (ambos interessados, por exemplo, em normatizar o uso de agrotóxicos) seja simultânea a uma oposição da sociedade brasileira à postura negociadora do governo em favor de padrões de controle de toxicidade menos rigorosos. Infelizmente, como em qualquer democracia pluralista, políticas resultam da pressão que o governo recebe do grupo mais capaz de fazer valer seus interesses.

A terra rural demonstra, portanto, ser presa fácil da mecânica concentradora do capital, e a terra urbana parece constituir-se como último bastião de resistência à sua reprodução social e ambientalmente desequilibrada.

 

Apesar de ser igualmente predominante no âmbito da terra urbana, a lógica do capital tem nas cidades a possibilidade de encontrar formas de reprodução mais equitativas. Por ora, no universo urbano, a revolução digital não tem apresentado capacidade de contrarrestar os impactos negativos da mecânica da exploração capitalista, mas é nas cidades que o caldo de resistência guarda possibilidades de engrossar.

As chamadas cidades inteligentes, apesar do potencial enorme de melhorias de facilidades e serviços urbanos, vêm replicando a lógica de segregação espacial e de concentração de oportunidades em áreas privilegiadas. Os processos de mercantilização e de exploração intensiva de recursos, característicos do neoextrativismo, encontram eco nas dinâmicas urbanas. As estruturas dos municípios replicam o fenômeno da captura do poder público por interesses particularistas.

A diferença – que abre um fio de esperança – é de que a intervenção das forças de mercado nas cidades acaba gerando impactos que recaem diretamente sobre o cotidiano de uma maioria crescente da população mundial, o que faz com que a terra urbana e seus ocupantes possam eventualmente erguer-se como vetor de resistência em favor de formas novas de reprodução e de distribuição do capital.

Movimentos sociais pacíficos, como o Movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos (nos anos 1950 e 1960), as Jornadas de Junho (2013) no Brasil, a Revolução de Jasmim na Tunísia (2010), o Solidariedade na Polônia (nos anos 1980), as Revoluções de Veludo e das Rosas, na Tchecoslováquia (1989) e na Geórgia (2003), respectivamente, o Black Lives Matter (2013), Occupy Wall Street (2011), os Coletes Amarelos na França (2018), entre tantos outros, demonstram como a mobilização pacífica é capaz de promover transições, redirecionar políticas, obter concessões ou gerar consciência mais ampla entre tomadores de decisão nos setores público e privado.

As mobilizações promovidas pela ativista Jane Jacobs (1916-2006) nos Estados Unidos e no Canadá também constituem exemplos emblemáticos de como movimentos cívicos podem ser eficazes como forças de resistência a mudanças indesejadas. Em Nova York, as ações vitoriosas de Jacobs evitaram a construção da Lower Manhattan Expressway, via que, proposta por Robert Moses (1888-1981), figura central na transformação da infraestrutura da cidade ao longo do século XX, implicaria a destruição de bairros como o Greenwich Village e Soho. Em Toronto, sua liderança foi fundamental para o sucesso do movimento Stop Spadina, que logrou impedir a construção da Spadina Expressway que, da mesma forma, teria feito terra arrasada do bairro The Annex.

No entanto, um movimento de massa, que abrace a causa dos direitos sobre a terra urbana, segue sendo uma lacuna na história. Talvez o mais próximo entre os exemplos citados tenha sido as Jornadas de Junho que, como sabemos, irrompeu tendo por causa o tema pontual do aumento das tarifas de transporte público, mas rapidamente transbordou o sentimento coletivo de insatisfação ao ampliar o seu escopo para questões mais amplas como a melhorias nos serviços públicos, o mau uso de recursos orçamentários e o combate à corrupção. O movimento Direito à Cidade – lançado na década de 1960 na França sob inspiração dos trabalhos do sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-91) e ​​posteriormente fortalecido pelas contribuições do geógrafo britânico David Harvey, que expandiu as ideias de Lefebvre a partir da década de 1970, abordando as questões de justiça social e a luta contra as desigualdades urbanas no contexto do capitalismo global – influenciou e continua a influenciar muitas lutas urbanas ao redor do mundo. No entanto, as ideias de ambos têm sido mais difundidas em movimentos locais de ativistas, na defesa de políticas públicas específicas do que em protestos de massa voltados para a criação de mecanismos de governança sistêmica da terra urbana.

O tema da governança global para cidades ganhou guarida na ONU, por meio de ações que levaram à construção da Agenda 2030 e da Nova Agenda Urbana. Os dois documentos estabelecem diretrizes e objetivos para políticas públicas e práticas urbanas em escala global e têm o mérito de trazer as questões urbanas para o centro da agenda global. São complementares aos movimentos “de baixo para cima” inspirados pelo Direito à Cidade, mas como ação internacional, “de cima para baixo”, enfrentam desafios na transformação de ideias em realidade concreta, especialmente na tradução dessas diretrizes para contextos locais diversos e na harmonização com as dinâmicas econômicas e sociais existentes.

 

A relação entre capital, trabalho e terra é, no plano da economia, a imagem-espelho material do embate político entre forças de mercado, da sociedade civil e de governo, vetores constitutivos dos agrupamentos humanos desde os tempos ancestrais. A eventual preeminência do capital sobre a terra no campo econômico corresponderá em última análise à supremacia das forças de mercados na definição dos rumos da vida social. Corresponderá, em termos práticos, ao declínio da democracia liberal.

Democracia e capitalismo estão em rota de colisão. O capitalismo segue gerando desigualdades extremas de renda e patrimônio, enquanto a democracia se propõe a partilhar o poder político de forma igualitária. O primeiro avança mais rápido do que o segundo; a moldura do liberalismo econômico tem promovido a acumulação do capital mais velozmente do que a democracia tem sido capaz de difundir a cidadania. E se as democracias liberais são ineficazes na contenção dos processos de concentração de renda, resta como alternativa a reflexão e a ação em favor do uso da terra urbana como ferramenta distributiva, dado que o ativismo da população urbana pode ser o único vetor de poder capaz de provocar pacificamente mudanças desejáveis.

O receituário é conhecido de todos. A oferta pública e privada de bens coletivos infraestruturais nas cidades, incluindo nessa categoria os serviços habitacionais, deve ser utilizada como método sistêmico de geração de bem-estar. Esses bens coletivos – a paisagem urbana, o patrimônio histórico, calçadas cuidadas, ruas iluminadas, parques e praças, wi-fi público, redes de mobilidade – conferem qualidade de vida e dignidade à população. Diminuem concretamente o sentimento e a realidade das diferenças socioeconômicas.

A concessão de Renda Básica Universal (RBU), conforme apregoado hoje também por ativistas do Vale do Silício, pode até ser bem-vinda para facilitar a compra de bens de consumo individual, mas em nada contribui para o provimento de bens de uso coletivo, também essenciais para a fruição de uma vida digna. Ou seja, num quadro de exclusão, a RBU pode servir de apoio para a compra na mercearia, mas não nos serve para garantir uma boa calçada ou uma nova passarela que ofereça acesso à estação de trem para as pessoas que moram do lado dos trilhos sem acesso à estação – uma situação que não é incomum.

Nesses e em outros tantos contextos urbanos, a escuta territorial assume importância fundamental. A implementação de políticas que incentivem a melhoria de infraestruturas e a habitação social terá muito mais chance de sucesso se elas forem fundamentadas em processos amplos de participação. Como sabido, movimentos por moradia, no Brasil e em vários países, dominam especificidades da gestão condominial muito melhor do que órgão de governo. Da mesma forma, associações de moradores conhecem muito mais as realidades de seus bairros do que burocracias municipais. O engajamento cidadão e comunitário no planejamento e gestão urbana é, portanto, essencial para garantir que as políticas públicas de fato reflitam as necessidades e aspirações de toda a população.

A transição digital carrega o potencial – e a responsabilidade – de radicalizar processos participativos que permitirão que cidadãos tenham voz nas decisões sobre o uso da terra e que podem resultar em soluções mais funcionais, justas e inclusivas. Isso inclui desde consultas públicas, o estabelecimento de conselhos comunitários ativos, até mecanismos de visualização 3D e de realidade virtual que auxiliem a população a decidir sobre o futuro da cidade.

A “escuta” territorial pode ser amplificada com a implantação de sensores e dispositivos IoT (Internet das Coisas) que permitem uma gestão mais eficiente dos serviços urbanos, como iluminação pública, gestão de resíduos e monitoramento de tráfego. A coleta e análise de grandes volumes de dados urbanos devem ajudar cada vez mais as autoridades públicas a tomar decisões mais informadas e a planejar de forma mais eficaz.

A democracia constitucional é um jovem experimento com menos de três séculos de idade. Na perspectiva de Robert Dahl (1915-2014), a democracia é um ideal dificilmente realizável. Os regimes políticos “democráticos” reais não são, segundo Dahl, efetivamente democracias, mas poliarquias, sistemas de governo que se movem num contexto de competição e influência de múltiplos atores políticos. A realidade de hoje nos mostra que, além de não se concretizar como fórmula de representação política, a democracia fracassou. Numa perspectiva otimista, a democracia é um regime que elevou a condição humana, protegeu direitos individuais e aprimorou a vida em sociedade, mas de forma historicamente efêmera. Acontecimentos recentes parecem indicar que a democracia estremece a ponto de ruptura dos pilares que a sustentam em (a) contextos prolongados de recessão, (b) processos continuados de aprofundamento da desigualdade e (c) quadros de captura permanente das instituições de Estado e de governo por forças de mercado.

Trata-se de um ideal teórico que pressupõe a participação igualitária de todos os cidadãos nas decisões políticas, a ausência de coerção e a máxima liberdade individual. É um modelo tentativamente benévolo, porém raramente encontrado na prática, plausível apenas em contextos restritos.

Se quisermos buscar a sobrevivência da democracia, entendida como um processo contínuo de aprimoramento das formas de participação política da sociedade, a potencialização do uso da terra para a infraestrutura terrestre e digital como ferramentas para fornecer bens públicos pode desempenhar um papel crucial na mitigação de desigualdades e na superação do clima de ressentimento generalizado que prevalece hoje.

A terra urbana, mais do que um recurso físico, representa o último foco de resistência contra a lógica desigualitária do capital. Nas cidades, onde se desenrolam os temas centrais da vida contemporânea, a terra pode ser o alicerce de um modelo de desenvolvimento social e ambientalmente mais equilibrado. A revolução digital oferece ferramentas para renovar a ocupação urbana, promovendo justiça e inclusão, mas é a vontade humana, orientando conscientemente essas lógicas, que evitará o mecanicismo impessoal do mercado. A gestão da terra urbana, fundamentada na intencionalidade coletiva, deve ser reconhecida como um ativo estratégico na construção de um futuro em que o progresso seja guiado por equidade, resiliência e responsabilidade social, com a dignidade humana e o meio ambiente no centro das decisões.

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