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    Desde 2014, o Conselho Nacional de Educação vem retirando informações de livros didáticos. Entre elas, o fato de que nacionalistas da direita sempre se opuseram à campanha de Gandhi por relações pacíficas entre hindus e muçulmanos Foto: Money Sharma/AFP

questões ideológicas

Gandhi no país da ultradireita

Disputando um terceiro mandato, Narendra Modi tenta se apropriar da imagem do líder histórico da Índia – mas, para isso, precisa antes distorcer tudo o que ele sempre defendeu

Aditya Narayan Sharma, da The Drift | 15 maio 2024_09h38
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Reportagem publicada originalmente na revista The Drift.

Tradução de Isa Mara Lando

Mesmo fora da Índia, é difícil escapar do culto a Mohandas Gandhi, o advogado, pensador e político que ajudou a libertar o país do domínio colonial britânico em 1947. Os elogios vão do inócuo (“um herói não apenas para a Índia, mas para o mundo todo”, disse Barack Obama) ao surreal (“Eu sou como Gandhi. Eu penso como Gandhi. Eu ajo como Gandhi”, afirmou Eric Adams, prefeito de Nova York). Setenta e seis anos depois da sua morte, Gandhi não é apenas símbolo da independência da Índia, mas também da paz e da não violência. Como diz o historiador Vinay Lal, o líder indiano virou um “santo padroeiro” dos ambientalistas, pacifistas, nudistas, vegetarianos, reformadores sociais, internacionalistas, moralistas, líderes sindicais, grevistas de fome, anarquistas, luditas, celibatários – “e muitos outros”. Por mais que tenham agendas díspares, todos parecem endossar o título honorífico cunhado para Gandhi há mais de um século: “Mahatma”, que em sânscrito significa “grande alma”.

Na Índia, a efígie de Gandhi está em todas as cédulas de dinheiro. É colada em outdoors e pintada nos muros de grandes avenidas. Seu rosto, com o par de óculos característico, paira sobre as cidades, grandes e pequenas. Incontáveis escolas, universidades e estradas levam seu nome. Em 2013, o governo de Bihar, estado mais pobre da Índia, gastou milhões de dólares para construir a estátua de Gandhi mais alta do mundo, uma torre de bronze reluzente que o retrata ao lado de duas crianças.

Figuras públicas lutam para superar umas às outras na adoração ao Mahatma, algo como um esporte nacional. Em 2021, viralizou um vídeo que mostra o líder regional de um partido agarrado a um busto de Gandhi, soluçando, em prantos. Apesar dessa onipresença, o fato é que, entre políticos, jornalistas, intelectuais e a população em geral, o legado de Gandhi – suas ideias, seus valores – ainda está em disputa.

Começou, há cerca de um mês, a eleição geral na Índia, que é dividida em várias etapas e está prevista para terminar somente em 4 de junho, quando terá início a contagem dos votos. Com quase 1 bilhão de eleitores habilitados, é a maior eleição do mundo. O partido nacionalista hindu Bharatiya Janata (BJP), liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, provavelmente vai derrotar o Partido do Congresso Nacional Indiano, de centro, obtendo, com isso, seu terceiro mandato consecutivo. O BJP comanda o país desde 2014.

A eleição tem trazido à tona visões conflitantes sobre Gandhi. O Partido do Congresso, que foi liderado pelo próprio Gandhi durante a luta pela independência, ainda tenta capitalizar suas conexões históricas com o Mahatma, mas sem grande sucesso. O BJP, enquanto isso, diz se identificar com Gandhi ao mesmo tempo em que contraria suas bandeiras – mais notadamente, a busca pela unidade hindu-muçulmana. Mas é um movimento duplo. Facções menos envergonhadas da ultradireita, ligadas ao mesmo BJP, se opõem ao líder histórico da libertação indiana. Seu legado é cada vez mais questionado na imprensa e no cinema; sua imagem é ridicularizada; suas efígies são queimadas em atos políticos.

Depois de ser transformado pelos liberais e centristas do mundo em uma figura de proa, genérica, afável e mal definida, Gandhi agora está sendo abraçado – e, simultaneamente, profanado – pela extrema direita indiana, hoje mais forte do que nunca.

 

No imaginário popular, Gandhi evoca austeridade e simplicidade. Apesar da aparência humilde que adotou na vida adulta, ele nasceu em uma família abastada de Gujarat, no extremo Oeste da Índia. Como era comum entre os filhos da elite, estudou na Inglaterra. Cursou direito no University College London e no Inner Temple, uma prestigiosa associação de advogados. Não era, contudo, uma figura de ares aristocráticos – diferentemente de seu contemporâneo Jawaharlal Nehru, ex-primeiro-ministro da Índia (o primeiro a assumir o cargo, em 1947), que, num episódio que entrou para o anedotário político, definiu a si mesmo como “o último inglês a governar a Índia”.

A estética de Gandhi era propositadamente indianizada, em uma demonstração de simpatia pelas pessoas comuns. Em 1921, ele trocou o terno de advogado pelo dhoti – pano sem costura amarrado na cintura, geralmente vestido por homens – e um xale, feitos com algodão fiado à mão, cujo uso ele defendia como alternativa aos tecidos importados. (Em uma visita a Londres, em 1931, Gandhi usou esse traje típico até mesmo para tomar chá com o Rei George V no Palácio de Buckingham).

Seu vocabulário político, rico em palavras do sânscrito, também lhe permitiu superar a divisão entre as massas e as elites anglicizadas da Índia. O mais famoso de seus neologismos derivados do sânscrito talvez seja satyagraha (a força da verdade), que Gandhi usava para se referir ao seu estilo de resistência pacífica. Outros termos religiosos que ele popularizou são swadeshi (autossuficiência), swaraj (governo independente) e ahimsa (não violência). Sua concepção idealizada de um governo igualitário e democrático era, segundo ele, um Ramrajya – o reino de Ram, uma importante divindade hindu.

Gandhi desenvolveu sua teoria da não violência em resposta à opressão sistemática contra os indianos que viviam na África do Sul, onde ele trabalhou como advogado antes de iniciar sua carreira política. Voltou para a Índia em 1915, já com uma reputação internacional de ativista. Engajou-se com entusiasmo no movimento pela independência e se filiou ao Partido do Congresso, que mais tarde viria a dirigir por duas décadas, juntamente com Nehru. O partido, naquela época, era uma força política de menor importância. Gandhi ampliou seu alcance, afastando-o de sua base majoritariamente elitista e atraindo a população por meio da retórica e dos símbolos hindus. Ao mesmo tempo que recorria a conceitos religiosos, no entanto, Gandhi criticava a ortodoxia e a desigualdade do sistema de castas. Sempre militou contra a designação de um grupo de pessoas como “intocáveis” – na época, o nível mais baixo da hierarquia social indiana (Gandhi provinha de uma casta abastada de comerciantes).

Depois da Primeira Guerra Mundial, Gandhi se concentrou em derrubar o domínio britânico na Índia. Em sua famosa Marcha do Sal, em 1930, liderou um grupo de seguidores por 390 km até o mar, em protesto contra o monopólio do sal pelo governo colonial. As autoridades prenderam cerca de 60 mil manifestantes. Gandhi também trabalhou para unir os hindus e os muçulmanos, que tinham um longo histórico de embates, afirmando que a união dos dois grupos seria um forte argumento para a criação de uma Índia independente e pluralista. Nem todos endossavam essa visão: os fundadores do atual Paquistão propunham um país separado, de maioria muçulmana, ideia que acabou preponderando. Quando foi conquistada a independência, em 1947, criaram-se dois países: Índia e Paquistão. A divisão causou motins e episódios de violência que, estima-se, mataram até 2 milhões de pessoas. Gandhi passou o Dia da Independência em Calcutá, jejuando – uma de suas principais táticas de satyagraha.

O pluralismo de Gandhi sofreu oposição não só das lideranças muçulmanas do Paquistão, mas também da direita religiosa da Índia. Os nacionalistas hindus são adeptos à ideologia do Hindutva – termo que se popularizou nos anos 1920 e representa a visão de uma nação hindu, poderosa e dominadora. Eles culpavam a posição conciliatória de Gandhi pela Partição – como ficou conhecida a separação entre Paquistão e Índia – e desprezavam seus esforços em prol da tolerância religiosa. Nas palavras de um importante líder Hindutva, Gandhi era um “maricas”. 

Um dos principais braços da ideologia Hindutva é o Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), grupo paramilitar voluntário fundado em 1925. Foi justamente um integrante do RSS – um homem de 37 anos chamado Nathuram Godse – que assassinou Gandhi a tiros em 30 de janeiro de 1948. Mais tarde, em seu julgamento, Godse culpou Gandhi por não ter conseguido impedir a Partição e não ter protegido os hindus contra a violência religiosa.

Aproximadamente 1,5 milhão de pessoas compareceram ao funeral de Gandhi, em Nova Delhi. Sentenciado à morte, Godse foi enforcado em 1949, mas o RSS sobreviveu. (Durante o julgamento, o assassino alegou que já havia se desfiliado da organização quando matou Gandhi, um argumento duvidoso que a RSS difundiu durante décadas, mesmo sem apresentar evidências. Seja como for, Godse foi um produto ideológico do Sangh Parivar, termo que designa as várias organizações nacionalistas derivadas do RSS.)

Hoje, estima-se que os membros do RSS sejam ao menos 5 milhões na Índia. O Sangh, como um conjunto, ascendeu a um nível de poder que seria impensável em 1947: uma de suas principais organizações é o BJP, de Narendra Modi, hoje o maior partido político do mundo em número de filiados.

Uma jornalista indiana publicou recentemente um artigo no Washington Post em que classifica Gandhi como “irrelevante” na Índia atual, mas a presença dele ainda se faz sentir. Um veterano do Partido do Congresso, Rahul Gandhi (que, apesar do nome, não tem parentesco com Mahatma), definiu as eleições deste ano como um confronto: “De um lado, está Gandhi. Do outro, está Godse.” O presidente da legenda, por sua vez, disse que derrotar Modi seria “um verdadeiro tributo a Mahatma Gandhi”.

O Partido do Congresso ainda recorre regularmente a greves de fome e marchas gandhianas, tais como a Marcha Unite India, um enorme evento de campanha realizado em 2022 em protesto contra o BJP e sua gestão econômica. Fgurões do partido caminharam mais de 3 mil km numa tentativa de reproduzir a Marcha do Sal. 

Gandhi, no entanto, é um trunfo disputado. O BJP, numa tentativa flagrante de reescrever a história, hoje vem se apresentando como o verdadeiro herdeiro dos valores de Gandhi – embora seja, na verdade, herdeiro da ideologia que causou seu assassinato.

Desde a vitória de Modi nas eleições gerais de 2014, o Conselho Nacional de Educação retirou algumas informações dos livros didáticos do ensino médio. Entre elas, o fato de que nacionalistas da direita se opuseram à campanha de Gandhi por relações pacíficas entre hindus e muçulmanos. Os livros também não dizem mais que o RSS foi banido da Índia por um breve período depois do assassinato de Gandhi.

Modi raramente perde a oportunidade de elogiar Mahatma em seus discursos e artigos, e visita com frequência o Raj Ghat, memorial dedicado a Gandhi em Nova Delhi. Óculos redondos estampam o logotipo do plano de saneamento de Modi, Swachh Bharat (“Índia Limpa”). O primeiro-ministro já afirmou que Gandhi foi a inspiração para algumas de suas políticas, como a Atmanirbhar Bharat (“Índia Autossuficiente”), campanha que busca tornar o país menos dependente do comércio internacional e que se aproveita do conceito gandhiano de swadeshi.

Modi e seu governo sabem da necessidade prática de louvar Gandhi, mesmo que desprezem suas ideias mais fundamentais. A popularidade do Mahatma é grande demais para ser ignorada. Ele é central na mitologia da fundação da Índia.

 

Desde que o BJP consolidou sua maioria, vencendo com folga a reeleição em 2019, Modi tem ido além da mera iconografia, citando Gandhi para fins evidentemente não gandhianos. No mais recente aniversário do discurso Quit India (Saiam da Índia), feito por Gandhi em 1942 e endereçado aos colonizadores britânicos, o primeiro-ministro fez uma reinterpretação populista das palavras do Mahatma: “Corrupção, saia da Índia. Dinastia, saia da Índia. Apaziguamento, saia da Índia.” (A palavra “dinastia”, aqui, é uma referência à família do ex-primeiro ministro Nehru, cuja família comandou o Partido do Congresso junto com Gandhi. Já “apaziguamento” é o que a direita considera ser a subserviência do Congresso às minorias religiosas).

Modi chegou a dizer que a Lei da Emenda à Cidadania, de 2019, que facilita a obtenção da cidadania por minorias como budistas e sikhs – excluindo deliberadamente os muçulmanos, uma decisão sem dúvida não gandhiana – tinha o objetivo de “realizar os desejos de Gandhi-ji”. (O sufixo “-ji” é um sinal de respeito.)

Recentemente, o Museu e Memorial de Gandhi, administrado por um órgão governamental presidido por Modi, dedicou uma edição especial de sua revista a Vinayak Savarkar, principal pensador do nacionalismo hindu e grande influência para Godse, o assassino de Gandhi. No ano passado, o Sarva Seva Sangh, instituto educativo fundado para celebrar o legado de Gandhi, foi demolido porque a autoridade ferroviária estatal reivindicou o terreno onde ele ficava.

Enquanto isso, por trás dos discursos oficiais, a base do Hindutva trabalha discretamente para minar o apoio popular a Gandhi – em alguns casos, até mesmo glorificando seu assassino. Parlamentares do BJP recentemente chamaram Godse de “patriota” e “nacionalista”. Em 2019, no aniversário do assassinato de Gandhi, a líder regional de um grupo hindu organizou um evento público durante o qual deu um tiro e queimou uma efígie do Mahatma. “Se eu tivesse nascido antes de Godse, eu mesma teria atirado em Gandhi”, ela afirmou, sem pudor, ao New York Times.

Outros nacionalistas hindus criticam o secularismo de Gandhi como produto de uma elite desconectada da realidade, que favorecia minorias em detrimento da maioria. O secularismo, no sentido gandhiano, não implica a separação entre Igreja e Estado – impossível na prática em um país profundamente religioso como a Índia. Pelo contrário, é um pensamento que propõe o tratamento igualitário de todas as religiões – e que causa, portanto, repulsa na direita nacionalista (A palavra “Sickular”, ou seja, “secular”, “laico”, é um termo pejorativo usado pelo Hindutva). 

A não violência pregada por Gandhi – raiz de uma das estratégias mais bem-sucedidas na história da luta anticolonial – também é atacada pela direita como sinal de fraqueza. Para os nacionalistas hindus, a não violência é um resquício do colonialismo, prova de que este nunca foi realmente expurgado do país. Modi, que costuma destacar suas origens humildes como filho de um vendedor de chá, já prometeu várias vezes libertar a Índia dessa carga histórica – chamando o domínio estrangeiro de “o tempo da escravidão”, argumentando que o Partido do Congresso absorveu a “mentalidade de escravo” do Raj, o período colonial, e afirmando que, no seu governo, o país finalmente vai romper esses grilhões.

Tudo isso ocorre num cenário em que a direita hindu firmou controle total sobre a mídia. Esse domínio se construiu por meio do assédio legal, de aquisições e da instrumentalização de verbas de publicidade. Numa pesquisa recente, 82% dos jornalistas indianos caracterizaram seus patrões como pró-BJP. A televisão, os jornais e os sites do país ampliam a distorção do legado de Gandhi, encontrando pouca resistência pelo caminho.

Em um dos canais de notícias em inglês mais assistidos da Índia, o âncora Arnab Goswami acusou recentemente o Partido do Congresso de “tentar se apropriar do legado de Gandhi-ji” e “usar a cartada de Godse”, ou seja, apontar a ligação entre o BJP e o assassino de Gandhi. O vídeo foi postado no YouTube, onde recebeu comentários como “Gandhi foi um líder fraco, covarde, enquanto Nathuram Godsey [sic] foi um verdadeiro patriota”; “Temos orgulho de Godsey [sic]”; “Vida longa ao RSS”.

Embora Gandhi seja um personagem popular demais para ser atacado frontalmente, apoiadores do BJP na imprensa encontram subterfúgios para enfraquecê-lo e normalizar as opiniões mais extremas da direita hindu. Muitas personalidades proeminentes da mídia têm atacado o caráter e a moral de Gandhi, chamando atenção para o que consideram ser uma excessiva simpatia pelos muçulmanos e um relacionamento próximo com as classes dominantes. Anand Ranganathan, comentarista de um canal de tevê pró-governo, publicou no X (ex-Twitter) um vídeo no dia do aniversário de Gandhi – feriado nacional, comemorado em 2 de outubro – listando jocosamente os malfeitos do Mahatma: episódios de racismo, testes de seu celibato voluntário – que consistiam em dormir nu ao lado de mulheres jovens – e um suposto desprezo pelo bem-estar da maioria hindu.

 

O cinema indiano, que desempenha papel importantíssimo no discurso social e político do país, tem ajudado a reescrever a história de Gandhi. No ano passado, o filme Gandhi Godse – Ek Yudh imaginou Gandhi e Godse sentados numa mesma cela, na prisão, resolvendo suas diferenças. O enredo culmina em uma cena em que Godse protege Gandhi do tiro de outro assassino. O Hindu Mahasabha, grupo militante da direita hindu, pediu ao governo que subsidiasse o filme, isentando os ingressos de impostos. Como disse o vice-presidente nacional do grupo, “nesse filme, o mártir Nathuram Godse teve a chance de falar”.

É muito aguardado um filme biográfico sobre Savarkar, que, ao que tudo indica, será altamente favorável ao pensador da direita hindu. O longa-metragem RRR (Revolta, Rebelião, Revolução), sucesso mundial de bilheteria em 2022, omitiu o nome de Gandhi numa lista de revolucionários indianos. “Chegou a hora de revelar a verdade aos indianos, de conhecer os verdadeiros guerreiros que devem ser homenageados”, defendeu o roteirista Vijayendra Prasad ao jornal Washington Post. “O sr. Gandhi não foi um homem mau, mas o louvor que se acumulou em torno dele ao longo das décadas? A geração mais jovem de hoje está questionando tudo isso, pois muitos fatos históricos estão sendo revelados.” (O BJP recompensou Prasad pelo filme, nomeando-o para um cargo no Parlamento indiano.)

Não é de se admirar que, entre os livros vendidos nos semáforos e nas calçadas de Nova Delhi, seja comum encontrar a transcrição do depoimento de Godse diante do tribunal que o julgou em 1949, intitulado Why I Killed Gandhi (Por que matei Gandhi). Hoje, é um produto popular, comercializado ao lado de cópias de romances de John Grisham e Paulo Coelho.

No meio de tantas distorções, é fácil esquecer que há formas produtivas de pensar criticamente o legado de Gandhi. Como a esquerda na Índia decaiu a ponto de se tornar quase irrelevante e as liberdades acadêmicas foram corroídas, os críticos marxistas e progressistas de Gandhi têm sido praticamente ignorados. Mas eles existem. Os sul-africanos Ashwin Desai e Goolam Vahed, por exemplo, apontam que os textos escritos por Gandhi na África do Sul são repletos de racismo. Exaltam uma suposta ascendência “indo-ariana”, comum aos indianos e aos ingleses, e usam a expressão “kafirs”, um insulto aos negros, considerados por Gandhi como “não civilizados”. (Na África, é mais fácil encontrar críticas da esquerda a Gandhi, inclusive com campanhas para derrubar suas estátuas. Uma delas foi retirada em 2018 da Universidade de Gana depois de protestos. Um estudante considerou isso “uma grande vitória para todos os ganenses, pois ela nos fazia lembrar constantemente de como somos inferiores”.)

Em seu estudo sobre as castas, Gandhi demonstrou mais simpatia pelos oprimidos do que interesse em derrubar o sistema que os oprimia. Ele nunca se opôs à tradição das castas. Chegou a elogiar, certa vez, o conceito de “varna”, a divisão da sociedade em classes profissionais, dentro das quais se agrupam as castas. Ao definir claramente os papéis sociais, argumentou Gandhi, as varnas poderiam ajudar a “evitar a competição, a luta de classes e a guerra de classes”. 

Como escreveu em 1945 B.R. Ambedkar, autor da constituição indiana, “o ideal social do gandhismo é a casta ou a varna”. Ambedkar – que, na condição de dalit, pertencia ao patamar mais baixo na pirâmide das castas hindus e foi submetido a humilhações durante toda a vida, completou: “Não há dúvida de que o ideal social do gandhismo não é a democracia.” Apenas a completa “aniquilação das castas”, título que Ambedkar deu a seu ensaio mais famoso, poderia conduzir a Índia a um sistema verdadeiramente democrático.

O apoio tácito de Gandhi ao sistema de castas foi reforçado pelas suas relações amistosas com magnatas do mundo dos negócios. Inicialmente, ele manifestou ceticismo diante das grandes empresas – em seu livro seminal de 1909, Hind Swaraj, escreveu que seria “loucura supor que um Rockefeller indiano seria melhor do que o Rockefeller americano”. Mais tarde, porém, Gandhi cultivou relações próximas com líderes empresariais, ao ponto de dizer, sobre um grande industrial: “Que a Índia produza muitos Tatas!” 

Certa vez, os funcionários do banqueiro G.D. Birla, doador de longa data do Partido do Congresso, pediram uma audiência com Gandhi relatando terem sido agredidos fisicamente depois de pedirem um bônus ao patrão. Gandhi se recusou a recebê-los. Em 1925, declarou: “Minha identificação com os trabalhadores não é incompatível com minha amizade com o capital.”

Em outra ocasião, Gandhi argumentou que a acumulação pessoal de vastas riquezas era aceitável, desde que parte dela fosse usada para o bem-estar social – conceito que chamou de trusteeship (algo como “administração fiduciária”). Ele achava que sua posição conciliatória era um jeito de não assustar as elites e mobilizá-las em favor de sua causa. Pode-se dizer que Gandhi estava comprometido demais com os interesses do Partido do Congresso para poder realmente transformar as estruturas sociais da Índia. Como definiu com humor a romancista Arundhati Roy, Gandhi foi “a primeira ONG da Índia com patrocínio empresarial”.

Gandhi também fez mais do que qualquer outra pessoa para teologizar a linguagem da política, método agora explorado à exaustão pela direita indiana. Ao injetar aquilo que o historiador Perry Anderson chamou de “uma dose maciça de religião – mitologia, simbologia, teologia – no movimento nacional”, reapropriando-se da terminologia religiosa e defendendo questões tradicionalistas hindus, como a proteção às vacas, e exaltando as virtudes de entoar o nome do deus hindu Rama, Gandhi trouxe o hinduísmo para a política indiana e, sem querer, abriu um caminho que hoje é trilhado com sucesso pelo partido de Narendra Modi.

Há uma enorme diferença entre Gandhi e o projeto etno-nacionalista do BJP. Mas é justo concluir que Gandhi preparou parte do terreno para que Modi investisse contra a minoria muçulmana sem encontrar resistência. Desde que o primeiro-ministro subiu ao poder, em 2014, o BJP substituiu nomes muçulmanos de cidades e ruas por nomes hindus.

O Partido do Congresso, embora sempre tenha defendido a tradição gandhiana do secularismo, não apresentou até hoje uma resposta à altura da violência religiosa na Índia – um festival de horrores que inclui desde o linchamento de muçulmanos até o assédio sexual contra mulheres muçulmanas. Alguns integrantes do partido vão na mão contrária. Numa reação às sucessivas derrotas eleitorais, implantam o que foi apelidado de Hindutva light – políticas similares à da direita nacionalista, só que mais suaves. Uma tentativa malsucedida de ser mais hindu do que o próprio BJP e, com isso, reconquistar alguns votos. Líderes do partido gandhiano vendem a imagem de defensores da fé hindu, criando subsídios para peregrinações religiosas e demonstrando adoração às vacas. Muitos concordaram com a repressão do BJP à Caxemira, onde líderes da oposição foram presos e a internet foi suspensa por dezoito meses – um exemplo de repressão estatal que deixaria Gandhi, defensor das liberdades civis, horrorizado.

Nem por isso o partido de Gandhi deixa de explorar, a todo momento, o estilo e a retórica de seu líder máximo. A combinação, no entanto, não tem sido convincente. Apesar da retórica liberal grandiloquente, o Partido do Congresso sofreu uma derrota acachapante nas duas últimas eleições gerais e o horizonte não é melhor na disputa deste ano. O BJP, enquanto isso, trabalha para transformar a infraestrutura do país e implantar programas de massa para subsidiar o gás de cozinha, expandir a oferta de moradia para os mais pobres e universalizar o saneamento básico. Os apelos idealistas para proteger “os alicerces da Constituição e da democracia”, nas palavras do presidente do Partido do Congresso, Mallikarjun Kharge, têm pouca chance contra o populismo sectário de Modi e 100 milhões de novos banheiros.

 

Não se deve conceder à extrema direita hindu o monopólio da crítica a Gandhi. Muitos indianos, eu inclusive, admiram nossos pais fundadores pela sua visão grandiosa de um país secular e pluralista, ainda que essa visão seja imperfeita e tenha sido implementada de forma errática. Mas há um pouco de verdade nas críticas da direita: nossa República foi, de fato, fundada por elites anglófonas aristocráticas e, por isso, suas principais instituições refletem a visão de mundo desse pequeno grupo abastado que não tinha conhecimento da realidade material e espiritual do povo que governava. A Índia contemporânea sofre com graves desigualdades socioeconômicas, de castas, de gênero e regionais – o que, em boa medida, é legado do trabalho desse grupo paternalista que comandou o país por tanto tempo.

Mas essa constatação deve ser um ponto de partida na discussão política, não um beco sem saída. Se examinar um pouco mais a fundo os escritos de Gandhi, a oposição ao BJP vai encontrar não apenas falhas, mas também recursos inestimáveis – em especial na sua formulação sobre o secularismo indiano, que tem uma chance real de resistir e superar o nacionalismo Hindutva.

Além disso, em uma época de crescente violência religiosa, o pacifismo de Gandhi pode ser mais relevante do que nunca: não se trata mais de um conjunto de frases inócuas repetidas nos livros de história, mas sim de uma diretriz urgente. Sua mensagem, mais do que um elogio superficial a valores esquecidos, pode ser usada contra os herdeiros ideológicos do seu assassino.

Ninguém – seja político, cidadão ou intelectual – pode afirmar seriamente que herdou os valores de Gandhi sem antes tirá-lo do pedestal em que a História o colocou e resgatá-lo, ao mesmo tempo, da adoração superficial e das calúnias da direita. O jeito é dialogar com ele próprio, o grande pensador, e seus escritos. A absorção crítica é o único destino realmente digno para o homem que, no passado, chamávamos de Bapu – ou Papai.

 


Reportagem publicada originalmente na revista The Drift.

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