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    Foto: Divulgação/Bruno Veiga

questões cinematográficas

Getúlio – paradoxo e credulidade

Levando em conta o tamanho do desafio, dos maiores já enfrentados por um cineasta brasileiro, Getúlio pode ser considerado um prodígio. Dirigido por João Jardim a partir do roteiro de George Moura, o filme está à altura da sua evidente ambição, levando em conta quem é seu personagem principal e que é uma reconstituição de época. O modelo de cinema que procura emular pode ser discutido, mas Getúlio cumpre muito bem o objetivo proposto por seu realizador.

| 05 maio 2014_15h15
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Levando em conta o tamanho do desafio, dos maiores já enfrentados por um cineasta brasileiro, Getúlio pode ser considerado um prodígio. Dirigido por João Jardim a partir do roteiro de George Moura, o filme está à altura da sua evidente ambição, levando em conta quem é seu personagem principal e que é uma reconstituição de época. O modelo de cinema que procura emular pode ser discutido, mas Getúlio cumpre muito bem o objetivo proposto por seu realizador.

Restringindo a ação a dezenove dias, Getúlio evita a armadilha na qual costumam cair filmes biográficos que tentam contar vidas da infância à velhice, ou mesmo relatar apenas os anos de maturidade de um personagem. Dessa delimitação decorre, porém, que o perfil de Getúlio Vargas resulta forçosamente parcial.

Ao buscar inspiração nos fatos reais ocorridos de 5 a 24 de agosto de 1954, culminando com o tiro no coração dado por Vargas, o que Getúlio retrata é um presidente de pijama –  cansado, acuado, à mercê dos acontecimentos. As menções à sua carreira política anterior não chegam a completar os traços da astúcia e capacidade de articulação que permitiram a Vargas ser deputado, senador, governador, ministro, chefe do Governo Provisório, presidente da República eleito pelo voto indireto, ditador durante oito anos do Estado Novo e presidente da República, eleito pelo voto direto em 1950 – líder carismático de face dupla, ora raposa, ora leão; homem desde sempre fatalista que ao receber em agosto de 1954, no Palácio do Catete, a notícia do atentado da rua Tonelero, teria dito: “o tiro atingiu as costas do meu governo”.

O traquejo acumulado na vida pública, exercendo sucessivos cargos executivos, torna inverossímil, como narrado em Getúlio, que Vargas tenha sido surpreendido pela traição do seu irmão, Benjamin Vargas, e que ignorasse a atividade do chefe da sua guarda pessoal, Gregório Fortunato. As truculências anteriores de ambos, com as quais lidou desde a década de 1930, não permitiriam a um observador atilado como ele ser surpreendido por seus novos atos de violência.

O Vargas de Getúlio, porém, é apresentado como sendo vítima de acontecimentos pelos quais não se considera responsável, embora ele mesmo reconheça ser impossível Gregório “não estar envolvido”. Por isso, quando revela não ser capaz de amarrar o cordão do próprio sapato a cena ganha sentido emblemático, procurando validar sua imagem como bom velhinho, alheio a tarefas comezinhas, capaz de desconhecer quantos homens compunham sua guarda pessoal e, mais grave, o que se passava nos recantos da sede do governo.

Embora circunscrita em grande parte ao Palácio do Catete, acentuando o isolamento de Vargas, o enredo de Getúlio inclui, além do atentado que deflagra a ação, ao menos duas outras escapulidas – a ida de Gregório ao encontro de Benjamin Vargas no alto da serra, em Petrópolis, cuja relevância o roteiro inicialmente camufla, e a viagem de Vargas a Belo Horizonte, onde primeiro é vaiado e, em seguida aplaudido na inauguração de uma usina (a Mannesmann, empresa de capital alemão, cujo nome, salvo engano, não é mencionado). Além de fazer sua saudação característica aos trabalhadores, ele discursa em defesa da legalidade constitucional. São sequências que rompem a unidade de espaço e parecem servir, assim como a fracassada tentativa de amarrar o cordão do sapato, para atenuar a sensação de enclausuramento do personagem e evitar que a atmosfera do filme se torne opressiva.

Em Getúlio, só depois de quinze dias Benjamin diz a Vargas que Gregório, no encontro na serra de Petrópolis, contou ser o mandante do atentado a Carlos Lacerda. A reação do presidente, dizendo que “com aliados como vocês eu não preciso de inimigos”, reforça a impressão de que ele está tendo a revelação, naquele momento, quatro dias antes de se matar, do que seu irmão e Gregório eram capazes – o que parece pouco provável considerando os antecedentes de ambos.     

No prólogo de Getúlio, o rosto de Vargas, em preto e branco, fora de foco, vai ganhando nitidez aos poucos, enquanto em voz off ele rememora sua trajetória em tom confessional – é um dos pontos altos do filme, mas esse acaba não sendo o estilo narrativo predominante. A ênfase dada à sucessão de eventos desencadeados pelo atentado a Carlos Lacerda que resultou no assassinato do major Rubens Vaz, já bastante conhecidos, deixa em segundo plano o potencial dramático sugerido pela voz interior de Vargas e a encenação de alguns dos seus pesadelos, usadas com parcimônia. É possível imaginar o filme fascinante sobre o mesmo período que poderia ter resultado invertendo a ênfase dada em Getúlio – menos centrado nas peripécias factuais e mais no pensamento e imaginação de Vargas durante seus dias finais.

A grande dificuldade dessa alternativa seria criar a voz interior e o imaginário de Vargas para conduzirem a narrativa, pois ele não só interrompeu seu diário em 1942, como tratou com reserva dos seus sentimentos durante os doze anos em que o redigiu. Ainda assim, Getúlio não deixa de recorrer a essa fonte com resultado que mesmo a liberdade própria de um roteiro “inspirado em fatos reais” não chega a justificar.

Transpostas para agosto de 1954, anotações feitas no diário vinte anos antes têm seu significado alterado. É o que ocorre ao transferir o que o inseguro revolucionário Vargas escreveu em outubro de 1930 – “Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso.” – para o presidente em plena crise que o levará ao suicídio. E também ao tomar o que Vargas escreveu no seu diário em dezembro de 1934, quando estava no Rio Grande do Sul – “Tenho recebido muitas visitas de cumprimentos e pedidos de emprego. É rara a visita não acompanhada de pedido de emprego para si ou para outrem” –, e transformar a anotação numa das últimas frases ditas por ele antes de dar um tiro no coração. [*ver retificação abaixo]

A opção de João Jardim e George Moura por fazer um thriller, enfatizada pela montagem e trilha musical, é legítima e deve corresponder a expectativas de ordem comercial. O resultado, porém, é um filme paradoxal. Apolítico, por um lado, na medida em que não vincula a disputa pelo poder encenada a projetos para o País, a correntes de pensamento ou a motivações ideológicas. Getúlio desidrata a campanha agressiva de Carlos Lacerda, Afonso Arinos e da Aeronáutica contra Vargas.

O paradoxo consiste em que Getúlio ganhou conotação política imprevista ao ser lançado às vésperas da campanha presidencial, no momento em que os condenados pelo Supremo Tribunal Federal na ação penal 470 cumprem suas penas, enquanto o ex-presidente Lula procura reeleger a presidente Dilma Rousseff. Ao retratar Vargas, em agosto de 1954, como alheio às ações do seu irmão, Benjamin, e de Gregório Fortunato, o filme vem ao encontro da tese de que não cabe responsabilizar presidentes pelo que ocorre no segundo escalão – prova cabal da ilimitada credulidade do ser humano.

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* Retificação

Na verdade, a voz de Vargas em OFF, no prólogo de GETÚLIO, informa com clareza que a frase "sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso" foi escrita 24 anos antes no diário. Até certo ponto, esse esclarecimento atenua a restrição feita no post acima, no antipenúltimo parágrafo, à transposição de anotações do diário para agosto de 1954. (EE)

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