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questões cinematográficas

Getúlio, glória e drama de um povo – paixões em fúria

A propósito do segundo volume da biografia de Getúlio Vargas, de Lira Neto (São Paulo: Companhia das Letras, 2013), recém publicado, Amir Labaki comentou na sua coluna semanal “a dívida do cinema brasileiro para com o político gaúcho”, em especial no que diz respeito a filmes documentários. (“Caberá Getúlio em um filme?”, Valor Econômico, 16/08/2013).

Dos três documentários pioneiros dedicados ao ex-presidente – Getúlio, glória e drama de um povo (1956), dirigido por Alfredo Palácios, O mundo em que Getúlio viveu (1961/64), de Jorge Ileli, só lançado em 1976, e Getúlio (1974), de Ana Carolina – a campanha contra o primeiro continua tendo aspectos pouco conhecidos

| 02 set 2013_12h07
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A propósito do segundo volume da biografia de Getúlio Vargas, de Lira Neto (São Paulo: Companhia das Letras, 2013), recém publicado, Amir Labaki comentou na sua coluna semanal “a dívida do cinema brasileiro para com o político gaúcho”, em especial no que diz respeito a filmes documentários. (“Caberá Getúlio em um filme?”, , 16/08/2013)

Dos três documentários pioneiros dedicados ao ex-presidente –  Getúlio, glória e drama de um povo (1956), dirigido por Alfredo Palácios, O mundo em que Getúlio viveu (1961/64), de Jorge Ileli, só lançado em 1976, e Getúlio (1974), de Ana Carolina – a campanha contra o primeiro continua tendo aspectos pouco conhecidos, apesar do circunstanciado relato feito por Afrânio Mendes Catani em A sombra do outro – A cinematográfica Maristela e o cinema industrial paulista nos anos 50 (São Paulo: Panorama Comunicações, 2002).

Segundo Catani, pouco depois do suicídio de Getúlio Vargas, Mario Audrá Júnior, diretor-presidente da Cinematográfica Maristela, sediada em São Paulo, teria cogitado fazer um filme sobre o ex-presidente para ser lançado em 1955, no dia do primeiro aniversário da sua morte. O contrato de produção, assinado com uma subsidiária da Columbia Pictures, que seria a distribuidora no Brasil e no exterior, previa um investimento de Cr$ 1.400.000,00, cabendo à Columbia adiantar até 50% desse custo.

As divergências entre o produtor e o diretor acabaram sendo contornadas, mas segundo Audrá Júnior teriam levado à narrativa cronológica “sem comentários”, “nem contra nem a favor”. Ele declarou que gostava “de uma série de atitudes políticas tomadas” por Getúlio, enquanto Palácios era um “antigetulista ferrenho”. Recorrendo quase exclusivamente a cine-jornais, inclusive da Agência Nacional, comprados de Alexandre Wulfes [cinegrafista e laboratorista do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), do Estado Novo], o filme acabou só estreando em agosto de 1956, no primeiro ano da Presidência de Juscelino Kubitschek, sendo João Goulart o vice-presidente.

Ao se aproximar a data de lançamento ficou evidente que as paixões em fúria não levariam em consideração o fato do diretor ser antigetulista, nem a suposta neutralidade do filme. Conforme Catani relata, uma violenta campanha, feita pelo Estado de São Paulo, levou os co-produtores americanos a fazerem um lançamento protocolar, apenas para cumprir o contrato, e o próprio Audrá Júnior, em carta enviada ao jornal, renegou a produção, deixando Palácios como único responsável por Getúlio, glória e drama de um povo.

Segundo o Estado de S.Paulo, “a iniciativa tem nítido caráter de agitação política, procurando comover o povo com a evocação de vários momentos da carreira de Vargas, e culminando com a apresentação das cenas dos seus funerais em 1954. […] O Partido Trabalhista Brasileiro demonstrou interesse pela fita, tendo o major Newton Santos, líder da agremiação em São Paulo, facilitado os contatos entre os produtores e o vice-presidente da República para a obtenção do material necessário.” O texto continua, estranhando “o fato de figurar entre os seus produtores uma companhia estrangeira, aliás norte-americana, a Columbia Pictures […] Como explicar o fato e com que intuito a Columbia financia tal empreendimento? Ignoram os seus candidos representantes que a fita tem nítido objetivo político. Se não ignoram esse fato, como justificar a participação de uma companhia estrangeira num ato de natureza político-partidária, numa hora delicada da vida política brasileira, e sabendo-se que a exploração do mito do ditador é uma das armas do populismo mais demagógico? […]” E para encerrar, uma advertência ao presidente da República e uma insinuação de que o filme deveria ser proibido pela censura: “Não é do interesse do sr. Juscelino Kubitschek, no momento, que às greves e reivindicações se some também um movimento de desagravo ao ditador, ‘glória e sangue [sic] de um povo’. Mas quem terá mais forças sobre a censura, JK ou Jango? Pois a censura é quem vai decidir. Enquanto isso, anotamos na ficha da ‘Columbia Pictures of Brasil’ esta referência: companhia estrangeira mancomunada com o PTB ganhando dinheiro pela exploração da vida e da morte do ditador Vargas.”

Catani reproduz também a arrasadora crítica de B. J. Duarte (1910-1995), publicada na revista Anhembi, segundo a qual “a Maristela e a Columbia […] uniram-se na exploração sórdida de um tema de política interna”. Revelando seu parti pris, o crítico adota o trocadilho do Estado de S. Paulo, trocando o título do filme por Getúlio, glória e sangue [sic] de um povo, procedimento que passaria a ser recorrente nos ataques feitos pela imprensa.

Marcos Marguliès, cogitado inicialmente para dirigir o filme, foi dos poucos, se não o único, a criticar o filme sem aparente motivação política, em longo artigo também reproduzido por Catani. Para ele, “pairam dúvidas, ao assistir a fita sobre Getúlio, se de fato houve qualquer ideia básica, se houve qualquer roteiro, se a seleção se baseou em qualquer critério”. Segundo Marguliès, “compilação, numa película cinematográfica não significa apenas mera justaposição de elementos já existentes […] o ritmo é continuamente monótono, não há nenhum dinamismo que o assunto comporta. Fatos insignificantes sobrepujam-se, ocorrências básicas da vida nacional ou mesmo da vida do ex-presidente são completamente omitidos. Falta de material, ou falta de vontade de se esforçar para procurá-lo? Ou talvez falta de coragem em enfrentar discussões e problemas que, apesar de históricos, continuam provocando paixões […].”

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A crítica de Marco Marguliès é certeira. Trata-se de um filme medíocre. Ainda assim, ao longo das décadas, tornou-se um valioso acervo de imagens da chamada Era Vargas.

Além do Estado de São Paulo, a Tribuna da Imprensa também participou da campanha contra Getúlio, glória e drama de um povo. As paixões pró e contra Getúlio continuavam intensas, na época, e recortes de jornal revelam o paroxismo alcançado, no Rio, pelos ataques ao filme.

A Tribuna da imprensa (6/8/1956) anuncia o “retorno de Vargas em longa-metragem” e acusa a Columbia Pictures de interferir “na política-partidária brasileira”, ressucitando “o Vargas do DIP para a tela e denuncia que “até Jango foi consultado e ajudou”. O artigo adota o título Getúlio, glória e sangue [sic] de um povo e anuncia que o filme será lançado “como represália ao 24 de agosto”. A iniciativa de “ressurreição cinematográfica de Vargas […] interessa à chamada ‘Frente de Novembro’ [referência ao movimento liderado pelo general Henrique Lott que assegurou, em novembro de 1955, a posse de Juscelino Kubitschek na Presidência da República, tendo João Goulart como vice-presidente] que necessita de um instrumento de ação direta sobre as massas para atingir seus objetivos, isto pela circunstância ideológica de os golpes de novembro terem constituído uma represália ao 24 de agosto.” O objetivo da película seria “precisamente negar a existência do rio de lama, e ressucitar Vargas como o grande líder popular, de que Jango é o sucessor, e que foi sacrificado pelo ‘capital colonizador’”.

A Tribuna da Imprensa volta a atacar no dia seguinte, reproduzindo acusações publicadas pelo Estado de S.Paulo e acusando Jango de ter incluído Getúlio, glória e sangue [sic] de um povo na lei de obrigatoriedade, tornando sua exibição compulsória. “O povo será obrigado a ver Vargas na tela”, segundo a manchete.

No mesmo dia, outro jornal, não identificado no recorte consultado, afirma que o filme “marca uma série de abusos incompatíveis com a moralidade pública e administrativa e com o sistema democrático”. Sendo “baseado na mentira, na demagogia e no espalhafato, terá o objetivo de propalar que Vargas não sucumbiu na correnteza de um rio de lama que ele mesmo criou, mas foi sacrificado pelo capital estrangeiro e coisas semelhantes. Assim, o filme é de índole ostensivamente retornista. O major Vaz [referência ao major da Aeronáutica Rubens Vaz, assassinado quando fazia a segurança de Carlos Lacerda, no atentado a tiros feito a mando da guarda pessoal de Getúlio Vargas] será insultado de uma maneira metafórica, e os que infelicitaram e continuam infelicitando o Brasil aparecerão como bons moços.”

Dias antes da estreia, uma voz solitária, não identificada mas ao que tudo indica ligada aos realizadores de Getúlio, glória e drama de um povo, manifesta-se no Estado de S.Paulo em defesa do filme, negando a intenção de glorificar Getúlio Vargas: “[…] longe da produtora e do produtor está a ideia de ‘provocação’! Não se cogitou de endeusar um homem recebendo apoio de partidos ou de políticos interessados em tirar partido da popularidade do homem que durante vinte e cinco anos dominou a vida administrativa e política do Brasil.[…] Trata-se tão somente de, focalizando aspectos fotográficos da vida de Getúlio Vargas, apresentar ao público um quarto de século da vida brasileira. Se os fatos, apresentados cinematograficamente por ordem cronológica, ofendem a sensibilidade dos adversários de Getúlio Vargas, ou não atingem em cheio a admiração sem limites que despertou sempre em seus amigos, a culpa não será dos realizadores do filme. Eles apenas mantiveram-se objetivamente diante dos acontecimentos já filmados e não podem ser acusados de partidarismo ou de má fé, pois não pediram apoio a nenhum político e muito menos subvenções a quem quer que seja, simplesmente solicitaram permissão para usar o material onde ele se encontrava nas melhores condições possíveis. […] Se a ideia é boa ou má, cabe ao povo brasileiro a resposta final.”

Os ânimos continuaram exaltados. Segundo um jornal não identificado no recorte, Alfredo Palácios teria vindo ao Rio para se entender com Jango “a respeito das acusações contra os processos usados para a realização do referido filme produzido à base de favores oficiais e policiais, inclusive acesso à filmacoteca [sic] da Agência Nacional.” Segundo a Tribuna da Imprensa (10/8/56), os cine-jornais teriam sido “desviados de uma repartição pública para finalidades políticas e demagógicas” e a censura policial estaria sendo “pressionada para reconhecer a existência de um enredo no filme e tornar obrigatória sua exibição nos cinemas. Trata-se de um abuso, uma violência, uma vez que é uma lei – a policialesca lei dois oito por um, que assegura a exibição obrigatória dos ‘abacaxis’ – que está sendo espichada e violentada para servir a uma mentira cinematográfica.”

O anúncio na véspera do lançamento, em São Paulo, indica que o filme estrearia em 12 cinemas na segunda-feira, 20 de agosto, e passaria a ser exibido em outros 9 na quinta-feira seguinte. Na charge publicada no Estado de São Paulo, no dia seguinte à estreia, “Getúlio” é anunciado para “breve”, sucedendo “Astúcia de bandoleiros.”