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Um tríplice coroado, um pária e um pacto 

    Heleno e Bolsonaro apontam para o nome do último presidente da ditadura em cerimônia de inauguração da Usina Fotovoltaica Flutuante, em Sobradinho (BA) Foto: Alan Santos/PR

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Um tríplice coroado, um pária e um pacto 

Como Heleno e Jair Bolsonaro construíram um projeto de poder que acabou na prisão de ambos

Mônica Gugliano, de São Paulo, e Tânia Monteiro, de Brasília | 03 dez 2025_09h01
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O diálogo aconteceu no final de 2014. 

– Você tem grana? 

– Não. Mas tenho a internet.

Era o último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff, que seria depois reeleita por um triz. Na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, sentados frente a frente em uma das mesas rústicas do restaurante Camarada Camarão, uma franquia espalhada pelas capitais brasileiras, o general de Exército da reserva e então diretor do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) Augusto Heleno Ribeiro Pereira, e o deputado Jair Bolsonaro, começavam assim o diálogo sobre um projeto que, quatro anos depois, faria do ex-capitão o 38° presidente da República.

A ideia de Bolsonaro não era recente. Havia pelo menos três anos que ele percorria o país conversando com diferentes grupos que professavam um profundo conservadorismo e um saudosismo inconformado dos tempos em que os generais mandavam no país.

Bolsonaro já se encontrara com gente do agronegócio, das igrejas evangélicas, pequenos empresários, comerciantes e até militares. As respostas a esses encontros vinham sendo mais animadoras. Mas ele precisava de mais. Necessitava de alguém que, “no dia D, na hora H”, – uma expressão usada pelo ministro da Saúde Eduardo Pazuello que o presidente costumava repetir – lhe garantisse o apoio dos oficiais do Alto Comando do Exército (ACE).

Sairiam dos quartéis os quadros que o ajudariam a governar o Brasil, dizia Bolsonaro, alimentando a ideia de que ali estariam homens bem preparados, prontos para assumir a gestão dos programas, projetos do governo e, principalmente, mais do que aptos a extirpar a mazela do comunismo que se alastrara de Norte a Sul. E, de quebra, ele ainda acreditava que poderia sustentar uma ameaça velada, pairando sobre a Nação: se algo não desse certo, os quartéis estariam com ele na hora de recorrer à força, ou seja, como ele mesmo admitia com insinuações aos muito chegados, a um golpe militar.

Ele sabia que no Forte Apache, como é chamado por muitos o Quartel-General do Exército (QGE) em Brasília, germinara um enorme desprezo e uma grande revolta contra o PT, em especial contra Dilma e o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas acreditava também que essa aversão não se convertera em interesse pela candidatura dele. O presidenciável visto com alguma simpatia pelos fardados permanecia sendo o tucano Geraldo Alckmin, que mostrava poucas chances de derrotar o petismo e acabar com “esses comunistas”. 

Mas, finalmente, ali estava ele conversando com alguém que poderia mudar esse cenário. E esse alguém era o general Augusto Heleno.

Não que fosse a primeira vez que eles se viam. Ao contrário, se conheciam havia várias décadas, agora eram vizinhos no bairro e haviam se tornado parceiros eventuais do vôlei de praia nas areias da Barra. Por ali, se cruzavam com frequência desde que o general, ao passar para a reserva em maio de 2011, trocara a modorrenta vida nas superquadras de Brasília pela brisa marinha e pelo cargo bem remunerado oferecido pelo presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) Carlos Arthur Nuzman (em 2021, condenado e preso por ter participado de um esquema de corrupção e compra de votos para que o Rio sediasse os Jogos Olímpicos de 2016). 

O novo emprego lhe dera assento na organização da Olimpíada do Rio e o salário, somado à aposentadoria militar – como ele mesmo disse –, lhe permitia escolher o vinho sem olhar para o lado direito do cardápio. E, mais do que isso, Nuzman, amigo de Heleno desde a juventude, dera um jeito para que o amigo não precisasse vestir o pijama da aposentadoria tão cedo e ficar sem ter o que fazer em casa, uma hipótese que o general temia mais do que a própria morte. 

Heleno, como é chamado pelos amigos e colegas até hoje, saiu da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1969, graduado em primeiro lugar, aspirante a oficial de cavalaria. Terminou também em primeiro lugar em sua turma da cavalaria na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) e na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), tornando-se um “tríplice coroado”. Isto é, um dos detentores da medalha Marechal Hermes de prata dourada com três coroas, um privilégio de poucos e que ele mostra na lapela dos paletós que veste.

Com prestígio e trânsito livre entre os oficiais mais graduados do Exército, na ativa e na reserva, era a pessoa certa para introduzir Bolsonaro nesse meio que ele tanto almejava. Do ponto de vista ideológico e do discurso, Heleno estava fechado com ele e na linha de frente dos que acreditavam que os militares precisavam de uma nova chance para provarem seu valor e sua competência. Do ponto de vista prático, porém, o general tinha lá suas dúvidas sobre as chances de uma candidatura tão desorganizada, sem sequer um partido político razoável por trás. Por isso, a pergunta à queima-roupa sobre ter dinheiro suficiente para bancar a campanha, que deixou boquiabertos Bolsonaro e o filho Flávio que o acompanhava no almoço. 

Heleno ainda acrescentou, conforme me disse[1] em entrevista publicada no jornal Valor Econômico em 2019: “Você lembra da prestação de contas da Dilma e do Aécio? Fora o que saiu da Lava Jato, ficou em mais de 300 milhões.” Bolsonaro respondeu sem titubear: “General, não tem nada. Não tenho nada. Vou para o confronto, usar a rede social…”

No Camarada Camarão, o general se convenceu. Avaliou que, como Bolsonaro estava muito conhecido, visado (e odiado), apesar de ainda ser nanico na política, possíveis esqueletos no armário já haveriam de ter aparecido. Heleno conhecia o deputado desde cadete na Aman, quando o rapaz se saía bem nos esportes pela força física que lhe rendeu o apelido de Cavalão. “Eu acho que era dele mesmo a ideia de que podia ser presidente. Ele sempre foi muito obstinado, descobriu que havia um vácuo após aquelas manifestações gerais no Brasil em 2013, que ninguém mais acreditava nos políticos convencionais e pensou: ‘Agora eu entro’.” 

Era junho de 2018, faltavam quatro meses para a eleição, quando, com a familiaridade de quem conhecia todos os caminhos, Heleno levou Bolsonaro para tomar um café com o comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, no gabinete do QGE. O encontro, “visita de cortesia” fora da agenda, e avisado por meio de um rápido telefonema, apenas selou uma aliança que Heleno e os outros oficiais do alto escalão já haviam costurado e arrematado. Mas obrigou a assessoria de Villas Bôas a correr para convidar os demais postulantes ao cargo de presidente da República que, até o final de julho, fizeram figuração nas fotos com o comandante.

Ponto para o ex-capitão, que saiu do almoço com o padrinho, Villas Bôas, que lhe seria fundamental nos quatro meses que faltavam para a campanha eleitoral e, depois, durante o governo. Ponto para o grupo de generais que eram capitães, tenentes e coronéis na ditadura militar e viram seu Comandante em Chefe, João Figueiredo, sair pela porta dos fundos do Palácio, e que, agora, tinham chances reais de voltar e subir a rampa da entrada principal. De mostrar ao país que eles, sim, sabiam gerir a “coisa pública”. 

É bem verdade que Bolsonaro não era o “príncipe” sonhado. Mas era o que havia e eles se agarraram com todas as forças e energia a essa chance. Somaram-se aos que já orbitavam em torno dele e se deixaram arrastar pela força da gravidade do ex-capitão. 

E foi assim, em busca do resgate desse imaginário país que já não haviam conseguido entregar uma vez, que se reuniram os personagens já conhecidos e citados. E que eles se lançaram em uma aventura republicana, entrelaçado por alguns dos momentos mais tétricos da República brasileira, como o da terça-feira da semana passada, quando o STF declarou o trânsito em julgado no caso da trama golpista – e, com isso, confirmou a condenação de Bolsonaro a 27 anos e 3 meses, e de Heleno a 21 anos de prisão. 

 

Na capa da caixa de DVDs (HBO) de Band of Brothers está escrito: “Havia um tempo em que homens comuns eram recrutados para fazer coisas extraordinárias.” A história da Easy Company, que faz parte do 506° Regimento da 101ª Divisão de paraquedistas do exército dos Estados Unidos, que na manhã do Dia D saltou em território francês, invadindo a Normandia e começando a derrocada de Hitler imposta pelos aliados, sempre fascinou o general Augusto Heleno. O historiador e escritor Stephen E. Ambrose, nascido em Illinois, assim como fizera na mais famosa de suas obras, D-Day: June 6, 1944: The Climactic Battle Of World War II (em português, simplesmente O Dia D: 6 de junho de 1944), consegue descrever, do ponto de vista dos soldados, a luta, as dores, a fome e o frio, o medo da morte e os raros momentos felizes do grupo de elite.

O enredo sempre foi obrigatório para os alunos do general (também paraquedista) nas academias militares onde lecionou. E o roteiro de passeios pelos lugares emblemáticos na Normandia onde desembarcaram os aliados na França era quase que indispensável para os visitantes que Heleno recebia em Paris, no período em que foi adido militar na Embaixada Brasileira (1996-1998). “São histórias incríveis”, dizia Heleno. 

Apesar da abissal distância intelectual e de formação pessoal e profissional que separava Heleno de Jair Bolsonaro, o primeiro se persuadiu da ideia de que apoiar o despreparado companheiro na guerra eleitoral significava derrotar o comunismo e outras ideologias nefastas nas quais o general acreditava e acredita que fazem muito mal ao país. Evidentemente, nunca ignorou as limitações do ex-capitão: “Eu poderia até ser um candidato mais preparado, mas quantos votos eu teria?”, me perguntou Heleno, sem falsa modéstia, durante uma conversa[1]. “Ele não. Dezenas já o seguiam, gritando mito, correndo para tocá-lo e ouvi-lo. Ele seria eleito, eu nunca.”. 

Os pais de Augusto Heleno sempre vislumbraram um futuro brilhante para o menino, nascido em Curitiba. Filho único do coronel e professor do Colégio Militar Ari de Oliveira Pereira, neto do Almirante Augusto Heleno Pereira, o garoto cresceu mimado, mas não tanto que impedisse o controle imposto pelo severo olhar da mãe, a professora Edina Ribeiro Pereira. Exigente com os estudos, cedo ela fez com que começasse a estudar francês, língua que ele fala muito bem. Dona Edina controlava com lupa as notas que vinham nos boletins escolares, assim como os modos e as atitudes do rebento. E continuou assim, mesmo após entregá-lo para que fosse forjado pelas escolas militares, começando pelo Colégio Militar.

Formado na instituição, Heleno tinha que decidir se faria o que se esperava dele, seguindo os passos da família na carreira militar, ou se enveredaria pelo mundo dos “paisanos”, gíria depreciativa para se referir aos civis. Chegou a pensar nessa segunda hipótese, movido pelo interesse juvenil de disputar os prêmios oferecidos pelos cursinhos pré-vestibulares da época para os melhores classificados nos exames para ingressar na universidade. “Mas aí eu pensei que ia estudar pra burro, numa época que estava no auge da minha juventude. Pô, pra ganhar um carro? Aí eu falei: ‘Não, eu vou pra academia militar, não vou entrar nesse troço, não, que eu vou me ferrar todo, não vou poder nem fazer esporte nem nada – na época eu nadava, fazia voleibol.”

Não era só isso. Heleno não queria ir para uma universidade federal. No livro O espírito militar, o antropólogo Celso Castro descreve com precisão a aversão dos jovens aspirantes a cadete na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) às escolas dos “paisanos”. Com uma certa estupefação e já no período em que ele ocupava um gabinete no Palácio do Planalto, ouvi o General me falar que nas universidades federais, “onde os caras estão estudando às custas do governo”, existem “salas de aula subterrâneas, onde acontece todo tipo de libertinagem e se fuma maconha. É um absurdo total”, descreveu Heleno, observando: “Admito todas as ideologias e tal, mas tudo tem que ser colocado na medida certa. Você não pode ter, de cem professores, noventa que sejam radicais de esquerda e que vão para sala de aula fazer doutrinação. Porque é você quem está pagando.”

Entrou na Academia já marcando posição com seu superior da seção psicotécnica, que o instou a dar uma nota de preferência de um a sete para as Armas que poderia cursar. “Só marquei a Cavalaria, e quando ele me pediu que preenchesse as outras, falei: ‘Se eu não for para a Cavalaria, vou embora.’”

A bravata lhe garantiu a vaga onde começou a construir a carreira, e os amigos que o ajudaram e apoiaram ao longo da vida e que se juntaram a ele quando quis convencer o oficialato de que Bolsonaro seria um ótimo candidato para presidente do Brasil. Ou, como imaginava ele, a acreditar que o candidato, se eleito, seria uma espécie de “presidente-soldado”, disposto a acatar as diretrizes que lhe seriam impostas pelos graduados generais. “Minha turma de Cavalaria eram 22; eu acho que 15 ou 16 viemos juntos do Colégio Militar. Nós éramos muito amigos, muito. Somos como se fôssemos irmãos, né?”

Heleno nunca chegou a sentir falta do carro que poderia ter ganho do cursinho pré-vestibular. Formado cadete, foi presenteado pelo pai com um Fusca e um apartamento. Para um jovem, pouco mais que um adolescente naquela época, era quase como ganhar na loteria. Logo se casou e deu início a sua “família militar”, com a mulher Sônia e os dois filhos (Renata e Mário Márcio). Entretanto, diz ele, a vida em casa nunca chegou a ser páreo para sua profissão, à qual ele se agarrou, disputando todas as possibilidades de ascensão que surgiram.

 

O ano era 1986, e um oficial da EsAO, o capitão Jair Messias Bolsonaro decidiu reclamar dos soldos. “Como capitão do Exército brasileiro, da ativa, sou obrigado pela minha consciência a confessar que a tropa vive uma situação crítica no que se refere a vencimentos. Uma rápida passada de olhos na tabela de salários do contingente que inclui de terceiros-sargentos a capitães demonstra, por exemplo, que um capitão com oito a nove anos de permanência no posto recebe – incluindo soldo, quinquênio, habitação militar, indenização de tropa, representação e moradia, descontados o fundo de saúde e a pensão militar – exatos 10.433 cruzados por mês”, escreveu no artigo publicado na edição da revista Veja de 3 de setembro de 1986.

A publicação chegou a Brasília num domingo ensolarado. O ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, estava na piscina de sua casa, no Lago Sul, região valorizada da cidade. Preparava um churrasco com alguns amigos e suas famílias, entre eles o chefe do Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX), general de Divisão Carlos Olavo Guimarães, quando o fax – “um aparelho de última geração que enviava e recebia notícias, documentos e textos em tempo real” – recém-comprado, apitou. “Primeiro recebemos um telefonema do Rio, nos informando que um capitão, o então capitão Bolsonaro, havia escrito um texto para a Veja. Para confirmar que isso era verdade, eles usaram o fax do Rio. Passaram a página da revista e aí foram tomadas as providências. Ou seja, o fax tinha acabado de mostrar sua utilidade”, me relatou o general em entrevista ao livro de depoimentos dos ex-chefes do Centro, A Evolução do Grande Mudo[2].

Leônidas ficou furioso e mandou prender o insubordinado, que ficou dois dias na cadeia. O capitão foi acusado de “transgressão grave”, por “ter ferido a ética, gerando clima de inquietação no âmbito da organização militar” e também “por ter sido indiscreto na abordagem de assuntos de caráter oficial”. 

No ano seguinte, 1987, o capitão entornaria de vez o caldo, quando a Veja publicou reportagem com o seguinte título: Pôr bombas nos quartéis, um plano na EsAO [Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais]. O texto da revista dizia que Bolsonaro e outro militar, Fábio Passos, tinham um plano de explodir bombas em unidades militares do Rio para pressionar o comando.

“Só a explosão de algumas espoletas”, brincou Bolsonaro, instado a responder se planejava alguma operação para mostrar a insatisfação da categoria. “Sem o menor constrangimento, Bolsonaro deu uma detalhada explicação sobre como construir uma bomba-relógio. O explosivo seria o trinitrotolueno, o TNT, a popular dinamite”, dizia a revista. O plano, que se chamava “Beco sem Saída”, foi elaborado para que não houvesse vítimas e a Veja publicou um croqui – da autoria de Bolsonaro, segundo a publicação – que comprovaria a conspiração que visava atingir Leônidas. No primeiro julgamento, o então capitão foi considerado culpado. Porém, mais tarde foi inocentado pelo Superior Tribunal Militar (STM). Mesmo assim, largou a farda, foi para a reserva e resolveu seguir sua vida na política, elegendo-se vereador e, depois, deputado federal.

O major Heleno já perfilava entre os melhores em sua turma no Exército e servia no gabinete do ministro Leônidas quando Bolsonaro foi para a reserva. E se havia algo que ele estava acostumado a viver, eram os conflitos entre militares. Fora espectador privilegiado de uma das grandes crises da ditadura militar, quando o então ministro do Exército, Sylvio Frota, tentara dar um golpe e derrubar o presidente Ernesto Geisel, em outubro de 1977. “O ministro Frota nunca quis dar um golpe. Eu estava ao lado dele no dia em que foi demitido por Geisel. Sei e tenho certeza disso”, afirma.

Os relatos de Heleno sobre o período em que foi ajudante de ordens de Frota são extraídos a conta-gotas. Ele fala muito pouco. Em sua entrevista para o livro A Evolução do Grande Mudo, o general recorreu ao bom humor para me[2] descrever como eram seus dias de trabalho no gabinete de Frota e como a comunicação era tratada naquele tempo. Segundo Heleno, a relação com os jornalistas e com os parlamentares era feita por um coronel. Todos os dias, esse coronel conversava com os setoristas do Ministério e ia até o Congresso Nacional (fechado pelo presidente Geisel em 1º de abril de 1977, no chamado Pacote de Abril). “Quando o coronel chegava, o próprio ministro se referia a ele como o ‘má notícia’.”

Foi ao lado de Leônidas que Heleno acompanhou todo o desenrolar da confusão criada pelo capitão Bolsonaro. Leônidas é tido como o último dos generais da Nova República que exercia o cargo em sua plenitude e gostava do poder que advinha dele. Depois dele, só Villas Bôas conseguiu impor a mesma autoridade. Fez importantes reformas no Exército e, mais do que isso, segundo os relatos que passaram para a história, coube ao general – escolhido para ser o primeiro ministro do Exército do regime civil depois de 21 anos de ditadura militar – o papel fundamental que garantiu a posse de José Sarney na Presidência, na fatídica madrugada de 15 de março, quando Tancredo Neves teve que ser hospitalizado.

“Havia muita confusão no hospital por todos os lados. Alguns diziam que, como Tancredo não tinha tomado posse ainda, o sucessor natural seria o deputado Ulysses Guimarães. Eu sabia que não era. Peguei um exemplar da Constituição e apontei: ‘Está aqui. Quem toma posse é Sarney.’ Logo depois falei com Sarney pelo telefone e lhe comuniquei a decisão. Ele ainda quis argumentar alguma coisa. Mas eu acabei com a conversa: ‘Boa noite, presidente’”, me contou Leônidas, repetindo uma das mais emblemáticas histórias daquela madrugada em que Tancredo estava sendo operado no Hospital de Base do Distrito Federal. Estávamos em seu apartamento no Leblon. “Sempre falei com jornalistas, mas ultimamente não tenho tido muita paciência. Mas Heleno me pediu que recebesse você. E Heleno, você sabe, é meu peixinho”, me disse, sorrindo.

Mais do que um dos oficiais do gabinete de Leônidas quando Bolsonaro se insurgiu contra os soldos, Heleno era, portanto, “o peixinho do general” – gíria usada pelos militares para designar os favoritos do comandante. Admirava profundamente o chefe. Mas, nesse caso, divergia dele. Enquanto Leônidas só se referia a Bolsonaro com algum impropério e só se tranquilizou quando o “delinquente” deu baixa para a reserva, Heleno acreditava que era possível compreender o tresloucado capitão e suas ideias anticomunistas, antidrogas, contra a homossexualidade e outras.

E, se era possível compreendê-lo, acreditava Heleno, era possível também ajudá-lo diante dos tribunais.

“O presidente Bolsonaro foi meu cadete. Não foi direto, porque ele é de Artilharia. Mas eu o conhecia da Aman porque era muito bom atleta. E era muito bem conceituado no curso de Artilharia. Foi uma coisa que eu não sabia, mas por acaso do destino o pai do major Cid – que é o ajudante de ordem, chefe dos ajudantes de ordem – era o instrutor-chefe do curso de artilharia e pegou as fichas dos cadetes da época dele. Bolsonaro é o melhor conceito da turma dele. Quando eu vi, para mim, foi até surpreendente. Mas é o tal negócio: a vida é circunstância, nê? Naquela época que ele se envolveu no assunto salarial, as Forças Armadas estavam muito mal. Ele não tinha outro recurso…”

Na prática, o país inteiro estava mal. A inflação de Sarney batia em três dígitos, protestos aconteciam em todos os cantos. Heleno recorda novamente que, apesar dessa situação, ele vivia bem. “Minha vida era diferente da maioria”, admite, prosseguindo e evitando usar a palavra pobre: “A maioria tem origem… se não é… não vamos dizer que seja humilde, mas uma origem classe média baixa. Então, você pega a família do Bolsonaro, você vê que a família é humilde, do interior de São Paulo. Então ele sofre muito mais essas consequências…”

Heleno crê que Bolsonaro sempre teve preocupação “de conseguir fazer um dinheirinho extra para viver melhor”. O general lembra de outro episódio em que o então capitão Walther invadiu a prefeitura de Apucarana (SP) para reclamar dos soldos com o prefeito Carlos Roberto Scarpelini (MDB). “O Waltinho [Luiz Fernando Walther de Almeida, comandante da 1ª Companhia de Fuzileiros do 30° Batalhão de Infantaria Motorizada] e Bolsonaro ficaram muito amigos. São amigos até hoje. São irmãos.”

Na época, Waltinho de Apucarana reuniu cinquenta homens fardados, com armamento leve e capacete para cercarem a prefeitura e lerem um manifesto em protesto contra as autoridades do país. Waltinho saiu dali direto para a cadeia. Muitos anos depois, o amigo-presidente lhe deu um cargo no governo.

As novas gerações, diferentemente de Bolsonaro, pondera o general, foram progressivamente sendo doutrinadas com outras ideias. “Isso é hoje. Por que se você pegar a história das Forças Armadas – principalmente do Exército e da Força Aérea, a Marinha sempre foi mais calma, o cara assinava manifesto no guardanapo do rancho [o refeitório dos quartéis]”, diz. E prossegue, refletindo:

O “problema Bolsonaro”, como era tratado o caso do capitão rebelde no gabinete do general Leônidas, “estava fervendo”. O ministro aparentava zero disposição de poupar o capitão. Queria fazer dele um exemplo para a tropa e determinou que fosse aberto um processo no Conselho de Justificação, um órgão das Forças Armadas que julga se o oficial é incapaz de permanecer na ativa e lhe dá a chance de se defender. “Então eu acompanhei o Conselho de Justificação e eu sempre fui um poder moderador ali. Por que havia uns caras que queriam a cabeça do Bolsonaro. E eu sempre achei que o que ele tinha feito, na época e nas circunstâncias, ele não podia ser execrado, né? Mas é o tal negócio: do ponto de vista militar o que ele fez foi alguma coisa grave, né? Foi grave? Foi, mas para tirá-lo das Forças Armadas? Não era bem o caso”, afirmou Heleno.

O general achava que o caso serviu para criar a imagem de que Bolsonaro seria insubordinado.  Na visão de Heleno, Bolsonaro era um bom atleta e um bom militar que cometera um erro, mas este não deveria custar-lhe a carreira. O clima contra o capitão, entretanto, ficou tão pesado, e o país havia tão pouco tempo vivia os ares da democracia. Seria praticamente impossível, portanto, evitar uma punição e a expulsão de Bolsonaro da carreira militar. A opção do capitão por sair das Forças Armadas, dessa forma, teria sido a melhor.

Heleno, porém, nunca compartilhou do desprezo que os demais oficiais passaram a dirigir ao ex-capitão que, já deputado federal, ainda era banido das solenidades e de qualquer proximidade com as Forças Armadas. O ministro do Exército no governo de Fernando Collor, o general Carlos Tinoco, mandava que Bolsonaro, já deputado federal, fosse retirado de qualquer evento militar onde aparecesse. “Então o meu contato com Bolsonaro começou a ser frequente quando ele ia nas solenidades militares e eu era o único que dizia :‘Pô, esse cara não pode ser barrado. O cara é deputado federal, isso não existe!’”.

“Por que a gente não estava acostumado com militar político. Entendeu? Então militar político era uma coisa, para gente, meio repugnante. Político é político, militar é militar, né? Isso foi positivo para esse afastamento das FFAA [Forças Armadas] das injunções políticas, né? Mas por outro lado cria uma rejeição de parte a parte. Quer dizer, uma parte da sociedade nos via como perigo para a democracia, né, e a outra parte da sociedade nos via, acho que tinham mais proximidade com a gente, nos via como uma coisa importante para garantir a democracia, não sendo necessariamente os que vão derrubar a democracia”, disse Heleno.

Heleno gostava das ideias do capitão, e achava que o país caminhava para virar um grande “Cubão”, palavra cunhada pelo general Leônidas, que àquela altura, a primeira década do século XXI, queria passar um apagador nos avanços da democracia no Brasil, pois, em sua opinião, haviam descambado para o exagero e a fraqueza moral.

Leônidas me disse que o PT queria fazer do Brasil uma ilha comunista, um Cubão. O general dizia que o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado – que foi torpemente torturado e assassinado em outubro de 1975 – se suicidara no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), em São Paulo.

Era um fim de tarde no Rio, coberto pela luz de outono que se esgueirava em meio às cortinas da varanda, deixando passar uma suave brisa do mar. O general levantou o corpo de quase 1,90 metro da cadeira da sala, decorada por obras de arte, praticamente ficando em posição de sentido e, prosseguindo o tema Herzog, me interpelou com o máximo de suavidade que, sempre acreditei, ele conseguiria ter naquele momento: “E você acha que se Herzog tivesse sido assassinado eu não saberia? Eu era general de divisão, chefe do I Exército, eu investiguei, eu examinei todos os detalhes. Você acha que eu não veria? Que eu seria enganado? Ele se matou! O resto foi invenção da comunistada.”

Leônidas e Bolsonaro se reaproximaram, com as bênçãos do “peixinho”, deixando no passado todo e qualquer ressentimento. De quinze em quinze dias, Bolsonaro o visitava. Conversavam sobre o país, a necessidade de banir a ameaça da esquerda, a presidente comunista e guerrilheira (Dilma Rousseff), e criticavam a suposta perseguição ao coronel Brilhante Ustra, condenado por tortura pela Comissão da Verdade. “Leônidas se tornou um grande e importante conselheiro de Bolsonaro”, contou Heleno.

Também por esses tempos, os encontros do general com Bolsonaro ganharam periodicidade. Uma vez por mês, eles almoçavam no Camarada Camarão do Rio Design Barra. Dividiam um prato e ideias, analisavam a conjuntura nacional e o crescimento da popularidade do deputado nas redes sociais, que era palpável nos lugares por onde ele passava. “Chegou um tempo em que as pessoas o paravam, o cumprimentavam e pediam para tirar fotos ao lado dele”, disse o general. Perguntei-lhe[1]: “O senhor já achava que ele poderia ser presidente da República?”. Ele respondeu:

“Eu nem sonhava. Se eu achasse isso, teria jogado na Mega Sena. A possibilidade de ele ser presidente e de eu ganhar na loteria eram as mesmas”, disse na entrevista ao Valor.

Pura retórica de Heleno. Ele achava, sim, que tinha um bilhete premiado nas mãos. Mas sabia que não conseguiria receber o prêmio sozinho. Saiu em busca dos demais “brothers” com Bolsonaro a tiracolo. O resto da história já é conhecido. Mas quem imaginaria, naquela época, que os “brothers” acabariam na cadeia?

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Este texto é uma prévia do livro Como Bolsonaro enganou as Forças Armadas, de Mônica Gugliano e Tânia Monteiro, que ainda está sendo escrito e não tem previsão de lançamento.

[1] As frases ditas ao Valor Econômico citadas são desta reportagem feita por Cristiano Romero e Mônica Gugliano.

[2] Livro publicado pelo Centro de Comunicação Social do Exército, em 2021, com organização de Mônica Gugliano e Carlos Daroz.

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